29 dezembro 2006

 

A propósito da IVG


Esta semana saiu na “Visão” uma entrevista de Elisabeth Aubeny, obstetra francesa especialista em aborto e contracepção, que esteve ligada ao processo de descriminalização do aborto em França há 30 anos.
A sua leitura é interessante, não só porque revela um profundo conhecimento dessa realidade, que sem dúvida tem origem no acompanhamento de uma prática legal e desse modo transparente, como também num constante e aprofundado estudo da realidade que lhe está subjacente.
Independentemente da posição que se assuma relativamente a essa questão, não se pode deixar de pensar que algo falta no debate que está a ter lugar em Portugal.
Na realidade, esgrimem-se argumentos mais ou menos retóricos, fala-se no absoluto direito à vida, em passar imagens de fetos abortados para “despertar” as consciências para o horror do fenómeno, mas pouco, entre os que estão pelo “não” e pelo ”sim”, se tem falado acerca da experiência de outros países após a descriminalização do aborto.
Dizer que contra factos não há argumentos é um chavão, mas quando os temas em debate são fracturantes e têm densa carga ética, o conhecimento dos factos e números a eles respeitantes pode contribuir não só para tornar o debate menos propício à demagogia e à argumentação falaciosa, mas também formar opiniões verdadeiramente esclarecidas e intelectualmente honestas.
Ninguém pode garantir que com a legalização do aborto em Portugal a taxa de natalidade não vai descer, à semelhança do que aconteceu em França, ou que a realização de IVG não vai diminuir, mas conhecer a experiência de décadas de outros países pode ser esclarecedor no sentido de perceber a reais implicações do que se está a propor.
Mais grave ainda me parece que o Estado vá perguntar ao país se concorda com a “despenalização” da IVG, pedindo-lhe assim que pense sobre tão delicado tema, sem se lhe fornecer alguma informação, como por exemplo o número estimado de abortos clandestinos realizados, as suas consequências permanentes para as mulheres, as idades e estratos sociais em que é mais comum a sua prática, se a legalização acabará de vez com o aborto clandestino, qual a real utilização e eficácia da contracepção, as condições, com relação a outros países, que as mulheres têm para se dedicarem ao cuidado dos filhos e outras. Seria revelador também ideia avançar com algumas ideias acerca da forma como o “sim” será implementado, nomeadamente se seria o SNS de alguma forma a comparticipar as IVG, quanto isso custaria ao Estado, se as intervenções teriam lugar em estabelecimentos públicos ou privados, em que termos os médicos poderiam exercer a objecção de consciência e por aí fora.
A reflexão sobre estas questões levar-nos-ia talvez à conclusão de que decidir se a conduta de praticar um aborto em determinadas condições deve ou não ser crime é um problema de política criminal que deve ser o poder legislativo a resolver, recorrendo para tanto aos instrumentos que esta ciência oferece, pelo que não se compadece ao tipo de discussão que se faz na praça pública, em qualquer praça pública.
Não é através do direito penal que se devem resolver os problemas da sociedade e o aborto, é, antes de mais, uma questão de saúde publica de dimensão social muito profunda, a qual, infelizmente se desconhece em grande medida.
A falta de informação não raro anda de mãos dadas com o desinteresse, pelo que corremos o risco de, no dia 11 de Fevereiro, mais de metade da população votante não se sentir compelida a expressar a sua opinião nas urnas.
Independentemente do resultado do referendo, parece-me que já se perdeu a oportunidade de debater na esfera pública uma questão social e juridicamente relevante de forma séria, empenhada, honesta e esclarecida. É nestes momentos que a sociedade civil tem a oportunidade de se fortalecer e amadurecer pela participação cívica, num exercício que só aprofunda a Democracia. Quando tal não sucede, perdemos todos.

A todos votos de Bom Ano!
Rita Simões





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