10 janeiro 2011
Juízes em causa própria
Há quem opine que os juízes são parte interessada na questão das providências cautelares sobre os cortes salariais e, por isso, estariam feridos de suspeição neste caso.
Tenho assistido com uma certa expectativa indiferente ao desenrolar das movimentações sindicais que tencionam accionar o Estado por causa desses cortes, não porque não me sinta atingido com eles, ou porque os ache perfeitamente justos (na realidade, ainda não sei bem o que é que se pretende salvar com estas medidas de austeridade: o país?; mas que país?; a economia?; mas que economia?), mas mais, talvez, por espírito de conformação, esse espírito tão português, ou por uma indefinida (e cristã?) culpabilização, por me sentir ainda um privilegiado no meio de uma grande maioria de portugueses que aguentam a chamada “crise” com a sua fome verdadeira, a sua saúde precária e os seus salários de miséria (se é que não com o seu desemprego).
Porém, acho que algum pudor deveria inibir certos críticos de opinarem sobre o assunto, quando, se são atingidos pelas medidas de austeridade, não são, pelo menos, visados pelos cortes nos vencimentos, que em alguns casos não devem ser tão pequenos como isso.
Em segundo lugar, se a associação sindical dos juízes é uma das contestatárias dos cortes de vencimentos, propondo-se levar a questão a tribunal, tal como o sindicato dos magistrados do Ministério Público, há muitos outros grupos profissionais, principalmente das áreas da função pública, que estão envolvidos na impugnação da medida, pelo que essa questão ultrapassa largamente o interesse dos juízes para ser identificada, “tout court”, como causa própria. Além de que o interesse sindical ou de certos grupos profissionais, mesmo que ligados à administração da justiça, não se projecta dessa forma directa e mecanicista na função jurisdicional. Nem os juízes são um grupo que actua homogeneamente e segundo o espírito de coesão sindical.
Uma coisa é certa: a questão da redução salarial, pelo menos nos termos em que foi postulada, não é assim tão líquida e simplista como se pretende fazer crer. É uma matéria que divide os especialistas e os constitucionalistas. Porque, se fosse de outro modo, a via judiciária não seria ensaiada e, mesmo assim, é por meio de tentames, com cautela, a ver no que dá, que as coisas estão a ser feitas.
Em terceiro lugar, uma decisão judicial vale pela sua fundamentação; não é o produto da simples vontade dos juízes, como os que põem em causa a independência e isenção dos tribunais para decidirem neste caso simplisticamente querem fazer crer. A fundamentação permite ao público em geral aceder às razões e argumentos da decisão e exercer sobre ela um controle, verificando se os juízes decidem movidos por interesse próprio ou não, ou se, pelo contrário, o decidido merece um acolhimento pelo menos razoável. Se movidos por interesse próprio, então haveria razão para exercer de modo impiedoso a crítica social sobre o que se decidiu.
Para além dessa crítica social, há sempre a possibilidade de controle por via de recurso para os tribunais superiores, inclusive para o tribunal constitucional, cuja composição e modo de selecção dos juízes (diferente da dos outros tribunais) representa um outro tipo de garantia (não digo melhor nem pior) de democraticidade das decisões judiciárias.
É, a meu ver, demagógica (para não dizer pior) a acusação de que os tribunais, decidindo sobre matérias que tais, podem sobrepor-se aos outros poderes, de base electiva. É a velha acusação de que os juízes estão inquinados de uma espécie de “pecado original”. Não estão lá pelo voto. Pois não, mas tal não significa que não tenham legitimidade democrática, justamente aquela que a Constituição prevê como a adequada e mais eficaz, no sistema de estruturação do poder judicial no confronto com os outros poderes e tal como resultante da tradição político-cultural da Europa Continental. A designação dos juízes pelo voto não corresponde necessariamente a mais democraticidade, e muito menos a melhor administração da justiça. Poder-se-ia pegar em meia dúzia de exemplos para o provar.