30 novembro 2008

 

As maravilhas do Estado mínimo

O Estado mínimo, que tem estado na moda e tem sido intensamente praticado nesta vaga de neoliberalismo significa mais ou menos isto: Estado liberto de preocupações e objectivos sociais, entregando à voracidade do sector privado domínios como os da saúde, da educação e do ensino; da vasta área da comunicação social, incluindo a garantia de serviço público dos principais meios de informação; de produção de bens essenciais, desde a electricidade, ao saneamento básico, aos correios e aos transportes públicos; de serviços assistenciais e de protecção social; de gestão de serviços prestados no âmbito de estabelecimentos públicos, como as prisões e os hospitais; de abdicação do sector público económico; em suma, de privatização de tudo o que possa ter algum significado económico, em termos lucrativos (o termo em moda, impregnado de uma semântica com glamour, é “empresarializar”). Como correspectivo desta concepção, o Estado mínimo deve cobrar o mínimo possível de impostos e limitar-se às suas funções de polícia, autoridade e ordem, garantidos pela lei (função legislativa), pelas forças armadas e policiais, pelo aparelho judiciário e pelo poder executivo. A lei suprema é a da mercantilização omnívora, com redução drástica dos direitos culturais, sociais e económicos, quando não dos clássicos direitos individuais.
Já se sabe a quem é que este Estado serve às mil maravilhas. E o facto é que a natureza desse Estado mínimo ficou bem à mostra com a recente crise financeira e do capitalismo. De repente, de uma exigência de não intervencionismo, passou-se ao pólo oposto: Estado intervencionista, mas em que esse intervencionismo é a favor dos que reclamavam o Estado mínimo, ou seja, aqueles a quem o Estado mínimo beneficiava com a abdicação da sua intervenção.
Depois de terem dilapidado a riqueza acumulada à custa dos mais desprotegidos e das classes médias, depois de terem afundado clamorosamente (e às vezes mesmo dolosamente) o barco com a sua avidez sem limites, são esses mesmos que vêm pedir ajuda ao Estado, agora por meio de prestações positivas e naturalmente à custa do dinheiro dos contribuintes. Depois de terem deitado tudo a perder, esses cavalheiros vêm pedir ao Estado que os ajude, que os salve da bancarrota. Então, podemos concluir: o Estado mínimo é o Estado que espolia a maioria da população em prol dos eleitos e que, na hora da perdição e do naufrágio, quando todos se afundam, lança uma tábua de salvação a esses mesmos eleitos, servindo-se para tanto dos esforços daqueles espoliados.

28 novembro 2008

 
Ainda a propósito da posta anterior, coloca-se a dúvida de saber se existe alguma visão global sobre o que se quer prosseguir com determinadas regras e práticas judiciárias. Noutros sítios, decerto por falta de uma forte e sólida cultura jurídica, ingenuamente prosseguem essa discussão. Um exemplo:

«This view understands at least a significant number of the rules of evidence as designed to protect as a truth-finding, and thereby dispute resolving, forum by imposing educative restraints and disciplinary sanctions upon litigants who would otherwise deprive the tribunal of the best, reasonably available evidence in a given issue. Although these measures may or may not be maximally conducive to the ascertainment of truh in the instant case, it is contemplated and hoped that their imposition will contribute in the long run not only to accurate fact-finding but also to a deserved public respect for the legal system».

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A propósito de julgamentos, provas e juízos



Há uns tempos, a propósito das verdades processuais afirmei que A questão que se coloca é saber se a verdade judiciária, e em particular do processo penal, pode conviver com outras verdades, nomeadamente afirmadas por outros órgãos do Estado (por exemplo comissões parlamentares de inquérito) ou pela sociedade civil (no quadro de indagações factuais levadas a cabo, por exemplo, no âmbito do jornalismo ou da história).
[...]
A problematização deste tema e dos valores em colisão, bem como sobre a redefinição política dos espaços de controvérsia social sobre factos que foram (estão a ser ou podem vir a ser) objecto de processos judiciais (em especial de processos penais), parece ser hoje uma exigência e será um bom sinal para a democracia que se superem tabus em nome da discussão racional
.


Nas últimas semanas alguns casos (julgamento de Fátima Felgueiras, de assaltos e homícidio em Oliveira de Azemeis e julgamento/saga Casa Pia), vieram a colocar novamente na mesa o problema da credibilidade dos veredictos penais. Apesar de tal suscitar alguns dos problemas que referi aqui, existe, no mínimo, um aspecto positivo (whishful thinking ?): que o olhar sobre a forma como se decide a verdade nos julgamentos criminais permita um acesso a um acervo de regras e procedimentos fixados e aplicados em nome do interesse público (em sentido amplo incluindo os interesses da defesa) que, paradoxalmente, não é publicamente conhecido. E uma expectativa, que o olhar possa evoluir para a discussão sobre os modelos de epistemologia judiciária adoptados no processo penal português e que esta ultrapasse o universo dos juristas (se é que aí ocorre), e, já agora, se analise em termos de efectiva legitimidade democrática, e num quadro de discussão racional intersubjectiva o que se quer com as regras da prova penal.

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24 novembro 2008

 

Casa Pia: a TVI já proferiu a decisão final

Na véspera do início das alegações, a TVI antecipou-se ao tribunal, produziu a prova, e sentenciou, sem direito a recurso, a condenação de todos os arguidos.
Não só dos arguidos em juízo, mas também de um que não foi pronunciado, e até de dois que nem sequer foram acusados ou sequer ouvidos nessa qualidade (um deles é actualmente uma alta figura do Estado).
São estas as regras e as "garantias" dos julgamentos mediáticos.
E se a decisão do tribunal não vier a coincidir com a da TVI, a ira popular, com a sua prestimosa ajuda, vai-se abater sobre o tribunal.

 

Jurisdição e política 1

Editorial do El País, 24.11.2008.

«Tras el bloqueo durante casi dos años del Consejo General del Poder Judicial (CGPJ) por la resistencia del Partido Popular a aceptar una renovación que presumía contraria a sus intereses, el Tribunal Constitucional (TC) se encamina a un periodo parecido de interinidad. Su renovación parcial -la correspondiente a los cuatro magistrados designados por el Senado- está a punto de cumplir un año de retraso.Este empantanamiento se debe ahora al empeño del PP (a través de las autonomías que gobierna) en proponer de manera concertada a dos únicos candidatos (el presidente y el portavoz del anterior CGPJ, Francisco Hernando y Enrique López, respectivamente), cuyos títulos y trayectoria profesional difícilmente podrán considerarse un aval suficiente de la "reconocida competencia" -lo que implica una cierta especialización- exigida por la Constitución. Dos candidatos, además, que el PP sabe difícilmente aceptables por el PSOE tras su activa beligerancia contra las iniciativas legislativas del Gobierno durante la anterior legislatura.
El acuerdo anunciado en julio pasado por Zapatero y Rajoy no ha impedido el bloqueo; simplemente, aplazó el problema al conocimiento de los candidatos presentados. La renuncia a un mínimo control sobre la idoneidad de los mismos permite maniobras como la del PP, claramente contraria al de la reforma del procedimiento de designación, que intentaba dar participación en la misma a las comunidades autónomas. Se presentan candidatos cuya mayor cualificación es la afinidad ideológica y frente a los que, tras algunos amagos de rechazo, se termina por transigir en aras del principio de hoy por ti, mañana por mí.
Aprovechando ese marco, el PP parece haber decidido dejar las cosas como están hasta que el Constitucional falle el recurso contra el Estatuto catalán. En la anterior legislatura, intentó forzar, con la recusación del magistrado Pérez Tremps, una mayoría favorable a sus posiciones. Ello provocó una reacción en cadena de incidentes de recusación que dividió al Tribunal, afectó a su prestigio y credibilidad y retrasó el pronunciamiento del mismo sobre el estatuto.
Ahora, al proponer a esos dos candidatos, opta por mantener el bloqueo, sin duda porque considera más favorable a sus intereses la actual composición del Tribunal que la que resultaría de su renovación pendiente. El PSOE, por su parte, ha optado por no insistir si ello favorece que el TC alumbre cuanto antes su esperado fallo sobre el estatuto. A su vez, sectores nacionalistas catalanes han planteado, con carácter preventivo, las medidas que tomarían si el TC recorta el texto. Con independencia de otras consideraciones sobre el sentido de tales medidas, se trata de una obvia forma de presión sobre el tribunal. No pueden lanzarse mensajes que buscan contraponer como radicalmente opuestos los principios democráticos y de legalidad, pues obviamente ambos encuentran su acomodo en el marco de la Constitución, de la que el Tribunal Constitucional es supremo intérprete y garante.
De nuevo, por tanto, cálculos políticos e intereses partidistas se interponen en la marcha de las instituciones. No sólo en la del Tribunal Constitucional, sino en este caso también de la del Senado, la institución que junto con el Congreso representa la soberanía popular, que se ha visto obligado a meter en la carpeta de asuntos pendientes una tarea urgente, que ya acumula un importante retraso y que pone en entredicho su funcionamiento. Algo que se está convirtiendo en el más grave problema político de la democracia española y frente al que los partidos políticos, y en especial el PSOE y el PP, no sólo no toman medidas, sino que lo agravan con su reiterativo comportamiento».

23 novembro 2008

 

A responsabilidade social dos juízes

Este é o texto da minha comunicação no Congresso dos Juízes.

Proponho-vos uma breve reflexão sobre a responsabilidade social dos juízes.
Pode este conceito parecer-vos estranho, sabido como é que, no nosso sistema judicial, a responsabilidade dos juízes, e dos magistrados em geral, é de ordem jurí-dica, que não política, e por regra de natureza disciplinar.
No entanto, esse tipo de responsabilidade não esgotará a garantia de controlo e fiscalização a que deve ser submetida a função judicial.
A par da responsabilização institucional, a cargo do CSM, um outro tipo de responsabilidade, a que chamarei social, na esteira de Luigi Ferrajoli, se mostra essencial para a legitimação da actividade jurisdicional.
Em que consiste ela?
Basicamente na sujeição das decisões judiciais à crítica, quer especializada, quer da própria opinião pública, que é necessariamente mediada, nas sociedades actuais, pela comunicação social de massas.
Esta forma de controlo social, de natureza informal, não institucional, provindo de um ponto de vista externo ao sistema judicial, traduz em última instância uma forma de expressão de controlo popular sobre a justiça, de controlo do povo, em nome do qual a justiça é administrada, sobre a justiça tal como ela é praticada pelos magistrados.
Contudo, para que esse controlo não degenere em manifestações de populismo ou irracionalismo ou pulsões anti-democráticas, é necessário que várias condições, umas de natureza institucional, outras de carácter social, sejam preenchidas.
Entre as primeiras sobressaem a publicidade e transparência do processo, e a fundamentação das decisões.
A publicidade tornou-se a regra do processo penal, com a recente revisão do CPP, porventura até em termos demasiado amplos.
A transparência ficou reforçada, com a mesma revisão, com a possibilidade de expressão de votos minoritários, mesmo em matéria de facto, pelos juízes do tri-bunal colectivo ou de júri.
Um problema que habitualmente se discute, neste quadro, é o da transparência da linguagem das sentenças e outras decisões. Penso que em geral a questão é mal colocada, pois clareza e transparência da linguagem não se podem confundir com falta de rigor ou ligeireza. Pelo contrário, creio que o rigor e a correcção da terminologia jurídica não podem fazer quaisquer concessões à preocupação de facilitar a compreensão da decisão. O rigor não é incompatível com a transparência e a clareza da linguagem.
A fundamentação, que é um aspecto capital da própria legitimação da função jurisdicional, pelo controlo que abre sobre as decisões, permitindo não só às partes, como à generalidade das pessoas, apreender as razões e todo o percurso lógico que conduz à decisão, limitando assim até onde é possível a margem de subjectividade e arbitrariedade inerente a qualquer decisão humana, além de consagrada na CRP, viu o seu alcance ampliado à matéria de facto, com a revisão do CPP de 1998, que impôs o exame crítico das provas na fundamentação da matéria de facto.
Podemos pois afirmar que as condições institucionais têm um elevado grau de afirmação no nosso sistema jurídico, conferindo uma adequada base à responsabilização social dos juízes.
A dois aspectos me quero ainda referir, neste plano.
O primeiro é o da personalização da actividade judiciária. É que responsabilidade dos juízes não é colectiva, pelo que cada um deve assumir a sua individualidade. Quem decide não é um abstracto tribunal, mas sim um concreto juiz ou um determinado colectivo de juízes. A assunção personalizada das decisões pode funcionar como factor importante de responsabilização dos juízes.
Por outro lado, há que reconhecer que tem faltado, para o exercício de uma adequada responsabilização social dos juízes, a implementação, por parte dos tribunais, de estruturas que transmitam para a sociedade, de forma permanente, uma informação objectiva e rigorosa da actividade judiciária. Esse espaço é normalmente ocupado e aproveitado pelas partes ou outros interessados, que transmitem uma informação necessariamente parcial, quando não completamente deformada. A criação de gabinetes de imprensa (com este ou outro nome) será indispensável para a produção de uma informação genuína, que é uma condição essencial para a sindicação social da actividade dos magistrados.
Analisemos agora a outra vertente, a das condições sociais. Elas reportam-se a factores diversificados. Desde logo, a maturidade da opinião pública, o grau de qualidade do debate público, da intervenção cívica e política dos cidadãos e das suas organizações, da força e densidade da sociedade civil.
Neste quadro assume especial importância a existência e intervenção de associações, quer de cidadãos, mas vocacionadas para a intervenção em matéria de justiça, quer de profissionais do foro, magistrados, advogados, funcionários.
Nesse último aspecto, a existência de sindicatos de magistrados tem revelado aspectos francamente meritórios, aliados a outros menos positivos. Afirmo frontalmente que o associativismo judiciário, e o activismo daí resultante, têm sido um elemento essencial para a criação e desenvolvimento de uma cultura judiciária democrática. O isolacionismo ou atomismo dos magistrados, pelo contrário, enfraquece a sua independência, torna-os vulneráveis aos jogos de influência e de pressão. O associativismo judiciário português, que é uma “conquista” da democracia, não o esqueça-mos, foi um elemento preponderante da democratização do sistema jurídico e da cultura judiciária.
O associativismo judiciário assumiu em Portugal a forma de sindicalismo (foram e são irrelevantes, ou quase, os fenómenos associativos à margem dos sindicatos) e esse facto trouxe alguns problemas, concretamente os da conciliação da vertente meramente sindical (estatuto profissional) com a vertente formativa e crítica. Nem sempre as soluções adoptadas terão sido as melhores e certamente que muitos erros terão sido cometidos. O sindicalismo judiciário tem de assumir características muito específicas, dada a natureza das funções desempenhadas pelos magistrados, sob pena de poder resvalar perigosamente para o corporativismo e consequentemente para a sua descredibilização junto da opinião pública.
O reconhecimento do direito de tendência dentro dos sindicatos judiciários pode constituir um elemento propulsor de debate e mesmo de confronto de ideias e de programas, com o que os magistrados e a cultura judiciária só têm a lucrar. Também o aparecimento de associações civis de magistrados é bem vinda, desde que elas protagonizem programas e ideários, e não “personalidades” (e desde que não se arroguem a representatividade de toda a classe, que cabe naturalmente à ASJP).
Mas, no âmbito do associativismo, a grande lacuna é a da carência de associações representativas de cidadãos. É certo que algumas existem ou existiram até agora. Mas ou a sua actividade é nula, ou demasiado intermitente para ser relevante, ou são (ou eram) associações “capturadas” por personalidades (ou por uma única personalidade), não representando assim mais do que elas (ou ela) próprias.
Esta lacuna é um obstáculo decisivo para o estabelecimento de um debate sério e responsável sobre a justiça portuguesa e indirectamente para a responsabilização social dos juízes. A discussão pública da actividade judicial, para não cair em populismos e manipulações irresponsáveis, tem de ser intervencionada por entidades que sobre a justiça detenham uma visão competente, que reflictam “de fora”, mas de forma culta e responsável, a situação da justiça.
Só este tipo de associações, assumindo-se como representantes dos cidadãos, e intervindo de um ponto de visto cívico, pode constituir um “parceiro social” no debate e na crítica das práticas judiciárias, em que também têm direito de intervenção obviamente as associações públicas de profissionais do foro, embora estas se assumam mais como “sindicatos” dos sócios do que como promotoras dos direitos dos cidadãos.
Por último, uma outra condição é essencial: a da existência de uma comunicação social responsável, objectiva e isenta.
São bem conhecidas as práticas da imprensa e da comunicação social em geral, que procuram no sensacionalismo populista (ou popularucho), contra o rigor e a fidelidade ao dever de informar, o meio de prosseguir estratégias puramente comerciais, se não mesmo, por vezes, a execução de obscuras estratégias de deslegitimação dos tribunais.
Acontece, porém, que não há volta a dar-lhe. A função de informar, embora hoje, com o desenvolvimento da blogosfera e de outros instrumentos de comunicação, tenha estradas alternativas, que devem ser ampliadas e percorridas, é essencialmente exercida pelos meios de comunicação de massas: a imprensa, a rádio e sobretudo a televisão. São estes (sobretudo a última) que informam o “grande público”, e que formam (e/ou) deformam as opiniões e as tomadas de posição que a opinião pública adoptará.
Essencial se torna, pois, agir junto da comunicação social no sentido de ela exercer correctamente a função que constitucionalmente lhe está deferida: o dever de informar, o que significa evidentemente, informar com verdade e isenção.
É claro que sabemos bem que a comunicação social, nas mãos de um restrito número de grupos económicos, não é hoje um palco totalmente aberto e neutro, unicamente vinculado aos valores referidos de verdade e isenção. E mais: são escassos os mecanismos de controlo democrático desse espaço (vide a dificuldade de exercício do direito de resposta e também a reacção corporativa que gera qualquer tentativa de intervenção, nos termos da lei, por parte da ERC), geralmente rejeitados em nome de um conceito de liberdade de imprensa tributário de uma ideologia liberal exacerbada, que importa para o campo da comunicação social ideias e conceitos do neoliberalismo económico.
Mas a CRP impõe à comunicação social uma função essencialmente social e é imperioso exigir que ela a cumpra.
Concluo, assim, que, embora as condições institucionais tenham um elevado, ou pelo menos substancial, grau de efectivação, já o mesmo não sucede com as condições de natureza social. Em especial, a falta de associações cívicas vocacionadas para a intervenção na área da justiça e a quase inexistência de uma comunicação social que exerça uma função informativa e crítica das práticas judiciárias são um obstáculo evidente para a responsabilização social dos magistrados, e dos juízes em particular.
A intensa “informação” e emissão de juízos “críticos” produzidas sobre os tribunais pela comunicação social, nas actuais circunstâncias, não traduz qualquer forma de responsabilização dos juízes, porque não parte de pressupostos objectivos e informados, porque não procura a raiz dos problemas, porque, em suma, não procura informar, mas sim condicionar, e tantas vezes alarmar e mesmo assustar os cidadãos (como é exemplo flagrante a generalizada e persistente campanha sobre a insegurança do último verão).
Nestas condições, perante o ruído alarmante de uns e o silêncio de outros, ouve-se apenas um estrondo caótico que só dá passagem ao irracionalismo e ao populismo mais primário. Não há espaço para a responsabilização dos magistrados. Ou melhor essa responsabilização degenera em pura e simples deslegitimação. O que talvez não desagrade àqueles que não querem verdadeiramente um poder judicial independente e responsável, esquecendo (ou talvez não) que, sem ele, não há democracia.
O que podemos fazer então, nós magistrados, nós, juízes, nesta situação?
Penso que se exige de nós, neste momento crítico, um suplemento de esforço, um suplemento de auto-responsabilização, um acréscimo de empenho ético. A aprovação do código ético é certamente um passo essencial para vencer os obstáculos que se nos deparam. Aprová-lo e depois cumpri-lo.
É tudo o que se pode exigir de nós.

22 novembro 2008

 

O Congresso dos Juízes

Escutei ontem José Manuel Pureza na Antena 1, no programa chamado “Conselho Superior”, sobre o VIII Congresso dos Juízes Portugueses, que está a decorrer na Póvoa de Varzim. O Congresso tem por título «O Poder Judicial numa democracia descontente». O sociólogo começou por questionar o título: «Democracia descontente?» Toda a democracia é descontente, afirmou, porque é da sua condição ser inconformista e insatisfeita e almejar a níveis mais elevados de realização. Mas será que, com o adjectivo, se quis dar um acento crítico, viabilizando uma leitura pouco satisfatória da nossa democracia no momento actual? Se assim é, então a justiça não se pode pôr de fora da situação, porque ela própria tem sido um dos agentes da crise e um dos factores do descontentamento.
Ora, aqui está! A ambiguidade do título do Congresso poderá favorecer este tipo de leituras. Confesso que, quando o vi escrito, senti uma estranheza, a ponto de ter ficado com o papel informativo suspenso entre mãos, a remoer a palavra. Descontente! Não sabia se a estranheza era provocada pelo inesperado adjectivo, se por uma sensação de desconforto. Descontente!
Sabendo-se que a justiça tem sido alvo das críticas mais aceradas, que a «crise da justiça» tem sido nomeada quase como símbolo da crise da sociedade portuguesa (bem sei que de uma forma exagerada, mediatizada e muitas vezes injusta, sobretudo quando nela são envolvidos grupos profissionais bem demarcados – juízes e Ministério Público – aos quais se atribui, por inteiro, a responsabilidade da crise, a ponto de ela ser identificada com (e só com) esses grupos profissionais), é hoje difícil abstrair de uma opinião pública que não tem a justiça em boa conta. Isso deve-se a factores induzidos e, porventura, deliberadamente orientados para certos fins, em que é difícil discernir motivações políticas, económicas e interesses de outros grupos profissionais e até de certos estratos sociais? Também. Mas o que é certo é que é difícil fugir à constatação da ineficiência da justiça. E, sobretudo, é difícil fugir ao sentimento da generalidade das pessoas, seja ele induzido ou não.
Neste contexto, é necessário evitar toda e qualquer ambiguidade. Os juízes e os magistrados do Ministério Público têm razões para se sentirem «descontentes»? Têm. Nem tudo o que corre mal na justiça lhes pode ser assacado, como tem sido? Pois não. Há situações que lhes são imputáveis, mas há muitas outras que têm de ser partilhadas com outros grupos profissionais, há outras que se devem à inépcia de políticos e legisladores e há factores de crise persistentes que são de ordem estrutural ou de inadequação do “paradigma” existente, como agora se diz. Todavia, acentuar aquele descontentamento ou pôr-se de fora das causas do “descontentamento da democracia” seria um erro fatal de enfoque, que acarretaria inevitavelmente um olhar corporativo sobre as questões da justiça.
Mas também há leituras positivas (e estas, por certo, é que terão relevado, como certamente se verá no final) que se podem fazer do tema do congresso. «O Poder Judicial numa democracia descontente» pode significar o lugar que deve ocupar o poder judicial numa democracia em crise (e esta é, de facto, uma das maiores crises que a democracia atravessa), ajudando a restaurar (a reinventar) a confiança nas instituições democráticas, a começar pela própria justiça.
Se assim for, José Manuel Pureza terá escolhido, entre várias leituras do tema, precisamente a que punha sob a mira da desconfiança os juízes em congresso. Para além de as democracias não serem, forçosamente, descontentes.

18 novembro 2008

 

Magistrados, militares, professores: classes perigosas e mesmo criminosas ou a actualidade de Costa Cabral

Decreto Real de 1 de Agosto de 1844

TOMANDO em consideração o Relatório dos Ministros e Secretários de Estado das diferentes Repartições, Hei por bem decretar o seguinte:

Artigo 1.º Os Juízes de Direito de Segunda Instância das Relações de Lisboa, Porto, e Ponta Delgada, e os da Relação Comercial, poderão ser mudados pelo Governo de uma para outra Relação no Continente do Reino, e Ilhas Adjacentes, quando o exigir o serviço público, precedendo, contudo, voto deliberativo do Conselho de Estado.
Art. 2.º Os Juízes de Direito de Primeira Instância do Continente do Reino, e Ilhas Adjacentes poderão ser mudados pelo Governo de uns para outros lugares da Magistratura Judicial, logo que completarem três anos de serviço em cada Lugar.
§ 1.º Os três anos contam-se desde o dia da posse. Findos eles, o Governo poderá ordenar aos Juízes, que dêem residência.
§ 2.º Durante o tempo da residência, que deverá ser dada dentro de quatro meses, servirão em Lugar dos Juízes de Direito os seus Substitutos, os quais, além dos Emolu-mentos, vencerão a terça parte do ordenado respectivo aos Juízes de Direito, ficando estes somente com as duas terças partes até entrarem em novo exercício.
§ 3.º Nenhum Juiz poderá ser mudado, nem despachado para Lugar de sua natu-ralidade, à excepção de Lisboa e Porto.
§ 4.º Compreendem-se nas disposições deste Artigo, e dos seguintes até ao sex-to, os Juízes Criminais, ou Magistrados de Polícia Correccional, e os Juízes Comerciais.
Art. 3.º Os Juízes de Direito de Primeira Instância do Continente do Reino e Ilhas Adjacentes poderão ser mudados pelo Governo nos termos do Artigo antecedente, ainda antes do prazo aí fixado:
1.º Quando o bem do serviço público assim o exigir, ouvido o Conselho de Estado.
2.º Quando os Juízes pretenderem trocar os Lugares, ou ocupar os vagos à escolha do Governo.
Art. 4.º Os Juízes de Direito de Primeira e Segunda Instância transferidos deixarão de exercer jurisdição nos Juízos, ou Tribunais, em que serviam, desde o momento da intimação oficial do respectivo Decreto de transferência. Se porém continuarem a exercer jurisdição depois daquela intimação, reputar-se-á terem renunciado a todo e qualquer Lugar na Magistratura Judicial, e o Governo deverá imediatamente prover o Lugar.
Art. 5.º Os Juízes de Direito de Primeira ou Segunda Instância transferidos, de que tratam os Artigos antecedentes; - os de Primeira Instância de que trata o Artigo quarto da Lei de vinte e sete de Agosto de mil oitocentos e quarenta; - e os que não estando em efectivo exercício forem despachados para Lugares vagos da sua classe no Continente do Reino, e Ilhas Adjacentes, devem entrar no exercício dos novos Lugares no prazo de trinta dias no Reino, e de sessenta nas Ilhas Adjacentes, contados da intimação oficial. Não entrando no exercício dos Lugares dentro daquele prazo, reputa-se terem renunciado a todo e qualquer Lugar na Magistratura Judicial, e o Governo proverá de novo o Lugar.
§ único. O Governo poderá, por documentos legais, e causas justificadas, espaçar este prazo.
Art. 6.° Pelo Diploma de transferência, que consistirá tão somente em uma Apostila nas respectivas Cartas, não se perceberão Direitos de Mercê, de Selo, nem Emolumentos; e não haverá juramento dos Juízes no caso de transferências, e só no de primeiras nomeações, ou despachos.
Art. 7.° Os Juízes Substitutos dos Juízes de Primeira Instância poderão ser demi-tidos pelo Governo, quando assim o exigir o bem do serviço público.
Art. 8.° Os Juízes de Direito de Primeira Instância das Províncias Ultramarinas poderão ser mudados pelo Governo de uns para outros Lugares da Magistratura Judicial, nas mesmas Províncias, do mesmo modo que os do Continente do Reino, e das Ilhas Adjacentes, em tudo o que for aplicável; e ficam sujeitos às mesmas penas estabelecidas nos Artigos quarto e quinto, nos termos dele.
§ único. O prazo de que trata o Artigo quinto será fixado pelo Governo, confor-me as distâncias.
Art. 9.° Ficam garantidas, na forma das Leis de quinze, e dezoito de Abril de mil oitocentos trinta e cinco, quatorze de Março de mil oitocentos trinta e seis, e cinco de Março de mil oitocentos trinta e oito, as Patentes dos Oficiais do Exército, Armada, e Guarda Municipal de Lisboa e Porto; mas todos precedendo informação dos respectivos Comandantes, poderão ser agregados conforme o serviço público o exigir, e em tal caso perceberão somente meio soldo, e não vencerão antiguidade.
Art. 10.º Os Professores de Instrução Superior poderão ser, pelo Governo, exo-nerados do Magistério, precedendo voto deliberativo do Conselho de Estado, quando o bem do serviço público assim o exigir.
Art. 11.º Os Professores de Instrução Primária e Secundária, poderão ser, pelo Governo, exonerados do Magistério, ouvido o Conselho Director de Instrução Primária e Secundária, quando o bem do serviço público assim o exigir.
Art. 12.° O Governo fará os Regulamentos e Instruções necessárias para a execução do presente Decreto.
Art. 13.° Fica revogada toda a Legislação em contrário.
Os Ministros e Secretários de Estado das diferentes Repartições assim o tenham entendido, e façam executar. Paço de Sintra, em o primeiro de Agosto de mil oitocentos quarenta e quatro. = RAINHA. = Duque da Terceira. = António Bernardo da Costa Cabral. = Barão do Tojal. = José Joaquim Gomes de Castro. = Joaquim José Falcão.

No Diário do Governo de 9 de Agosto N° 187.



Relatório preliminar

Senhora!
A divisão e harmonia dos Poderes Políticos do Estado é o princípio conservador dos direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efectivas as garantias, que a Carta Constitucional da Monarquia oferece.
As garantias de classes não podem ser superiores às garantias sociais e públicas, nem deve subsistir privilégio algum particular ou de classe, quando daí resulte mal à Sociedade. Do favor concedido aos Juízes, aos Militares, e aos Professores em várias Leis esperava-se grande bem público; o bem público porém tem sido muitas vezes menos prezado, e aquele favor tem, por abuso, degenerado em princípio de desmoralização, que segundo a última lição da experiência será irremediável, se não se lhe aplicar de pronto o remédio conducente para o bem do maior número, e até para conservação da dignidade correlativa, para desempenho da verdadeira missão, para complemento do objecto, e fim de tão respeitáveis, como úteis e necessárias Classes, e também para seu próprio interesse pessoal, quando bem entendido.
Uma das primeiras obrigações do Governo, Senhora, é conter os diferentes Servidores do Estado dentro dos limites das suas atribuições, e evitar que se convertam em facções, ou desenvolvam uma ambição desmedida, e quase sempre criminosa, com des-prezo do desempenho de suas próprias ocupações públicas. Este empenho do Governo, que o é também da Nação, é nobre, é criador; conseguido ele, estabelecida fica a verdadeira harmonia entre o bem geral e o bem particular de algumas classes dela.
A importância, e conveniência do objecto por si mesma se demonstra na presença da estatística recente, nem carece à vista desta de maior desenvolvimento.
No sentido pois do bem público, e pois que não é possível deixar de prover já de remédio em objecto tão transcendente, e quão melindroso, sem o maior risco para a causa pública, e sem grave responsabilidade para o Governo, os Ministros responsáveis de Vossa Majestade, Senhora, têm a honra de submeter à Real Aprovação de Vossa Majestade o seguinte Decreto.
Secretaria de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, em o 1º de Agosto de 1844. = Duque da Terceira. = António Bernardo da Costa Cabral. = Barão do Tojal. = José Joaquim Gomes de Castro. = Joaquim José Falcão



Senhora

O Presidente e Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça faltariam à religião do juramento prestado quando tomaram posse de seus cargos, e ao respeito que professam à Augusta Pessoa de Vossa Majestade, se nesta ocasião deixassem de elevar à Sua Real Presença as considerações que em seu ânimo despertou o Decreto do 1º do corrente mês publicado no Diário nº 187.
Esta resolução, que o Supremo Tribunal de Justiça hoje considera vigoroso dever seu, foi, ainda no tempo em que o Corpo Judicial era constituído segundo outra forma de Governo, tomada muitas vezes em assuntos graves por Tribunais e Juízes Portugueses: e os Augustos Precursores de Vossa Majestade louvaram tais procedimentos, e os tiveram como prova de zelo pelo Serviço Público, e respeito pelo Trono.
E por isso o Supremo Tribunal com a mais bem fundada confiança espera que Vossa Majestade se dignará de tomar o desempenho deste dever por uma prova não equívoca de interesse pela conservação da Ordem Pública, e pela estabilidade do Trono de Vossa Majestade.
Considerando pois o Decreto do 1º do presente mês na sua origem, disposições e consequências, o Supremo Tribunal de Justiça entende que a execução do mesmo Decreto, além de estabelecer um precedente incompatível com a observância da Lei Fundamental do Estado, aniquila o Poder Judicial de maneira que os direitos dos Cidadãos, perdendo o abrigo que este Poder deve prestar-lhes, ficarão flutuando à disposição do arbítrio do Poder Executivo.
A Carta Constitucional, dividindo os Poderes políticos do Estado, e prescrevendo os seus limites, distribuiu a cada um deles atribuições que não podem ser acumuladas por algum dos outros sem destruir o princípio conservador dos direitos dos Cidadãos, e o mais seguro meio de fazer efectivas as garantias que a Constituição oferece. Este princípio repousa essencialmente sobre aquela divisão segundo o art. 10º da mesma Carta. Consequente com esta disposição atribuiu a Carta no § 6º do art. 15º às Cortes com a sanção Real o direito de fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las; e mais cautelosa ainda, determinou que o Poder Legislativo só possa alterar o que diz respeito aos limites e atribuições de cada um dos poderes políticos do Estado pelo modo estabelecido no art. 140º e seguintes. Donde resulta que não pode haver Lei sem que provenha daquela origem, e que por isso o citado Decreto não produz obrigação de obediência, porque segundo o § 1º do art. 145º nenhum Cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer, alguma coisa se não em virtude da Lei.
A independência do Pode Judicial não é um favor concedido à classe dos Juízes; é uma garantia dada à Sociedade. Sem essa garantia não é possível que o Poder Judicial preencha a alta missão que a Carta lhe confere elevando-o à categoria de Poder Político do estado. Repousa essencialmente a independência dos Juízes na sua perpetuidade, estabelecida no art. 120º; e é esta perpetuidade que o Decreto destrói, porquanto, ainda que no mesmo artigo se declare que os Juízes de Direito possam ser mudados duns para outros lugares pelo tempo e modo que a Lei determinar, dispõe o art. 122º que só por Sentença possam deles ser privados, e o Decreto do 1º do corrente, estabelecendo no art. 4º que os Juízes de 1ª ou 2ª instância intimados para transferência deixem logo os seus lugares, sob pena de entender-se haver renunciado a todo e qualquer lugar da Magistratura Judicial, se algum acto mais de jurisdição praticarem neles, não só priva os ditos Juízes de seus Cargos, mas exclui-os de ocupar outros quaisquer na Ordem Judicial. E isto sem queixa contra eles feita, sem sua prévia audiência, e do Conselho de Estado, nos termos do art. 121º, sem processo, sem sentença, e contra o direito natural produzido e aplicado na Ordenação do Reino, o qual não consente que alguém seja condenado sem ser ouvido e convencido.
A Lei regulamentar do art. 120º da Carta foi feita e publicada pelos poderes competentes, e formando uma parte complementar do mesmo artigo, só em sua conformidade podem ser transferidos os Juízes. Esta Lei não compreende os Juízes das Relações, criadas para julgarem as causas em 2ª e última instância, o que faz o Decreto, ofendendo as provisões daquela Lei. Estas provisões conformam-se com a letra e espírito da Carta, e dão à transferência um carácter de legalidade sem pôr em dúvida a competência da jurisdição, carácter que o Decreto lhe tira na transferência extraordinária dos Juízes, bem como na ordinária, porque, deixando ao arbítrio do Poder executivo o tempo e modo de verificar essa transferência, pode acontecer que este o faça de maneira que o Juiz transferido venha a desempenhar uma rigorosa comissão, o que é expressamente proibido no § 16 do art. 145º da Carta.
Além disto, aos Juízes Substitutos vem a faltar a mais essencial das suas qualificações, a independência, pois que o mesmo Decreto os declara sujeitos à demissão arbitrária do Governo.
Tais são, entre outras, as disposições dum Decreto que, afora a inconveniência das mesmas, é vicioso e nulo na sua origem.
Quanto aos seus efeitos são estes da maior transcendência em relação à ordem pública, e aos interesses e direitos individuais dos Cidadãos. Fora longo e ocioso referir a multiplicidade desses efeitos, e sua gravidade e extensão; porque seus funestos resultados não podem escapar à penetração de Vossa Majestade. Basta reflectir que pelo Decreto do 1º do corrente mês, o Poder Judicial fica por diferentes modos sujeito à discrição do Poder Executivo, e quem não pode ter vontade própria dentro da esfera das suas atribuições legais, sem incorrer em graves perigos e danos, não pode ser independente, e sem esta qualidade, indispensável ao Poder Judicial, a ordem pública ficará totalmente aniquilada.
O Supremo Tribunal de Justiça regulador da pureza e uniformidade na aplicação das Leis, tendo de conhecer das questões da competência da jurisdição que hão-de necessariamente elevar-se, se for dado à execução o Decreto, não poderá decidi-las pelas provisões exaradas nele, porque o não pode considerar como Lei, e é só da Lei que nasce a jurisdição.
O Supremo Tribunal de Justiça abstém-se de manifestar a Vossa Majestade a ilegalidade e transcendência dos resultados que várias outras disposições do Decreto relativas ao Magistério Público, e às Patentes Militares podem produzir em relação a direitos adquiridos, e à maior vantagem do serviço público; porque não julga ser rigorosamente da sua competência. Vossa Majestade não deixará de o compreender na Sua Alta Sabedoria, e profunda Meditação.
Digne-se Vossa Majestade de acolher benignamente esta singela expressão de lealdade e dever.
Deus Guarde a Augusta Pessoa de Vossa Majestade por dilatados anos como desejamos e havemos mister.
Supremo Tribunal de Justiça, em 14 de Agosto de 1844
O Conselheiro Presidente
José da Silva Carvalho
Joaquim António de Magalhães
Joaquim António de Aguiar
José Caetano de Paiva Leitão
António Camelo Fortes de Pina
Manuel Duarte Leitão
Manual António Velez Caldeira Castelo Branco
João Baptista Felgueiras
João Cardoso da Cunha Araújo
Luís Ribeiro de Sousa Saraiva
Basílio Cabral
João Maria de Abreu Castelhano Cardoso Melo

 

Desilusões judiciárias

A (meia, ou mais que meia) absolvição pronunciada pelo tribunal de Felgueiras indignou muito boa gente, sobretudo aquela gente que publica opiniões nos jornais que escreve sobre tudo, sobretudo sobre o que não sabe, como é o caso da justiça e do direito.
Um coro de vozes se ergueu mais uma vez praguejando fulminantemente sobre o estado da justiça e os seus operadores.
Pelos vistos, para eles a arguida já estava condenada, julgada definitivamente na comunicação social, e a sua (meia) absolvição baralhou-os. Como é possível que o tribunal contrariasse o julgamento já realizado nos media? O julgamento no tribunal, pensavam eles, deveria limitar-se a ratificar a condenação já proferida e publicada em todos os meios de comunicação social.
Eles efectivamente não sabem que os julgamentos se fazem nos tribunais, de acordo com regras precisas, coligidas ao longo de muitos séculos de dores e sofrimentos, que atribuem igualdade de armas às partes e o direito ao recurso, por exemplo, ao contrário dos julgamentos fulminantes da comunicação social, que são parciais e sem apelo nem agravo.
É de uma profunda falta de cultura constitucional e democrática que se trata. Mas são comentadores encartados, opinadores bem pagos, oráculos da opinião pública nacional.
Quem os pode desmentir?

17 novembro 2008

 

Da escassez induzida à construção de um sistema de saúde privado

A escassez de um bem ou serviço é o grande impulsionador do investimento privado com vista à obtenção de lucro. Havendo escassez, há uma oportunidade; não havendo escassez, não há oportunidade. Pelo menos era assim. Mas na verdade já não o é. O sistema capitalista arranjou forma de dar a volta à escassez da escassez. Quando esta não existe, a ideia é provocá-la, e assim criar uma oportunidade de negócio.
(…) Imaginemos uma rua de uma cidade, com lugares de estacionamento para automóveis em número suficiente para satisfazer a procura. O nosso objectivo é construir um parque de estacionamento pago. Uma vez que existe estacionamento na rua, grátis, e suficiente para a procura, não há qualquer viabilidade de negócio. Falso. Proibimos o estacionamento na rua. Gera-se escassez, e com esta surge a oportunidade de construção de um parque pago. Uma espécie de escassez induzida.
Quando olho para os recentes desenvolvimentos no nosso Sistema Nacional de Saúde, vejo um encaixe perfeito neste conceito de escassez induzida. Ao longo do tempo, têm-se anunciado diversos encerramentos de urgências e de outros serviços de saúde, e introduziu-se um novo sistema de prioritarização de atendimento nas unidades existentes, envolvendo a atribuição de pulseiras coloridas.Segundo o Governo, não há qualquer viabilidade económica ou social na manutenção do anterior sistema, ou seja, o número de utentes não é suficiente para manter tantos hospitais e centros de saúde abertos. Os recursos são abundantes. Há então que reduzi-los.
Ao mesmo tempo introduz-se um sistema de pulseiras coloridas - o dito Sistema de Manchester. O utente chega às urgências e passa por um processo de triagem, sendo-lhe atribuída uma pulseira com uma cor referente à gravidade do problema que o levou lá. Assim, o utente é atendido, em média: de imediato, tendo pulseira vermelha; em 10 minutos, com pulseira laranja; em 60 minutos, no caso da cor amarela; em 120 minutos, com pulseira verde; e em 240 minutos, para os mais azarentos (ou sortudos), com pulseira azul. Não me cabe discutir a qualidade de tal sistema, mas sim a parte económica subjacente. Se existe um sistema de prioritarização, é porque há escassez no serviço de atendimento. Não faria qualquer sentido implantar um sistema de Manchester, Londres, ou de outro sítio qualquer, caso existisse um número de médicos e de recursos suficientes. O sistema de Manchester não é mais que um moderno e sofisticado sistema de senhas de atendimento (com prioridades), generalizadamente aplicado em serviços públicos (por falta de pessoal). Por si mesmo, este sistema dificulta o acesso aos serviços de saúde, e por conseguinte gera escassez.
As escolhas do Governo têm um resultado evidente. As pessoas recorrem menos ao Serviço Nacional de Saúde, ou porque ele simplesmente não existe no local da sua residência, ou porque sabem que se não estiverem a morrer vão ter um tempo de espera elevado. As duas medidas em conjunto induzem escassez, criando uma nova oportunidade para os privados.Agora vejamos o resultado destas medidas governamentais.Entre 2006 e 2009 abriram, foram remodelados, ou estão em curso ou planeamento, 22 hospitais privados, representando um aumento de camas disponíveis de 2000 para 5000. Como factos relevantes, temos que:
· a maioria abre a norte do Mondego, precisamente na região onde mais foram encerrados serviços públicos de saúde;
· abre um hospital privado em Mirandela, local bastante fustigado por encerramentos públicos;
· abre uma outra unidade privada em Chaves, com serviço de maternidade, num local onde a unidade de partos pública foi encerrada;
· em Santo Tirso é também construído um hospital privado, local onde fecham a maternidade e urgência nocturna no serviço público;
· abre em Braga um hospital privado, num distrito que tem sido muito afectado por encerramentos de diversas unidades em Barcelos, Famalicão, entre outros
· estão projectados hospitais para Bragança e Vila Real, locais que têm agora um fluxo muito maior de doentes devido ao fecho de diversas unidades públicas em ambos os distritos.
Para além disso, em 2007, as seguradoras viram as suas receitas com seguros de saúde crescer cerca de 8%, sendo agora de aproximadamente 23%, a percentagem da população, com idade igual ou superior a 15 anos, com seguro de saúde.
O Governo tem estado a trabalhar para o sector privado. Com os diversos encerramentos e a introdução de um sistema de espera, o Governo dificultou o acesso à saúde, e provocou uma escassez induzida, que é exactamente o que faltava aos privados para investir no sector. O número de hospitais privados abertos e a abrir entre 2006 e 2009, mostra claramente a oportunidade gerada. Até a Caixa Geral de Depósitos já percebeu a oportunidade existente, e por isso, é accionista do grupo de hospitais privados HPP (o Estado desmantela o serviço publico de saúde, e depois, através da CGD, investe no privado). E os locais escolhidos para a abertura destas novas unidades não são nenhuma coincidência. O investimento privado canaliza-se para as oportunidades. A abertura de unidades privadas em locais fustigados pelo fecho público é um sinal claro de que estes serviços de saúde eram necessários. Na realidade o que está aqui a acontecer, não é uma criação de mais valia ou de riqueza. É, pelo menos parcialmente, uma substituição, a criação de algo por destruição do que existia. A Saúde muda de mãos, com um resultado final bem evidente: quem não tem dinheiro, não tem seguro, e por conseguinte terá que continuar a sujeitar-se ao sistema de Manchester, e a fazer mais de 100 Km até à unidade de cuidados pública; quem tem dinheiro, gasta um extra num seguro para ter acesso ao sistema privado, e paga ao Estado por um serviço que deixa de usufruir.

Filipe Costa

16 novembro 2008

 

«colaboracionismos»

A petulância com que se trata o nome das coisas no domínio das relações laborais passou de ridícula a irritante.
Onde existiam trabalhadores, empregados, funcionários existem hoje «colaboradores».Milhares de colaboradores!
As relações de trabalho podem assentar num qualquer vínculo de colaboração.
A avalanche de “colaboracionismo” que perpassa no mundo laboral, como se o nomem das coisas alterasse a substância do acto, é no entanto absurdamente bacoca.

12 novembro 2008

 

Desabafo

Ainda me hei-de rir de alguns velhos amigos que se sentam no Parlamento e que ocupam lugares de destaque na política. Tão caladinhos, tão disciplinadinhos, tão ciosos de não “fazerem ondas”. Nem todos têm o estatuto de Alegre (pelos vistos, só ele o tem), para desalinharem, levantarem a voz contra a corrente, assumirem posições autónomas, erguerem no ar uma chama que se pareça com o velho socialismo (afinal, não só metido numa gaveta, mas definitivamente ultrapassado).
Agora um aparte que não vem nada a propósito: a maior parte dos políticos já se profissionalizou na política. Já não sabe fazer mais nada. Já não espera nada senão da política. É por isso que a “classe” dos políticos também forma uma corporação como outra qualquer, dotada de interesses próprios, e que nem o ritual e a retórica da representação democrática conseguem esconder.

 

Coisas que fazem espécie

Por este andar, de crescendo em crescendo, os professores acabarão por vir todos para a rua. Ainda por cima, sendo-lhes vedado reunirem-se nas escolas para discutirem os seus problemas, não têm mesmo outra alternativa.
A explicação de que a reacção dos docentes se deve a que lhes estão a ser “retiradas regalias” e que ninguém aceita tal coisa cheira-me a velhos maniqueísmos, muito úteis para dar a ideia de que se está no caminho certo do progresso e das reformas necessárias, a que se opõe o “reaccionarismo” dos que não querem abdicar dos seus privilégios. É uma dialéctica redutora que já deu os seus frutos e que tem resquícios de ideologias afinal proscritas por quem delas se serve.
Outra coisa que não me cabe na cabeça são as quotas: x de excelentes; y de muitos bons; z de bons. Mas, afinal, que base científica ou que teoria antropológica é que permite fazer uma tal distribuição pré-formatada de méritos? E em que categoria cabem os inventores dessa grelha de classificações?

09 novembro 2008

 

"Parabéns a Você" e Direitos de Autor


07 novembro 2008

 

Luis XIV e a Madeira

L'état c'est moi!
E o Estado de Direito?

06 novembro 2008

 

Barack Obama

Nem sempre posso exprimir aquilo que desejo em momento oportuno, agora que tanto conta o tempo real dos acontecimentos. Por um lado, os afazeres profissionais impedem-me de o fazer; por outro, a imediaticidade que um blog exige nem sempre se coaduna com o tempo de reflexão. Neste caso, porém, mesmo não sendo em cima do acontecimento, a importância deste justifica umas palavras. Refiro-me à eleição de Barack Obama como presidente dos Estados Unidos da América.
É um facto irrecusável que tal eleição não deixou ninguém indiferente. Provam-no as reacções que por todo o lado se fizeram sentir. E mesmo que se possa dizer que a margem que separa Republicanos e Democratas é muito estreita, mesmo que, em termos de política externa, o rumo que os Estados Unidos vão seguir possa não diferir muito, sempre subsistem diferenças que não são nada despiciendas. Foi assim com Clinton, quando comparado com o antecessor e com o sucessor, pesem embora algumas “patacoadas” em que ele incorreu, não no plano sexual, evidentemente, mas em questões verdadeiramente relevantes.
Por isso, esta eleição não deixou ninguém indiferente, como disse, bastando recordar as palavras de José Saramago, ou de Fernando Rosas ou até de Fidel de Castro. Isto, não só pelas características humanas e políticas do vencedor da Casa Branca, como também pelo movimento avassalador que suscitou e ainda (pois então?) pela cor da sua pele e pelo que representa, nos Estados Unidos da América, a eleição de um presidente negro (ainda que não negro retinto e ainda que pertencente às elites). As lágrimas de Jesse Jakson foram comovedoramente belas. Se a eleição de Barack Obama vai corresponder a expectativas porventura demasiadamente elevadas e se vai ou não inaugurar uma nova era, é o que se vai ver. Para já, o acto da sua eleição foi um verdadeiro acontecimento mundial.

05 novembro 2008

 

Notícias do vírus

Foi aberta a primeira brecha no saudável sistema financeiro português. O Banco Português de Negócios (BPN) foi atacado pela crise; gripou com os primeiros frios invernais e o Governo resolveu atalhar a doença com a mezinha radical que vem sendo aplicada noutros países, nacionalizando-o. Parece que a doença já vinha de trás, desde antes de a epidemia se ter declarado mundialmente e, ao que se diz, a moléstia tem origens obscuras, que radicam numa pouco salutar gestão dos seus recursos ou mesmo em desvios que apontam para práticas pouco recomendáveis e não condizentes com as normas impostas pelos códigos e regulamentos das boas condutas. O que é certo é que o Governo decidiu atacar, antes que o vírus se comunicasse a outros organismos, por ora considerados saudáveis.
Ao que consta, o ex-ministro Miguel Cadilhe andava a tentar endireitar o banco e alvitrava para a sua cura uma injecção de alguns milhões de euros, que o Estado deveria, como bom enfermeiro, na sua redescoberta função de curador de maleitas financeiras dos bancos privados, ministrar-lhe com a seringa bem assestada na região nadegueira, alçada à oportuna intervenção pública. Em vez disso, o Governo optou pela nacionalização, isto é, ao invés de lhe ministrar a solicitada injecção de capital penicilina, mete o banco no grande hospital em que se estão a converter os Estados, para evitar o espalhamanto do foco infeccioso. Depois de expurgada a infecção, é provável que se lhe dê alta e o banco, já refeito, possa retornar à livre iniciativa privada.

04 novembro 2008

 

Obama, o redentor

Hoje é o dia da redenção da "América". Obama é o redentor, o libertador.
Obama vai redimir a "América" dos seus tempos sombrios da era Bush e fazê-la regressar à sua generosa hegemonia universalista.
Este é um sentimento muito generalizado.
Desculpem, mas eu não acredito.
A "América" nunca foi como a pintam. Não há impérios benignos.
E Obama não é, ou não pode ser, o que dizem ou querem que seja.
Ele será o presidente dos EUA e governará segundo os interesses dos EUA. E eu não estou convencido de que o que é bom para a "América" é bom para o mundo.
Para mais, Obama tem um problema: é que ele, não sendo propriamente negro, também não é branco; mas terá que provar que é branco na alma, se quiser ser respeitado, ter credibilidade interna. Ou seja, terá que provar que é tão duro (ou mais) como os duros a defender os interesses nacionais. Ele vai estar sempre sob suspeita por largos e influentes sectores da população de falta de firmeza, de falta de patriotismo até. Terá que esforçar-se por desmentir essas suspeitas. E isso é perigoso.
O que se pode esperar de melhor de Obama é que feche Guantánamo, como já prometeu. Que feche o campo, revogue toda a legislação publicada para o julgamento dos "combatentes inimigos" e entregue os prisioneiros aos tribunais comuns. E que indemnize todos aqueles muitos que já foram libertados por falta de provas, mas que passaram anos presos e sujeitos a tortura.
Eu penso que ele não pode deixar de fazer isso. Terá todo o interesse em fazê-lo. Vai ser aclamado universalmente como o "grande libertador" do nosso tempo.
Mas eu só vendo mesmo é que acredito.

03 novembro 2008

 

Sabedoria lusitana (ou americana?)

António Frias, um empresário português de Massachussets, é um doador dos candidatos presidenciais nos EUA, dos dois candidatos simultaneamente!
Ele explica, com filosofia, que a melhor estratégia de um empresário nos EUA é contribuir para as campanhas presidenciais de ambos os partidos...
Enfim, ele gosta mais dos republicanos, mas é mais seguro dar aos dois...
Um empresário não se pode dar a fantasias ideológicas!
Sabedoria ancestral açoriana ou cultura empresarial de vanguarda?

 

Obama não é afro-americano

Muito se tem falado no grande salto em frente que a candidatura e provável eleição de Obama constitui: em poucas décadas a "América" teria passado de um quase apartheid à eleição de um negro, de um representante da comunidade oprimida pelas leis raciais, para seu presidente.
Mas não é nada disso. Obama não vem da minoria negra, não é um descendente dos escravos outrora transportados para a América. É filho de um queniano que foi estudar para os EUA e que depois de licenciado voltou para o Quénia, deixando-o nos braços da mãe branca. Quem o criou foi a avó branca, não a do Quénia, que ele só viu duas ou três vezes.
Obama, em suma, não descende dos negros afro-americanos, nem viveu nunca entre eles. Não é, de forma alguma, um deles. Muito menos pensa como eles.
Caso fosse mesmo afro-americano, teria alguma hipótese de ser sequer candidato?

 

A banca, segundo Brecht

Pior que assaltar um banco, só mesmo fundar um banco. Quem o disse foi Brecht há algumas dezenas de anos e o tempo cada vez lhe dá mais razão.

02 novembro 2008

 

estados de alma

A sobranceria financeira resiste sempre. Mesmo quando os castelos de cartas onde reina começam a cair.

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