31 maio 2006

 

Os problemas da democracia maioritária

Muito interessante, como sempre (mesmo quando se discorda), o artigo de Vital Moreira ontem no Público, intitulado "As farmácias e o poder".
O que agora me importa realçar é o seguinte: a anunciada "liberalização" do sector farmacêutico foi pactuada directamente entre o Governo e a ANF, sem darem cavaco a ninguém. E agora esse pacto vai ser proposto pelo Governo à AR, que obviamente o vai aprovar (ou "carimbar", na expressão forte de V.M.), devido à maioria absoluta de que aí dispõe o partido que governa.
É assim a democracia maioritária: o executivo põe e dispõe, o legislativo "carimba". Não existe fiscalização parlamentar da acção governativa. O equilíbrio de poderes ressente-se fortemente deste estado de coisas.
Essencial é pois a afirmação do poder fiscalizador de outros órgãos de soberania que não sejam tributários da mesma maioria. No nosso caso, o PR e os tribunais. Que assim não podem ser encarados como "forças de bloqueio", mas sim como indispensáveis contra-pesos para equilíbrio do sistema político.

29 maio 2006

 

«Truthiness» e «bocas»

A American Dialect Society, nomeou como palavra do ano de 2005, «Truthiness» definida assim pelo satírico Stephen Colbert: “the quality of stating concepts or facts one wishes or believes to be true, rather than concepts or facts known to be true”.
Tal palavra que corresponde de forma integral ao espírito de 2005, marca também o de 2006, em especial na blogosfera, como se pode ver por esta «boca» vestida de pergunta (que, estranhamente para mim, merece propagação por via da nota 811 daqui).

PS1- Este postador para além de não assumir a etiqueta «do» quando muito «está no», até tem a ilusão de que quando não está no exercício de funções ainda menos deve ser etiquetado como «do», é apenas alguém ou mesmo um zé ninguém a botar postas (e muito menos representa quem quer que seja quando o faz).
PS2- A minha «boca»: é sempre reconfortante constatar que existe algum jornalismo em que se associa ao exercício imparcial e objectivo da actividade profissional, alguma sofisticação cultural como a de dar expressão ao conceito luhmaniano de «redução da complexidade», do género nesta matéria não interessa o que ele diz queremos é saber se ele é «do», porque se for «do» já sabemos ao que anda pois os «do» são ... o que são, e se alguém souber de um que não é acuse-se.
PS3- É óbvio que certos hipotéticos melindres são injustificados, pois nada disto tem a ver com rigor factual, mas sobre o que se acha que é verdade, ou para recorrer outra vez a Stephen Colbert, «I don't trust books. They're all fact, no heart. And that's exactly what's pulling our country apart today. 'Cause face it, folks; we are a divided nation. Not between Democrats and Republicans, or conservatives and liberals, or tops and bottoms. No, we are divided between those who think with their head, and those who know with their heart».

28 maio 2006

 

Timor

E a luta, a guerrilha, o cheiro a morte continua…

Quem passa mal são os timorenses, cada vez mais pobres.

Ficam com as casas destruídas, morrem, estão sós …

Os media vão dando notícias a toda a hora, repetidas, sem novidades, algumas contraditórias…

A verdade é que os estrangeiros vão saindo de Timor… mas os timorenses ficam lá!

Os políticos locais, os representantes do povo timorense, estarão a fazer tudo ao seu alcance para repor a paz…

Mas há que perguntar: como é que um “bando de dissidentes” (pelas notícias portuguesas, são uns tantos oportunistas que só estão interessados em se auto-promoverem…) pode desestabilizar um país de tal forma que é preciso a intervenção de militares estrangeiros?

 

O fogo das palavras…

O calor parece que está a chegar e com vontade de ficar…

Os incêndios saltaram a galope (lê-se em notícias, desde a última sexta feira, 26/5)

Todos estamos fartos de ver o país a arder,
ansiámos que a tão propagandeada estratégia do governo no "combate aos incêndios florestais” tenha o êxito ambicionado e prometido!

Mas será que merecemos essa esperança?

Este ano vai ser diferente?

Ou só será diferente se o tempo o consentir?

No fim do verão, gostava de poder voltar aqui para aplaudir um Portugal mais verde…

 

Aung Suu Kyi

No passado dia 26/5 a ONU, através de Kofi Annan (andava pelo oriente, de visita oficial à Tailandia), pediu ao governo de Myanmar a libertação da líder da oposição – também Prémio Nobel da Paz – Aung Suu Kyi (que, dos últimos 16 anos, passou 10 anos presa, ora na prisão ora em prisão domiciliária).

Na semana anterior, Kofi Annan havia enviado o seu secretário adjunto para os Assuntos Políticos a Myanmar, o qual teve reuniões com o general Than Shwe, presidente da junta militar que governa o país e, também, com a líder da Liga Nacional para a Democracia.

Os EUA, “vigilantes e sempre preocupados com direitos humanos”, comunicaram que haviam reiterado o mesmo pedido…

Myanmar prometeu rever o caso e responder em 24 horas.

Uma onda de esperança renasceu mas, a resposta foi: a prorrogação da prisão domiciliária de Aung Suu Kyi por mais um ano!

Aung Suu Kyi que já conta com 3 anos de prisão domiciliária, vai ter que aguentar pelo menos mais um ano…

Os EUA, sempre atentos, naturalmente condenaram a prorrogação da prisão domiciliária.

Agora, se outros sobressaltos não ocorrerem… e vivemos em tempos de ditaduras… só daqui a algum meses, voltaremos a ter notícias do presídio de Aung Suu Kyi.

Os “grandes líderes e afins”, que toda a gente pensa que “controlam o mundo”, já podem dormir descansados… cumpriram a sua missão… e o resto, não está nas mãos deles!

Qualquer dia estão todos sentados à mesma mesa, discutindo violações dos direitos humanos, debatendo sempre com as habituais cumplicidades…

 

A Lei Quadro da Política Criminal – uma lei programática (I)

A publicação da Lei Quadro da Política Criminal, permitiu retomar a análise no Sine Die (aqui) de um diploma cuja concepção já tinha merecido alguns considerandos neste blog (cfr. também de Maia Costa aqui, aqui e aqui e ainda do agora postador 1, 2, 3, 4 e 5).

Num ponto parece fácil o consenso: uma «lei quadro» que não tem, no plano formal e jurídico-constitucional, valor reforçado é insusceptível de vincular a superveniente actividade normativa do parlamento (sejam as «leis sobre política criminal» previstas no art. 7.º ou quaisquer outras leis sobre política criminal).
Mantém-se, por outro lado, o equívoco formal que já tinha sido assinalado aqui, fixar-se (pretensa auto-vinculação?) um procedimento limitador do poder, nomeadamente de iniciativa, da Assembleia é, no mínimo, constitucionalmente duvidoso e relativamente a futura actividade legislativa inócuo (ou seja a obrigatoriedade de proposta do Governo também pode ser desprezada no futuro).

Pelo que, resumindo «bloguísticamente», a lei é sobretudo «programática».
O que não afasta o seu interesse, porque, repetindo-me, «a actuação da justiça, exercida por burocracias profissionais, não pode ganhar prevalência na articulação com os poderes democráticos e a circunstância de nalguns casos os órgãos judiciários realizarem as intenções político-criminais do sistema legal, por exemplo em sede de soluções de diversão e de sanções penais, não ilide antes reforça o postulado da sua subordinação ao programa político definido pelos órgãos de soberania politicamente conformadores e democraticamente legitimados, em particular a Assembleia da República através das suas leis» (aqui onde também se fala de outras condicionantes do contexto constitucional).
Em síntese, mais do que a dimensão normativa desta lei quadro importa identificar as opções programáticas da mesma (já que as normativas resultarão das futuras, e eventuais, leis sobre prioridades de política criminal).

27 maio 2006

 

Os «media» e o efeito de mediatização

Ainda com respeito à realidade mediática, talvez valha a pena reflectir nas respostas da curta entrevista dada pelo intelectual francês Rémy Rieffel à revista «Visão» do passado dia 25 de Maio. Aí, ele aborda questões fundamentais, como a de certas especificidades dos «media» que se convertem em factores perversos que condicionam e deturpam a realidade – o chamado «efeito de mediatização». Por exemplo, a prevalência da «imagem», no sentido de «aparência», sobre a substância. Na área da política, que é a que ele foca em especial, a relevância da «telegenia» como critério fundamental, elidindo os aspectos que realmente contam ou deviam contar. Cita o caso da candidata potencial do PS – Ségolène Royal – em que a imagem e a comunicação atraente em termos mediáticos passam à frente do programa e das ideias. E é isso que conta e acaba por impor-se.
O mesmo sucede em relação aos deputados mediáticos, em detrimento dos que não têm essa característica. A comunicação social dá relevo aos primeiros e alheia-se dos segundos, não obstante haver neste grupo pessoas muito competentes, muito sérias e muito eficazes. «Deste modo - diz ele – o público tem uma imagem falseada da realidade. (…) Privilegia-se a imagem de profissionais da política e negligencia-se gente que faz seriamente o seu trabalho».
Em relação aos tempos, afirma: «O tempo mediático é a velocidade, o efémero, o directo. É uma lógica que leva ao espectáculo e à «monstração». Já o trabalho político inscreve-se no tempo, implica reflexão e não joga sistematicamente na transparência. Na decisão política há também uma parte de segredo. Os media pedem cada vez mais transparência, mas a transparência é um logro».
Isto podia aplicar-se e aplica-se a outras profissões, como o demonstrou o sociólogo Pierre Bourdieu, que neste momento não tenho à mão para o citar. Nos seus trabalhos, nomeadamente sobre a televisão, ele mostrou que a televisão instaura lógicas perversas no seio das diversas profissões, passando por cima das regras e princípios próprios que as regem, dando muitas vezes relevo a pessoas medíocres, que jogam precisamente no mediatismo para se imporem à margem de critérios que constituem a única base séria de reconhecimento do valor e do mérito profissional.
E em relação aos tempos e à transparência, como também em relação às características mediáticas de alguns personagens, quão bem ou melhor se adequam as palavras de Rieffel à realidade judiciária.

 

O carrilhismo

Pego na deixa do Artur Costa. Mas o meu ponto de vista é um pouco diferente. Vejamos. Carrilho tentou trazer uma receita nova para a política: um enxerto erudito numa cepa populista. O resultado foi um populismo aberrante que a breve trecho se esgotou. E sem maior glória do que a de um outro infortunado, Santana Lopes, outro "ansioso de consideração social".
Fazem sorrir agora as queixas de Carrilho contra a comunicação social. Quem dela beneficiou tão copiosamente, utilizando para tanto truques tão vulgares como a imagem sedutora da namorada e agora mulher, como pode agora arvorar-se em vítima? Foi ele que arranjou a lenha toda para a fogueira.
E o livro "Sob o signo da vaidade" (ou "verdade", já não sei bem) faz-me lembrar aquelas estrelas cadentes do cinema que, para se fazerem lembradas, armam escândalos, fazem queixas à polícia, metem acções nos tribunais, etc., para virem nas manchetes. E Carrilho teve todas as manchetes e mais alguma (a do "Prós e contras"). Não tem portanto razão para se queixar agora.

 

Os «media» em questão

Falaram-me do programa «Prós e Contras» da última segunda-feira como tendo tido um bom nível. Porém, não tenho o hábito de ver televisão e, por isso, perdi-o. Já tenho perdido outros programas, mas na vida alguma coisa se tem de perder. É uma questão de opção. Se a televisão fosse genericamente de qualidade, não sei o que havia de ser de mim. O que me vale é que ela normalmente não vale a pena e, por isso, perder uma coisa boa, lá muito de quando em quando, é um risco que praticamente não conta.
Eu sabia que ia lá o Carrilho por causa do livro que ele escreveu, mas não dei ao facto qualquer importância. Também a não tinha dado ao livro, que me pareceu, quando anunciado, um ajuste de contas, muito à Carrilho, com a sua «pose» insofrível, pelo desaire da sua desastrada campanha eleitoral. Posso-me ter enganado e talvez o livro até valha a pena, independentemente da personalidade de Carrilho. Mas o que é facto é que ele parece ter tido o mérito de agitar as águas no seio do poder mediático. Prado Coelho já tinha terçado armas pelo amigo em algumas das suas crónicas e até se deu ao luxo de escrever um artigo de maior fôlego no suplemento «Mil Folhas» a dar estatuto e grandeza à indignação carrilhista, desancando no fraco jornalismo que por aí se pratica e denunciando o que apelidou de «razão jornalística» e a desgraçada escrita de tantos jornalistas que «escrevem com os pés» (e se calhar também com os pés falam). Mas eu sempre levei isso à conta de generosa e desculpável cumplicidade para com o amigo, correligionário e confrade académico. Também admito que me possa ter enganado e que, por detrás ou por baixo dessa aparência, haja uma grande e boa razão. Se assim for, tanto melhor.
O que é certo é que, nestes últimos dias, a crítica aos «media», a esse poder que é de todos os poderes jurídicos e fácticos o que está realmente a salvo de qualquer escrutínio, até porque ele parece ser o poder escrutinador por excelência e se resguarda sempre de qualquer crítica séria ou veleidade de intervenção no imenso guarda-chuva da liberdade de imprensa e de informação, a crítica aos «media», dizia, tem aparecido em fogachos que têm despontado de vários lados. E desferida por pessoas que merecem a maior credibilidade. Desde o jornalismo sensacionalista e demagógico, que é como que uma pecha estrutural da prática jornalística, agudizada pelo aparecimento dos grandes meios de comunicação social modernos e consequente encarniçamento da competição e da conquista de audiências, até ao atropelo flagrante de normas deontológicas e práticas de uma grotesca espectacularidade, à promiscuidade entre os «media» e os baixos interesses do poder político, em que se concedem benesses e comedorias à mesa do orçamento a troco de diversos favores, quer traduzidos em acções, quer em omissões, e outros poderes fácticos, tudo isso tem despontado em várias manifestações críticas. Ainda ontem, sexta-feira, António Pinho Vargas, nas «Cartas ao Director», publicava no «Público» um texto de denúncia vigorosa, que terminava desta forma patética: «Berlusconi, podes vir! Está tudo preparado para ti!». E Manuel António Pina, com a sua autoridade de competente jornalista e reconhecido escritor, escrevia na quinta-feira, na sua crónica do Jornal de Notícias, contundentemente intitulada «Delinquência deontológica»: «Nunca como hoje houve tanta canalhice e tanta impunidade nos jornais e na informação televisiva (pelo menos nos 35 anos que levo de jornalismo). E nunca como hoje os homens e mulheres sérios que há no jornalismo tiveram, face à delinquência deontológica triunfante, tantos motivos de vergonha.»
Pergunto-me: chegou finalmente a vez dos «media»? Será que os «media» comportam realmente uma crítica ao seu poder, ou será tudo uma operação de cosmética? E foi Carrilho (apesar de Carrilho) que despoletou esta crítica? Bem haja!

 

Ainda a reprodução medicamente assistida

Tenho que pedir desculpa por um lapso meu no texto do dia 24 sobre este tema. É que a lei já estava aprovada na generalidade e faltava apenas portanto a aprovação global final, o que ocorreu no dia seguinte. A entrega da petição pelos opositores foi portanto uma tentativa "in extremis" de paralisar o processo legislativo, mas que não teve sucesso. Que não teve sucesso na AR. Mas as coisas ainda não chegaram ao fim. Falta a promulgação do PR. E este é um primeiro grande teste a Cavaco Silva: vai bloquear uma lei que, embora maioritariamente apoiada à esquerda, recolheu também apoios na direita, que é patrocinada esmagadoramente pela comunidade científica e que representa um verdadeiro avanço civilizacional? Vai ceder a um dogmatismo retrógrado que a reprova? Este pode ser um primeiro sinal do mandato presidencial que vamos ter.

 

A lei das leis de política criminal

Sorrateiramente, saiu no dia 23 passado a "Lei-Quadro de Política Criminal". E logo com uma grande novidade relativamente à proposta de lei. É que onde antes se previam resoluções da AR para a fixação das directivas de política criminal, agora estabelece-se que serão leis a definir essa política. Daí resultam vários problemas que não parecem fáceis de resolver. Sob reserva de melhor estudo, aqui deixo enunciados os que me parecem mais evidentes.
Em primeiro lugar, esta "lei-quadro" é, em termos constitucionais, uma "mera" lei, isto é, não é uma lei orgânica, não tem valor reforçado. E daí que não possa, parece-me, fixar um regime-quadro de outras leis (que têm idêntica força normativa).
Depois, essas leis de política criminal que hão-de vir à luz são leis esquisitas, porque não têm força obrigatória geral, como é inerente às leis. De facto, elas não vincularão os tribunais. Apenas obrigarão o Ministério Público, os órgãos de polícia criminal e o Governo. Aliás, não vincularão propriamente o MP e os OPC; apenas os obrigará a "assumir" a tal política criminal. E essa "assunção" (Nossa Senhora nos valha!) é mediada pela "interpretação" que o Procurador-Geral da República faça, pois a ele compete emitir as directivas, ordens e instruções necessárias para o cumprimento da lei. Estas "leis de política criminal" não parecem ser autênticas leis, mais parecem actos normativos atípicos, especificamente criados neste âmbito restrito da política criminal, o que os vulnera da interdição imposta pelo nº 5 do art. 112º da Constituição.
Há depois um problema de fundo, que resultava também da proposta de lei: caso a AR considere que o PGR não "cumpriu" a lei, o que poderá fazer, se ela não intervém no processo de nomeação (e de demissão) do PGR? Poderá propor a sua demissão, é certo; mas não será essa uma posição de grande fragilidade?
Por hoje, basta, mas este é obviamente um tema a retomar.

26 maio 2006

 

O preço pago pela "guerra ao terrorismo"

Disse há dois dias Irene Khan, secretária-geral da Amnistia Internacional: «Os governos, colectiva e individualmente, paralisaram as instituições innternacionais e dispenderam os recursos públicos na prossecução de interesses securitáriois tacanhos; sacrificaram princípios em nome da "guerra ao terrorismo" e fecharam os olhos a violações maciças dos direitos humanos. O mundo pagou um elevado preço, em termos de erosão de princípios fundamentais, resultando em grandes danos para as vidas e quotidianos das pessoas comuns».
Importa-me salientar estes dois pontos: o sacrifício de princípios considerados definitivamente adquiridos a partir de 1945, ano que se anunciava como o início de uma nova era da humanidade, depois do pesadelo da 2ª Guerra Mundial; e o sofrimento, tão desigualmente distribuído, no mundo de hoje, desigualdade que esta última "guerra" não tem parado de agravar.
A obsessão securitária imposta ao mundo pelos EUA eliminou de todo da agenda os problemas da fome, das doenças endémicas, do desenvolvimento, do ambiente, etc. E recuperou uma série de práticas atentatórias dos direitos humanos, dos tais grandes princípios que se julgavam adquiridos para sempre, chegando a admitir e justificar a própria tortura.
A "guerra ao terrorismo", pensam os estrategas de Washington, não tem quartel nem regras. Vale tudo (mesmo tirar olhos!). Acenando com o fantasma da "guerra", tudo fica justificado. Não é por acaso que se fala em guerra e não em simples combate. A guerra é tendencialmente total. Por isso mesmo nos anos 80 Reagan (esse arauto do sec. XXI) apelidou de "guerra" a luta contra as drogas. Foi aliás com essa "guerra" que começou a cruzada imparável contra os direitos humanos, em concreto contra os direitos do arguido. É claro que, sendo esses arguidos os traficantes, todos os atentados aos direitos de defesa se apresentavam como justificáveis ou, no mínimo, aceitáveis...
Mas, depois, todas as aberrações introduzidas no "direito penal das drogas" começaram a contaminar todo o direito e o processo penal...
A "guerra ao terrorismo" tem elevado ao superlativo (absoluto) todos os danos que a anterior guerra provocou. Ainda não sabemos onde nos levará. Possivelmente, ainda a procissão vai no adro.

 

O patriotismo à janela

Aí está de novo o fervoroso patriotismo futebolístico em todos os lares portugueses, afixado nas janelas e varandas de Portugal. (É um negócio bom para os chineses, é um autêntico "negócio da China). É um patriotismo de plástico, popularucho, tablóide. Não espanta que seja estimulado por certos órgãos de comunicação. E por certas "autoridades". Estão todos ao mesmo nível. Rasca.

24 maio 2006

 

Os pilares da democracia

Segundo Vital Moreira são três: a democracia representativa, que assenta na representação política; a democracia directa, através do qual os cidadãos se pronunciam directamente sobre questões políticas e legislativas; e a democracia participativa, que consiste na participação de organizações sociais em órgãos decisórios ou consultivos do Estado.
Falta porém um pilar, sem o qual os outros caem: é a separação e equilíbrio entre os poderes do Estado. Sem esse pilar a democracia mais tarde ou mais cedo torna-se ditadura.

 

A reprodução medicamente assistida

Ainda não está sequer aprovada na generalidade no plenário da AR e já está "ameaçada" de referendo a legislação sobre reprodução medicamente assistida. (O referendo é o melhor método em Portugal de bloquear as questões.) Foi este o procedimento que bloqueou em 1998 a despenalização da IVG, embora então tudo tenha decorrido de forma ainda mais caricata.
Dizem agora que estão recolhidas 75 000 assinaturas a pedir o referendo, colhidas, segundo os promotores, nas universidades, nos centros comerciais e em "grandes reuniões de pessoas como a inauguração do Campo Pequeno"; mas também em Fátima (ah!, cá me parecia) na última "grande reunião" aí ocorrida.
O que está em causa para os promotores do referendo é sobretudo a questão das investigações nos embriões excedentários. É o dogma da aquisição da personalidade com a concepção que eles não podem ver contestado. Esquecendo que, ao recusarem a investigação em embriões, estão efectivamente a tentar impedir a ciência de se habilitar com conhecimentos destinados a proteger a vida de muitos dos já nascidos, esses que são, ninguém põe em dúvida, pessoas...

 

Balcanizar oa Balcãs

O processo de balcanização dos Balcãs não pára. Agora foi o Montenegro. Dir-se-á que já lá vai o pior e que o povo é quem mais ordena. Tudo bem. Mas a UE tem dado desde há anos uma mãozinha para estilhaçar a ex-Jugoslávia. Possivelmente a UE gostaria agora que tudo ficasse como está, ou melhor, como está mais a independência (anunciada) do Kosovo. Mas será possível travar o prosseguimento da "balcanização" dos Balcãs? Quem segurará os albaneses da Macedónia, depois do apoio que lhes deram? A Bósnia (esse estado fantasma) quanto tempo se manterá depois de saírem as tropas "amigas"? Ou será que essa ocupação é por tempo indefinido? E a própria Sérvia não sofrerá pulsões secessionistas no norte?Os aprendizes de feiticeiro nunca mais aprendem?

 

Lá como cá

Já andava há um tempo para transcrever uma passagem dum texto que li no «Le Monde Diplomatique» do passado mês de Abril (versão portuguesa), assinado por Frederic Lebaron e Gérard Mauger, aquele, sociólogo, professor da Universidade de Picardia e este, sociólogo, director do CNRS. Apeteceu-me citá-los sobretudo por causa de uma série de artigos de opinião que tenho lido na imprensa portuguesa de respeitáveis colunistas e que batem a tecla dos «privilégios» conquistados à sombra dos antigos direitos sociais e económicos, entoando o «cântico negro» da nova moda: trabalhar mais e por menos dinheiro, reformas retardadas e com menos direitos, precariedade de emprego, os «privilégios incomportáveis» do funcionalismo público, etc.
Aqui vão, pois, algumas passagens significativas daqueles autores:
«A nova retórica reaccionária, longe de se apresentar em França como uma figura invertida da retórica progressista, adopta por conta própria o léxico do adversário. Os profetas do neoliberalismo, bem como os respectivos executantes políticos e aduladores mediáticos, todos se apresentam como «modernizadores», corajosos inovadores decididos a ultrapassar as «inércias», os «bloqueios», os «imobilismos» ou os «tabus» da sociedade francesa; exibem-se como reformadores, indomáveis adversários de todos os «conservadorismos», fervorosos partidários da «igualdade de oportunidades», resolvidos a lutar contra os «privilégios dos abastados» (a começar pelos dos funcionários públicos e, por extensão, de todos os que têm a singular regalia de «beneficiar» dum emprego estável); alardeiam-se como «realistas» capazes de afrontar de forma pragmática o mundo tal como ele é e as quimeras dos retrógrados defensores dum passado caduco; como resolutos adversários do desemprego (não «tentaram» eles tudo?); como defensores dos «excluídos» (os «out»), contra os corporativismos pusilânimes e os egoísmos nacionais (esses «in» que gozam de «emprego vitalício»), como internacionalistas, «abertos», adversários inflexíveis dos «encerramentos», das «protecções», dos «recuos soberanistas» e por aí fora.
(…)
«Deste modo, a direita neoliberal foi-se aos poucos apropriando da modernidade, da reforma, da solidariedade, do realismo, do internacionalismo, etc., esperando fazer passar uma operação perfeitamente reaccionária por um empreendimento progressista. Trata-se com efeito de reconquistar o terreno perdido pelas classes dominantes desde o período subsequente à Segunda Guerra Mundial até à segunda metade da década de 70: nos serviços públicos, na segurança social, no direito do trabalho, etc.»
Etc…

21 maio 2006

 

O fim da História

Estamos numa fase social que, pelos vistos, pode ser definida assim: não há classes sociais, no sentido de classes dominantes e dominadas, pelo que passou a fase das revoluções; não há política, porque esta foi devorada pela economia; não há consequentemente oposição e não há ideologia.
No capítulo das classes, a classe capitalista já foi abolida, passando a dar lugar a outra realidade sociológica na esfera dos modos de produção, designada ora como a classe (?) dos «empreendedores», ora dos «empregadores». Qualquer das designações tem subjacente a nova filosofia (não confundir com ideologia) que anima uma tal classe, se assim se lhe pode chamar: a filosofia do dinamismo social ou do inter – relacionamento harmónico.
Pelo que diz respeito aos trabalhadores, estes também mudaram de estatuto, passando a ser o outro elo na cadeia do citado inter – relacionamento. São os empregados que os empregadores empregam ou gente em busca de emprego, de uma ocupação profissional, sendo que cada vez há mais pessoas desocupadas ou mal empregadas, em busca permanente de um qualquer emprego ou de um emprego compatível. Por isso se diz que aqueles felizardos que têm emprego certo são privilegiados em relação aos que o não têm ou que o têm em condições precárias.
Não havendo classes contrapostas em luta umas contra as outras, o que há é uma espécie de sociedade tendencialmente horizontal, em que remanescem grupos com privilégios, conquistados à sombra da antiga sociedade reivindicativa, e outros grupos que não têm privilégios. Estes grupos não coincidem rigorosamente com as extintas classes sociais, pois há toda uma outra semântica que envolve o termo «privilégio». Privilegiado pode ser muito simplesmente, como se disse, quem tenha trabalho assegurado, ou direito a férias pagas ou até, porventura, direito a uma remuneração certa. Quem se aferre a esses antigos direitos da sociedade velha e não esteja disposto a abdicar deles em nome do interesse colectivo é um privilegiado empedernido.
A política também desapareceu, ao menos no sentido de política partidária, de esquerda ou de direita, para dar lugar à gestão eficaz da coisa económica e promover a competitividade em prol da comunidade no seu conjunto. O que há é «uma enorme convergência ao centro sobre as políticas fundamentais». Daí a crise da oposição, que subitamente se viu sem emprego e sem forma de conquistar o poder. Para conquistar o poder é preciso ideologia, alternativas, contrapropostas, e manifestamente não há nada de nada. Em bom rigor, a oposição, se quisesse ter honestidade intelectual, teria que admitir isso mesmo: que não há alternativas. Veja-se, por exemplo, o PPD/PSD em confronto com o PS. Este, segundo vários analistas (veja-se o jornal «Público» do dia 19), está a fazer a política do PPD/PSD e porventura até melhor, pelo que o PPD/PSD até deveria aplaudir. Mas, se aplaudisse, deixava de ser oposição.
Como ser oposição, pois? Eis uma dramática questão de verdadeira ontologia política.
Se calhar, perante este panorama, teríamos de admitir honestamente que não há espaço para os partidos políticos, que serão sobrevivências do velho mundo. Ou, ao menos, para o pluralismo político-partidário. Um só partido, nesta grande convergência para o centro, bastaria.
Não havendo alternativas políticas, ideológicas, económicas, há quem procure na moral e na ética a salvação. O caminho estaria num centramento em questões de justiça e de moral e na criação de elites de «conhecimento e de virtude» (João Maria de Freitas Branco, no mesmo número do «Público»).
Em suma, parece que estamos no tal «fim da História», em que já não há classes com interesses contrapostos, mas só privilegiados e não privilegiados, não há ideologias e não há oposição. E quase não há (ou pretende-se que quase não haja) Estado. Resta, então, o caminho da virtude e do aperfeiçoamento moral dos indivíduos.

20 maio 2006

 

Independência...

«Um sistema judicial independente e profissional é de importância vital não só para consolidar a democracia mas, também, para resolver questões de impunidade, de conflito e de corrupção existentes no país
É o alerta de Louise Arbour, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, depois de uma visita de uma semana ao Cambodja (ver centro de notícias da ONU de 19/5/2006).

Agora pensemos no sistema judicial português.
Que dizer?

Continuar a campanha de descredibilização, atribuindo a culpa aos “corporativos magistrados”?

Interferir politicamente na independência, com mais ou menos dissimulação?

Ou debater, com responsabilidade e seriedade, envolvendo todos os intervenientes necessários, para encontrar ajustadas soluções para os problemas que existem (v.g. lentidão processual localizada)?

E esses debates sérios e responsáveis estão a ser feitos?
Com quem?
E há vontade de ouvir?
Ou continua a ser o ... quero, posso e mando?

 

Prisões, técnicas de interrogatório, tratamento desumano…

Porque será que, ainda em 19/5/2006, o Comité contra a Tortura da ONU recomendou (além do mais) ao EUA, o encerramento do centro de detenção de Guantanamo (Cuba), a mudança de técnicas de interrogatório (as que levam a tratamento desumano) e a necessidade de facultar aos detidos o acesso à justiça (ou então libertá-los mas sem os enviar para países que permitem a tortura)?

19 maio 2006

 

O que se vai escrevendo lá fora

O João Possante chamou-me a atenção para este editorial do New York Times de ontem, que analisa não só os problemas gerados por um projectado inspector geral para controlar os juízes federais como o descontrolo judicial no sistema de auto-controlo vigente.
Entretanto, quando fui procurar o link do texto que o João me indicou não pude deixar de parar no editorial da edição de hoje sobre o caso, já abordado no Sine Die aqui, de Ayaan Hirsi Ali. O texto que pode ser lido aqui, com o título «uma vitória para a intolerância na Holanda», inicia-se assim: «Immigration is a political mess in America, but it's reasonably tractable compared with the problem in the Netherlands, which has seen its liberal values turned inside out by tensions between Muslim immigrants and the Dutch. The question, broadly speaking, is whether multiculturalism is possible in such a small, ethnically homogeneous nation, or whether the government will keep insisting on assimilation».

 

«Proteger a Vida sem julgar a Mulher»

Sob este lema aparentemente atractivo, um grupo de cidadãos retomou a peregrina ideia das duas deputadas "humanistas " do PS, e depois adoptada por Rui Pereira, no sentido de manter a criminalização do aborto, mas poupar as mulheres à condenação, através do mecanismo da suspensão provisória do processo.
Esta proposta, que é bem demonstrativa da incomodidade que os defensores da criminalização sentem com as consequências da sua posição, é completamente inaceitável por várias razões (e já uma ou duas vezes aqui o disse, mas direi as que forem precisas): em primeiro lugar, esta "solução" não poupa as mulheres à investigação criminal, à sua submissão ao papel de arguidas no processo e eventualmente de testemunhas em julgamento contra os que realizaram o aborto, expondo-as publicamente nessa fase do processo; por outro lado, não protege a "vida", porque não é idónea para enfrentar o aborto clandestino. O que se pretende no fundo é que as situações chocantes que alguns julgamentos dos últimos anos revelaram publicamente deixem de vir ao de cima. Mais uma vez o digo: o objectivo é esconder o problema e essa não é nunca uma boa solução para nenhum problema.

 

Finalmente, um plano para a toxicodependência!

Estava pronto desde Novembro de 2005 o Plano Nacional contra a Droga e as Toxicodependências, mas só há dias foi aprovado. É que não havia "disponibilidade de agenda" dos ministros envolvidos. É inacreditável, mas é verdade. O desinteresse do Governo pela matéria é manifesto. Sobretudo do PM, ele que foi o responsável pela Estratégia de 1999. Agora é a economia e só a economia que preocupa e manda. «A economia matou a política», diz-se hoje nos jornais. É verdade. A política acabou. Quem manda são os grão-sacerdotes da economia. E o pior é que, tendo eliminado tudo à sua volta, a economia não pára de piorar.
Mas voltemos ao dito Plano. Que constitui uma grande desilusão. Embora mantenha a fidelidade à Estratégia de 1999, escamoteia-se completamente a questão do regime legal do tráfico, o problema dos traficantes-consumidores, o regime legal do consumo.
De registar apenas um empenho manifestado em prosseguir e incrementar as políticas de redução de danos. Mas as promessas são muito tímidas quanto às salas de injecção assistida e quanto à intervenção no meio prisional. Aliás, não é de esperar que se vá gastar muito dinheiro com essa gente da droga...
Um documento muito pouco ambicioso, certamente porque não haverá apoio da tutela para mais. As preocupações na área da saúde, já se sabe quais são, não sabe?

18 maio 2006

 

Exílio dourado

A ex-somali e, ao que parece, ex-holandesa Ayaan Hirsi Ali "refugiou-se" nos EUA e foi imediatamente recrutada pelo think tank (que bela expressão!) neoconservador American Enterprise Institute de Washington. Este facto fez rolar na nossa imprensa (refiro-me sobretudo ao nosso neoconservative José Manuel Fernandes) lágrimas de solidariedade e impropérios rudes contra a falsa tolerância da Holanda, em contraste com a atitude magnânima dos EUA.
Mais uma vez a ideologia obscurece o discernimento. Em primeiro lugar, não foi a tolerante Holanda que terá retirado a nacionalidade à dita senhora, mas sim a parcela intolerante da Holanda que está no poder actualmente e que tem seguido uma política restritiva relativamente à imigração, ao arrepio da tradicional política holandesa, mas com o apoio de toda a direita holandesa e europeia. Foi a aplicação da legislação existente, e que penso que até agora não suscitara crítica por parte da ex-deputada (pelo menos tal não foi noticiado), que lhe terá ditado a perda da nacionalidade.
Em segundo lugar, a Holanda acolheu muito bem a refugiada da Somália, integrou-a como cidadã e deu-lhe acesso à actividade política e parlamentar, e ainda lhe deu toda a protecção requerida para exprimir as suas ideias, cada vez mais polémicas. Porque ela, com um vedetismo de primadonna, insistia permanentemente nas suas diatribes anti-islâmicas, com prejuízo para o diálogo com a comunidade islâmica holandesa, diálogo que é obviamente necessário para isolar o radicalismo e integrar os imigrantes muçulmanos na sociedade holandesa. E foram aqueles que lhe estimularam os seus ímpetos anti-islâmicos e a puxaram para a direita que agora a empurraram para fora. Não a tolerante Holanda, que é socialmente maioritária, mas a outra, a que agora está no poder.
Por último, não vale a pena chorar. A senhora pode agora funcionar plenamente como um verdadeiro ícone na "guerra ao terrorismo". Está no sítio certo para isso. E um exílio como este, que diabo, será assim tão mau?

17 maio 2006

 

Onde se fala dos professores, dos Mestres e do direito penal

Há professores que nos marcam positiva ou negativamente, que propiciam ou tolhem de forma indelével o nosso desenvolvimento, que constituem um pilar fundamental das nossas vidas ou que passam por nós sem darmos pela existência deles, que são imprescindíveis para a nossa formação ou que poderíamos dispensar como a folha morta de um calendário que arrancamos sem remorso. Acho que não exprimo uma personalidade particularmente acrimoniosa se disser que muitos dos professores que tive foram nefastos; muitos outros perfeitamente dispensáveis, embora rodeados de auréola, e muito poucos que realmente me tocaram. Não tenho a reverência beata dos «Mestres», e recuso-me quase sempre a escrever essa palavra. Mestres, mestres são mais raros do que um metal precioso. Mas há pessoas, tipo bacharel de Eça de Queirós, que topam Mestres no caminho com a facilidade com que se topam pedras na rua. Cá para mim digo que são uns felizardos e que a sua existência é uma espécie de Paraíso rodeado de sacrossantas figuras de Mestres.
Vem isto a propósito do professor Figueiredo Dias. O professor Figueiredo Dias passou pela minha vida universitária um pouco meteoricamente. Na altura, era ainda muito novo e dava um curso de Processo Penal que tinha a natureza de «semestral», ou seja, o equivalente aí a uns três meses de aulas. Daí que eu tenha começado por dizer que passou pela minha vida um pouco meteoricamente. Porém, as suas aulas eram incisivas, e a impressão que me deixou não foi de modo nenhum evanescente. Por outro lado, numa época de mordaça como era aquela, já se desenhava nitidamente o seu espírito crítico numa área tão sensível, do ponto de vista dos direitos fundamentais do cidadão, como a do processo penal. Mas foi sobretudo depois da minha passagem pela Universidade e ao longo dos anos que eu fui sedimentando a ideia de que ele é efectivamente um Mestre. A sua visão do direito penal e do processo penal de que me fui impregnando ao longo do tempo é pioneira e mais próxima, muito mais próxima do que eu imaginava, da formação humanista que fui adquirindo desde os tempos da Universidade, mas sobretudo à margem da instituição universitária. Uma visão que diria das mais «progressistas», se este adjectivo não estivesse tão sobrecarregado de ambiguidade nos tempos que correm, e não só de ambiguidade como também de suspeição. Uma visão que tem vindo a saldar-se num longo trabalho de «descontrução» de um discurso penalista tributário de concepções teológicas e moralistas.
O professor Figueiredo Dias foi pioneiro nesse trabalho de elaboração de um discurso penal e processual penal à escala humana, cortado de outras referências que não sejam as do próprio homem como ser de relação e como ser em devir. Não sei se isto foi verdadeiramente apercebido sequer por todos aqueles que trabalham diariamente com o direito.
Estas palavras ocorrem-me por causa do debate no Museu de Serralves, a que não pude assistir, e que veio noticiado no «Público» do passado dia 11. Como tantas vezes tem acontecido em outras ocasiões, as suas palavras conferem um sentido exaltante, pleno de um compromisso com a «inquietante aventura» humana, que para tantos de nós está implicada na escolha de uma carreira de penalista. Por mim, não tenho dúvida de que, dentro de todos os condicionalismos em que o acaso também desempenha um papel fundamental, a opção que acabei por fazer, enveredando pela área do direito penal, tem a ver com tudo isso. Para outros, a opção inversa terá a ver com a «fuga» a essa implicação, que tem os seus custos, as suas incomodidades e até as agonias próprias de quem é obrigado a mergulhar de uma forma por vezes tão visceral na condição humana. Sem transcendência alguma e com o sentimento de partilhar, em toda a sua precariedade, essa condição. Nesse sentido, pode falar-se, como Figueiredo Dias, na beleza do direito penal e na sua «sedução extraordinária», que é dar-nos «a ilusão de que se está a sondar a condição humana». Beleza e sedução tanto maiores, quanto nos faz confrontar (e isso por vezes é tão esquecido pelas tentações de padronização com que encobrimos a nossa incapacidade ou mediocridade) com a irredutível singularidade de cada pessoa: «O penalista fica na mão com uma pessoa: o criminoso. Aí é toda a condição humana, a pessoa em todos os condicionalismos».

16 maio 2006

 

As intermitências da separação de poderes

Eu sinceramente também acho que a questão do encerramento das maternidades é uma matéria de natureza político-administrativa, porque situada no âmbito da promoção de um determinado programa de saúde, e que portanto o Governo é o órgão de soberania competente para decidir. Aos tribunais administrativos caberá apenas o controlo da legalidade dos actos, nunca da conveniência dessa mesma política. Cada poder com as suas competências, de acordo com o princípio sagrado da separação de poderes.
Admiro-me, porém, que só quando o poder judicial eventualmente pisa o risco (e não estou a dizer que o pisou neste caso porque não conheço as decisões dos tribunais administrativos nem a sua fundamentação) é que vejo convocado o princípio da separação de poderes por um constitucionalista tão responsável como Vital Moreira.
Mas então quando a Assembleia da República "chamou" o Procurador-Geral para "prestar contas" na Comissão de Assuntos Constitucionais (que bem devia conhecer a Constituição, dado o nome que a distingue), quando a mesma distinta comissão aceitou ouvir os arguidos do Envelope não sei quantos, na pendência do inquérito criminal, quando foi anunciada a proposta governamental de criar uma comissão administrativa para controlo das escutas em processo criminal (e basta de exemplos), quando portanto foram praticadas ou anunciadas claras intromissões de outros poderes no território do judiciário, por que não se ouviu a sua voz (e não estou a falar de outras vozes, porque essas não chegam ao céu)? Será que só há violação da separação de poderes quando é o judicial a exceder o seu domínio? Não estará aqui mais uma manifestação bem evidente da indelével cultura jacobina que enforma as elites pensantes apoiantes do actual Governo (e não só)?

14 maio 2006

 

Retrocesso civilizacional

Quase todos os dias nos chegam notícias dos EUA que confirmam que o que ali se passa desde 2001 é uma estratégia coerente de retrocesso civilizacional, patente sobretudo no plano dos direitos civis. Por exemplo: Zacarias Moussaoui vai cumprir a sua prisão perpétua numa cela de 2,1 por 3,6 metros nela permanecendo 23 horas por dia! Isto é uma indignidade para um sistema penal democrático! (Faz-me lembrar as cinco prisões perpétuas que o palestiniano Marwan Barghouti cumpre em Israel: será que ainda cumpre a primeira? quando inicia o cumprimento da segunda? e da terceira, etc.?). Outro exemplo muito actual: o programa de escutas e de registo de chamadas telefónicas, por ordem do Presidente e sem autorização judicial. A ideia é esta: na "guerra ao terrorismo" (como também, mas em menor medida, na "guerra à droga"), as regras de investigação são outras, isso de "garantias" dos arguidos e das pessoas em geral é uma velharia para colocar no baú, o Presidente é que sabe o que é bom para os americanos. E estes, deve-se reconhecer, aturdidos pela simples palavra "terrorismo", em grande número deixam-se levar pela "música" presidencial.
Mas o Presidente, anuncia-se, prepara mais algumas medidas: uma investida nos tribunais, com uma vaga de nomeações de juízes conservadores (vamos ver como se aguenta o poder judicial, tradicionalmente cioso da sua independência); uma proposta de emenda constitucional para proibir o casamento homossexual e mais restrições à prática do aborto. É efectivamente toda uma investida profunda e sistemática no âmbito dos direitos civis, pondo em crise a tradicional imagem liberal de que os EUA usufruem no estrangeiro.
E atenção: há o perigo de, depois do George H. e do George W., vir o Jeb Bush continuar a obra do pai e do irmão. (E cuidado: ainda há mais irmãos Bush!) Os americanos que se ponham a pau. As baterias não estão só viradas para o Irão e outros demónios...

 

Mãos limpas?

Gosto sempre de ler o “Diário”, de Maria Filomena Mónica, na Pública (suplemento do Público) ao domingo.
Hoje, como é seu hábito, foi mais uma vez “certeira” na sua análise…

A diarreia legislativa já faz parte das sucessivas políticas burocráticas que vão adormecendo com o poder.
Muitas estratégias sedutoras são publicadas no DR mas, o certo, certo, é que tudo vai ficando na mesma (outras vezes até fica pior) …
Os manifestos de intenções, tão caros aos governos, não conseguem intervir eficazmente sobre os problemas de fundo que vão resistindo e sobrevivendo ao longo dos anos.
Claro que todos gostavamos que tudo melhorasse, que Portugal evoluisse e elevasse o seu nível económico etc., etc...

Ficamos cheios de “inveja” (espero… no caso de ainda não termos atingido a indiferença apática) quando ouvimos que a vizinha Espanha em breve atingirá o nível dos alemães.
E nós?
Há anos que se fala e vive a crise, sendo os prognósticos sempre desencorajadores.
É assim tão dificil encontrar soluções?

Precisamos de acreditar (colectivamente) que somos capazes, que temos garra, que nos podemos levantar!
Os media tem um papel importante nessa mudança de atitude dos portugueses.
Mas, também não seria eficaz, para elevar a nossa auto-estima, que o exemplo viesse de cima?
Lendo Maria Filomena Mónica, interroguei-me: quando começará a “limpeza” (profunda e séria) nos Ministérios?
Claro que não estou a pensar em jobs for the boys…

12 maio 2006

 

«Os representantes do povo parecem por vezes imaginar que são o próprio povo»

Pego na oportuna "revisita" proposta por Paulo Dá Mesquita à Constituinte e concretamente nas palavras do deputado constituinte do PS Sousa Pereira, ao proclamar que, em democracia, só os "eleitos do Povo e mais ninguém" têm o poder de deliberação própria e independente e que as magistraturas têm de ficar submetidas a um qualquer controlo do executivo. Uma afirmação absolutamente emblemática da cultura jacobina que enformava a advocacia oposicionista e que foi transportada para a Constituinte pela mão do PS, que acabou por ceder em grande medida às posições contrárias do então PPD.
Mas a cultura jacobina manteve-se com enorme vigor no PS até hoje, qualquer que seja a "sensibilidade" conjunturalmente dominante. Porventura, com Alberto Costa, o jacobinismo terá atingido um dos pontos mais altos (talvez só superado no consulado de Ferro Rodrigues).
Não só o PS sofre desse mal. O BE comunga da mesma perspectiva: o poder dos "eleitos do povo" não pode ser limitado por quem não é eleito.
O jacobinismo é um traço característico do constitucionalismo francês, que se tem ali mantido vigoroso ao longo do tempo, por exemplo através do estatuto de impunidade do PR (e Chirac tem sabido bem aproveitar-se dele!) e do foro especial para os titulares de cargos políticos. A ideia de que parte, que é congénita ao constitucionalismo francês, é a de que o povo exprime-se só através dos seus representantes, que estes são a verdadeira e única voz do povo e que portanto o parlamento, e também o PR, quando eleito directamente, não podem ser limitados nos seus poderes por titulares de cargos públicos que não emanem directamente da vontade popular. O "coração" da democracia é o parlamento, aí ouve-se bater o coração do povo.
De perspectiva oposta partiu o constitucionalismo americano: a da desconfiança nos representantes e portanto da necessidade de limitar e circunscrever os poderes do órgão legislativo, para defesa da Constituição, defesa essa entregue ao poder judicial. Em contraste com a centralidade do parlamento no modelo francês, o constitucionalismo americano proclama a separação e equilíbrio de poderes como única forma de salvaguardar o poder do povo.
Vale bem a pena uma leitura desse clássico da literatura constitucional americana que é O Federalista, que foi traduzido por Viriato Soromenho-Marques e publicado por Edições Colibri em 2003. Recomenda-se especialmente (e perdoem-me o tom didáctico) os artigos nº 48 e 51, de James Madison e 71 e 77 de Alexander Hamilton.
Algumas breves transcrições: «é contra a ambição empreendedora desse departamento (o legislativo) que o povo deve orientar toda a sua desconfiança e exaurir todas as suas precauções» (nº 51); (citando Jefferson) «De pouco nos vale que eles (os representantes) sejam escolhidos por nós. Um despotismo electivo não foi o governo pelo qual lutámos, mas sim um que não somente deveria ser fundado em princípios livres, mas no qual os poderes do governo deveriam ser de tal modo divididos e equilibrados entre os vários corpos de magistratura que nenhum pudesse transcender os seus limites legais, sem ser eficazmente reprimido e restringido pelos outros.» (nº 51); «A mesma regra que nos ensina a justeza de uma partilha entre os vários ramos do poder ensina-nos também que essa partilha deve ser estruturada de maneira a tornar uns independentes dos outros. Com que finalidade se separa o executivo ou o judicial do legislativo, se tanto o executivo como o judicial forem constituídos de tal maneira que ficam na absoluta dependência do legislativo? Uma separação desse tipo tem de ser meramente formal e incapaz de produzir os fins para que foi estabelecida. Uma coisa é estar subordinado às leis, outras estar dependente da assembleia legislativa. A primeira é compatível com os princípios fundamentais da boa governação, a segunda viola-os; e, sejam quais forem as formas da Constituição, junta todo o poder nas mesmas mãos. Em governos puramente republicanos, essa tendência é quase irresistível. Os representantes do povo, numa assembleia popular, parecem por vezes imaginar que são o próprio povo, e traem fortes sintomas de impaciência e aversão pelo mínimo sinal de oposição venha de que quadrante vier; como se o exercício dos direitos respectivos, quer pelo executivo quer pelo judicial, fosse uma violação do seu privilégio e um ultraje à sua dignidade.» (nº 71). Palavras premonitórias de mais de séculos de experiência parlamentar.
A diferença estrutural entre os dois sistemas assenta porventura nisto: na perspectiva francesa, os representantes do povo são o próprio povo (e por isso ninguém lhes pode ir à mão), nisso se traduz o jacobinismo; na perspectiva americana, os representantes não se confundem com os representados e por isso estão necessariamente sujeitos ao escrutínio dos outros poderes, que também são poderes delegados pelo povo; o poder legislativo não tem, assim, mais legitimidade que os outros, tem exactamente a mesma.
O constitucionalismo americano sofreu uma grande erosão ao longo dos seus 250 anos de existência, mas a distinção entre representantes e povo e a força e independência do poder judicial têm constituído barreiras sólidas até agora contra as derrapagens autoritárias que por vezes acontecem naquele país, como é o caso dos tempos que correm.

 

Uma proposta fracturante: juízes não juristas

Também não subscrevo a ideia de juízes de carreira oriundos de outras licenciaturas que não a jurídica, uma vez que é o direito que os tribunais têm de aplicar.
Mas parece-me que seria muito importante activar uma norma constitucional que tem estado esquecida: o actual nº 3 do art. 207º, que prevê a possibilidade de participação de assesssores tecnicamente qualificados no julgamento de certas matérias (que cabe ao legislador ordinário seleccionar).
Note-se que os assessores a que se refere o preceito nada têm a ver com os assessores que actualmente existem nos tribunais superiores, que se limitam a preparar as decisões dos juízes desses tribunais. Aqueles a que se refere a Constituição participam no julgamento, embora eventualmente sem direito a voto. E essa participação afigura-se essencial em certas matérias em que mesmo uma formação complementar, cada vez mais necessária, não habilita o magistrado a compreender com a necessária profundidade o enquadramento fáctico da questão.
Em vez de propostas espalhafatosas não seria melhor pensar na execução daquela norma constitucional?

 

Juízes não licenciados - Uma crónica de M.A. Pina

Com autorização de Manuel António Pina, aqui dou à estampa a sua crónica publicada no Jornal de Noticias de 11 de Maio.



Alberto Costa in Wonderland

A ideia não é de Lewis Carroll, é do prof. Boaventura Sousa Santos. O ministro Alberto Costa apenas a levou a sério. Num estudo dirigido em 2001 pelo guru da luso-sociologia, faz-se a seguinte proposta "inovadora" "Admite-se a entrada para a magistratura, de forma gradual, de não-licenciados em Direito (…)". Isto após 10 meses para adquirirem "conhecimentos técnico-jurídicos gerais"… Imagino o ministro lendo o prof. Boaventura (como o frasco de Alice, o rótulo do estudo diz: "Bebe-me!") e cogitando com os seus botões e os seus assessores: "Não está mal lembrado …". Foi assim que veio agora anunciar ao país que pensa pôr não-licenciados em Direito a fazer julgamentos e a dar sentenças nos tribunais (cuja função constitucional é a de aplicar o … Direito). Teremos, pois, arquitectos a julgar e a perorar sobre Direito Penal, farmacêuticos a produzir jurisprudência em Direito Administrativo, licenciados em Educação Física e Desporto a dar despachos saneadores e provavelmente o prof. Boaventura de toga a presidir ao Supremo. Em contrapartida, ninguém se admirará se, sempre em nome da "diversidade de formações", encontrar um jurista a operar hérnias discais num qualquer hospital após 10 meses a obter "conhecimentos médicos gerais"

 

Revisitando a Constituinte

Este postal e este para além de exercício de opiniões fundamentadas são um convite para reflectir sobre a rotura revolucionária (ou sua inexistência) no judiciário. Se bem que 30 anos de distância ainda sejam manifestamente insuficientes para uma verdadeira abordagem histórica, parece-me que os distintos pontos de chegada (nomeadamente em análises que têm pontos de partida comuns) são um inescapável estímulo para o alargamento da discussão e o reler dos textos.
Nesse ponto os debates da Constituinte são particularmente interessantes, mesmo que as leituras possam ser marcadas por um olhar sobre o presente.
É o caso da autonomia do Ministério Público (como aliás já destacou o Maia Costa), então foram sobretudo o PPD e o PS a assumir diferenças conceptuais e de filosofia política. Por um lado, Barbosa de Melo (PPD), na defesa da aprovação da proposta 6.ª Comissão (encarregada de formular parecer sobre o título «Tribunais») que consagrava de forma expressa o Ministério Público como órgão autónomo, argumentava que a mesma era importante «no sentido de conferir ao corpo constituído pelo MP uma independência perante os poderes políticos», embora reconhecesse que «essa independência é aliás assegurada» na disposição sobre o estatuto dos membros e organização interna. Em contraponto, o PS propunha a sua substituição pela norma que veio a constituir o nº 2 do art. 224.º, com o argumento de «a formulação não dizer nada» (J. Luís Nunes), mas também assumindo desconforto com uma expressa constitucionalização do valor autonomia.
A razão do desagrado era então assumida de uma forma particularmente reveladora sobre os perigos de tal autonomia, numa leitura que também abrangia a magistratura judicial, «Nós não podemos cair na concepção corporativa da uma magistratura de um Ministério Público ou de uma magistratura judicial que constituísse como que uma classe autónoma, ou uma casta com o poder de deliberação própria independentemente de ser controlada por um executivo ou por um Governo eleito. Em Portugal e numa democracia, Sr. Presidente, Srs. Deputados, só têm essa capacidade os eleitos do povo, mais ninguém.» (Sousa Pereira já depois do PREC em 7 de Janeiro de 1976, DAC nº 100: 3241-3242).

 

Ficou tudo na mesma?

Estou em profundo desacordo com a ideia transmitida pelo Guilherme da Fonseca no texto antecedente, ou pelo menos com a interpretação imediata que a leitura do texto sugere. Quero por isso fazer o meu comentário. Se interpretei mal, espero ser corrigido.
Começo por dizer que penso que nada ficou na mesma no sistema judicial após 0 25 de Abril. Previamente quero ainda lembrar que não é verdade que o sistema de justiça tivesse passado ao lado da Revolução. Porque logo a Revolução se manifestou nos tribunais (ainda em 1974) através da contestação dos então Delegados do Procurador da República interinos contra o sistema obsoleto de recrutamento e de formação (aliás, falta dela), agitação essa que teria êxito nesse âmbito e lançaria as bases do sindicalismo judiciário (que nasceu no Ministério Público e só depois alastrou à magistratura judicial) e da autonomia do Ministério Público, ideia que viria igualmente a triunfar. Tudo isto o Guilherme da Fonseca, que foi duas vezes presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, sabe melhor do que eu.
Aprovada a Constituição, todo o edifício judiciário foi modificado e relegitimado. A institucionalização dos Conselhos Superiores das duas magistraturas (participados por membros "laicos"), como garantes da independência do poder judicial, a criação do Centro de Estudos Judiciários, inaugurando uma mais democrática e rigorosa selecção de magistrados, o acesso das mulheres à magistratura e a autonomia do Ministério Público são porventura os pilares fundamentais de um novo edifício. Tudo ficou diferente!
Dir-se-á: então e a crise da justiça (a celebrada "crise")? Não será o resultado de tal edifício?
Será mesmo? Será então que, paralelamente, poderemos dizer que a crise da economia e do País em geral que reconhecidamente hoje vivemos é culpa das instituições criadas após o 25 de Abril? É culpa da democracia?
Quem sabe? Nos bons tempos de Salazar não havia défice!

11 maio 2006

 

Ó Elvas, ó Elvas, Badajoz à vista!

Eu não sou nada, mesmo nada, nacionalista.Tudo o que seja aproximação e cooperação transfronteiriça me parece bem. A circulação de pessoas e a eliminação das fronteiras, ao contrário do que diz aí um sindicato policial ( é que há sindicalismo e sindicalismo...) é inevitável e desejável. Nenhum problema há em os alentejanos irem às compras ou aos médicos a Badajoz (e vice-versa).
O que está mal é o Estado português demitir-se de fornecer, ele próprio, os serviços essenciais aos cidadãos portugueses. Porque é disso exactamente que se trata. A política de fecho de maternidades é a mesma que leva ao encerramento de escolas, de tribunais e outros serviços públicos, é uma política de abandono do interior do País, assim acentuando as desigualdades, assimetrias (palavra metafórica) e contrastes dentro do território, em flagrante violação da Constituição (al. g) do art. 9º, entre outras disposições).
Podem, é claro, dizer que os serviços que são encerrados não dispõem nem do pessoal nem das condições técnicas indispensáveis para funcionar com qualidade e segurança. A isso pode responder-se que, com investimento, criam-se essas condições. Ao que ripostarão que não há dinheiro (supremo argumento nos dias de hoje). Mas sempre se poderá contra-argumentar que dinheiro sempre há algum, a questão é como distribuí-lo; e que o desinvestimento no interior, com a consequente desertificação, também cria problemas à faixa litoral, onde afluem os "imigrantes"; e que esta política é de "vistas curtas", incapaz de uma visão estratégica de longo ou mesmo médio prazo. Mesmo pensando em termos estritamente financeiros, poupar agora pode vir a ficar muito caro mais tarde.

08 maio 2006

 

Em estilo de diário mais ou menos íntimo

I – O filme
Tínhamos acabado de ver o filme e, como habitualmente, reunimo-nos numa cervejaria que dá pelo nome de «Galiza» e que não tem nada a ver com a antiga cervejaria da CUF (uma verdadeira instituição, criminosamente derrubada) que existia na Rua Júlio Dinis, então com muito poucos prédios e muitos vestígios de ruralidade convivendo com chaminés industriais e fábricas de uma arquitectura que hoje também recordo com saudade. No lugar delas, nasceram agigantadas construções de muitos andares. Estávamos ainda sob a influência do deslumbramento do filme. Em termos de imagem e de beleza plástica, é um filme soberbo.
Chama-se «O Novo Mundo», de Terrence MalicK. Mas, para além dessa captação epidérmica, pouco havíamos apreendido do seu miolo. Só depois, na animação da conversa e da bebida, é que começámos a esmiuçar – coisa rara hoje em dia, em que um filme se esgota imediatamente com a sua visão, as pessoas começando a sair ainda antes de ter passado o genérico. Depois, não se pensa mais nele; é como se fosse para usar e deitar fora. Curiosamente, este filme parecia ser daqueles em que se torna redundante qualquer comentário. É muito bonito, e pronto. Para um de nós não passava disso mesmo. Um filme bonito com uma espécie de história cor-de-rosa. Porém, mesmo que nos ficássemos por esse aspecto epidérmico (e daí, epidérmico, é como quem diz), eu objectava que nunca tinha visto em cinema cenas de amor tão tocantes (trocas de olhar de cortar a respiração, um roçagar de peles de um envolvimento total, a serena e inocente beleza dos rostos, como se o amor nos fosse dado ali com a densidade inaugural dos primeiros gestos, sem beijos devoradores, sem cenas de cama, e no entanto tão profundo, tão devastador), uma beleza feminina incomum em termos cinematográficos, agarrados que estamos aos estereótipos das «estrelas de cinema». E depois a beleza verdadeiramente genesíaca de todo o filme, restituindo-nos em imagens o sabor antiquíssimo e esquecido do equilíbrio original do homem com a Natureza – o tal paraíso perdido – e num ritmo musical de sinfonia. Essas eram imagens que iriam ficar para sempre na minha memória.
A partir daí, começámos a derivar para outros caminhos que o filme sugeria ou até de que tratava explicitamente: o nascimento do «Novo Mundo», patente no próprio título, a fundação do Estado da Virgínia, as colónias britânicas da América, o encontro de culturas diversas, o extermínio dos indígenas pelos novos colonizadores, a história de amor surgida entre a célebre Pochaontas, aqui representada magnificamente por uma actriz nativa, e o capitão John Smith – uma história de amor com todos os ingredientes, quero eu dizer, obstáculos em princípio insuperáveis, para se tornar numa grande história de amor, segundo os paradigmas clássicos do amor-paixão, mas que tem no filme outras e mais complexas singularidades. Só na aparência essa história de amor seria uma história cor-de-rosa, como um de nós tinha alvitrado. E o filme era mais do que essa história. Para mim era sobretudo uma espécie de nostalgia de uma pureza e de um equilíbrio originais, rompidos pelo surgimento do «Novo Mundo», a civilização, o progresso científico e tecnológico e, nessa medida, uma reflexão sobre tudo isso. As águas a correrem em cachoeira, no final, a correrem interminavelmente, límpidas, tão límpidas, não seriam o contraponto do nosso mundo poluído? Mas talvez isso fosse só uma obsessão minha.
De qualquer forma, quando cheguei a casa, já passava das três da madrugada, tinha em mente uma certa passagem de um livro que vou contar a seguir, depois de dar tempo a um intervalo para o clássico descanso nos braços de Morfeu..





II - O Livro


O livro de que falei, com uma escassa meia centena de páginas, chama-se «O Que É A Cultura», e é de autoria de António José Saraiva, um intelectual que muito admiro sobretudo pela sua enorme capacidade de comunicação, traduzida numa obsessão de tornar simples e desataviadas de erudição as coisas mais complexas e de difícil compreensão. É sem dúvida um autor de cabeceira, ainda que se não concorde com ele.
Li o livro numa tarde de vento, em Julho, numa esplanada da Póvoa de Varzim, mesmo em cima da praia, mas abrigada, e tentando sobrepor o esforço de concentração à diversão que a música de fundo proporcionava.
O livro começa assim: «Cultura opõe-se a natura ou natureza, isto é, abrange todos aqueles objectos ou operações que a natureza não produz e que lhe são acrescentados pelo espírito. Este é o sentido mais extenso de cultura, que coincide com o de civilização.
Em sentido mais restrito, entende-se por cultura todo o conjunto de actividades lúdicas ou utilitárias, intelectuais e afectivas, que caracterizam especificamente um determinado povo.»
E depois, saltando para o final, num capítulo dedicado ao «progresso», que era a tal passagem que eu visava antes de me deitar e que tinha em mente procurar logo que me levantasse, aproveitando um pouco da preguiça domingueira, topei com esta apocalíptica visão:
«O progresso, como é entendido no nosso tempo – a extensão da tecnologia e a obesidade das massas -, tornou-se um genocídio acelerado. A chegada de Colombo às Antilhas deu, em poucos anos, causa à fulminante exterminação e à escravidão de muitos milhões de índios da América. O principal malefício da tecnologia moderna foi romper o equilíbrio ecológico que existiu sobre a Terra e que permitiu às tribos humanas sobreviverem em circunstâncias naturais. Estatisticamente, a vida humana é hoje mais longa, mas o fim voluntário da humanidade tornou-se tecnicamente possível. A proposta de Schopehauer, filósofo alemão do princípio do século XX, que aconselhava as fêmeas humanas a deixarem de parir, está a perfilar-se no horizonte e, pode dizer-se, em vias de execução.
A cultura, que, como vimos, é algo independente da natureza, acaba por virar-se contra ela. (…)»

Não sei se isto tem alguma coisa a ver com o filme. O que sei é que a releitura destas passagens me foi suscitada por ele. Mas talvez tivesse sido uma obsessão sem sentido, dado que são ínvios os caminhos que nos levam a certas associações.
De passagem, e em nova e casual associação de ideias, constato que o governo de Sócrates – o do «choque tecnológico» - não compartilha nada desta visão pessimista (humano-suicidária) de Schopenhauer/Saraiva, uma vez que tenciona penalizar os casais estéreis com uma prestação agravada para a Segurança Social.

06 maio 2006

 

Novo Tempo

Não sei se ainda será de bom tom citar Bertolt Brecht. Acontece que, relendo a «Vida de Galileu», em tradução de Yvete Centeno para a velha Portugália Editora, me pareceu oportuno (mas eu sou um espírito fossilizado que já não tem emenda) ressuscitar as passagens que transcrevo abaixo, retiradas do apêndice que tem o título «Notas Sobre A Vida De Galileu», que o próprio Brecht alinhavou sem as poder rever:

«Nestas alturas, o próprio conceito de «novo» é falseado. O velho e o velhíssimo que voltam a entrar em cena apregoam-se como novos, ou são declarados novos ao serem apresentados sob uma nova forma. Mas o verdadeiramente novo, porque foi destituído, é apresentado como datando já de ontem, moda passageira cujo tempo passou. O novo é, por exemplo, a maneira de se fazerem guerras, e o velho será uma maneira de governar (subentende-se: ainda nunca posta em prática), que torne as guerras desnecessárias. (…) Em tais épocas as esperanças dos homens não são diminuídas em nada, mas são voltadas ao contrário.
(…)
No meio da crescente escuridão que cai sobre um mundo febril, cheio de feitos sangrentos e pensamentos não menos sangrentos, cheio de uma selvajaria concentrada que sem entraves parece dirigir talvez a maior e mais terrível guerra de todos os tempos, é difícil defender uma atitude que convenha a pessoas no limiar de uma época nova e feliz. Pois tudo indica que está a anoitecer, e não a amanhecer um novo tempo.
(…)
Que significa «Novo Tempo»? Não estará já esta própria expressão ultrapassada? (…) Agora é a barbárie que se dá ares de nova. Diz de si mesma que espera durar mil anos.»

05 maio 2006

 

Um conspirador confessa-se

Afinal Zacarias Moussaoui foi condenado por que factos? Envolvimento pessoal no 11 de Setembro não houve. Ter-se-á provado qualquer acto concreto de conspiração? Algum acto executivo de qualquer crime? Inscrever-se numa escola de pilotagem para eventuais futuros ataques aéreos é um acto executivo?
É claro que ele confessou ser membro da Al-Qaida. E ter como missão pilotar um quinto avião no 11 de Setembro. Mas parece que ninguém acreditou nisso. Aliás como acreditar se ele foi preso um mês antes devido a comportamento manifestamente pouco discreto, digamos mesmo conspirativamente suicida? Que conspirador era este que tudo fez para chamar a atenção para si, que manifestamente queria que toda a gente soubesse que ele era um terrível "inimigo da América"?
Um julgamento estranho, em que as provas da acusação eram processualmente nulas, mas onde prevaleceu uma confissão dum exibicionista à procura de lugar no panteão islâmico (se não mesmo um lugar privilegiado no paraíso celeste).
Como podia ser de outra maneira? A opção não era entre condenação e absolvição, mas entre a pena de morte e a de prisão perpétua. A opinião pública americana, escusado será dizê-lo, não "poderia" aceitar terceira via. Em todo o caso, Moussaoui teve direito a julgamento público num tribunal comum. (Não será isso o reconhecimento implícito de um certo "sentimento de culpa" por parte das autoridades americanas?) O que sabemos que não acontecerá com os presumíveis responsáveis pela organização dos atentados, que estão presos em locais secretos e nada se sabe quanto ao destino que lhes está reservado.

04 maio 2006

 

Lamentação reaccionária

Quanto maior a esperança de vida, maior deveria ser o espaço concedido ao ócio (na minha perspectiva, ócio criador). Para quê viver mais tempo, se não for para viver sem submissão ao tempo produtivo do trabalho imposto? Dispor finalmente do nosso tempo de uma forma soberana como tempo de liberdade, de criatividade e de prazer, sendo muito raro que estes coincidam com o trabalho que se é obrigado a executar. Só esse tempo é tempo verdadeiro, porque finalmente nosso. Mas, afinal, dizem-nos que, se há mais esperança de vida, o tempo de trabalho obrigatório tem de aumentar na mesma proporção. Ora bolas! Sempre esta contabilidade impiedosa, comandada pela lógica do que agora, no economicismo imperante, se designa de «custo - benefício»! Este «custo – benefício» vem a traduzir-se em comerem-nos até ao limite o tempo de pujança física e intelectual, para nos deixarem como sobejo o tempo em que já quase não podemos fazer nada de válido em termos de gestão do tempo soberano. Acresce este paradoxo: enquanto a maior duração média de vida não passa de uma esperança (uma expectativa, não sei se legítima), o tributo que se tem de pagar é cobrado com imediata efectividade. É um imposto pela simples esperança de maior vida.

 

Expedições policiais

A operação de anteontem no Bairo da Torre suscita múltiplas perplexidades, umas sobre a acção da polícia, outras sobre a própria existência do bairro.
Comecemos pela eficácia da operação. O balanço dos resultados é confrangedor: 600 agentes envolvidos e150 viaturas mobilizados (não falando já dos cães) produziram uma apreensão de 19 armas ilegais (sendo 13 caçadeiras e apenas uma arma de guerra!) e 10 detidos (ficarão presos?). A rácio agente/arma apreendida é irrisória. O que terá acontecido? Enganaram-se as autoridades? Alguém passou a informação para o bairro? Em qualquer caso, um desperdício de meios (sim, uma operação destas não deve ter ficado barata para os bolsos dos contribuintes, bolsos esses tantas vezes invocados pelos nossos governantes).
Ao evidente fiasco dos resultados acresce a forma de intervenção policial. Ultimamente vem-se insistindo neste tipo de operações de grande envergadura, com cerco a comunidades inteiras, sejam acampamentos ciganos, sejam bairros residenciais, cerco seguido de "passagem a pente fino" de todos os moradores. Ora é preciso recordar que esse ambiente de coacção não é justificável, não só por poder abranger, como foi o caso, pessoas obviamente "inocentes" (crianças, idosos), algumas das quais, segundo dizem os jornais, ficaram aterrorizadas com a intervenção da polícia, como por constituir uma forma de coacção indiscriminada sobre toda a comunidade, independentemente das "culpas" individuais. Demonstrações de força deste tipo confundem-se com expedições punitivas. Mas não estamos na Faixa de Gaza nem a PSP é um exército colonial!
Uma outra ordem de considerações tem a ver com a própria existência do bairro. Como é possível que ainda existam bairros assim? Barracas de tábuas, zinco e plásticos, sem água canalizada, ruelas em terra batida, tudo num cenário próprio do que retratou implacavelmente Ettore Scola em "Feios, porcos e maus". Pobreza, miséria da mais pura. E crime, claro. (Será para admirar?) Que têm os governantes (centrais e locais) a dizer a este bairro? Apenas sabem utilizar a linguagem policial?

 

As melhoras de Bush

T.G. Ash veio a Lisboa dizer, entre outras coisas sábias e profundas, que Bush mudou muito desde a reeleição e que agora é a vez de a Europa se aproximar dos EUA.
Estranha afirmação vinda dum historiador. Os EUA já saíram do Iraque? Já fecharam o campo de concentração de Guantánamo? Já deixaram de praticar a tortura contra prisioneiros? Já não fazem escutas sem autorização judicial no seu próprio território?
A resposta a estas perguntas é negativa. As "mudanças" de Bush ainda não são visíveis.
E um pouco mais de rigor não ficaria mal a alguém com tantas pretensões científicas como este Ash.

03 maio 2006

 

Fraude na hora

Para quem teve algum contacto com os processos de facturas falsas a criação do sistema "empresa na hora" suscitou alguma apreensão. O recurso a empresas meramente virtuais, simulando-se trocas comerciais com empresas autênticas, foi um expediente largamente utilizado para fraudes ao IVA, e também para outros fins ilícitos.
O programa "empresa na hora" facilita obviamente o aparecimento de empresas-fantasma, sem qualquer actividade económica, aumentando os riscos da sua utilização ilícita. O Sindicato dos Magistrados do Ministério Público já alertara para esses riscos. Agora surge a notícia dos primeiros casos detectados de uso fraudulento da "empresa na hora".
No seu afã propagandístico, que tanto o distingue, o Governo ignorou os riscos, fazendo daquele programa uma das suas "bandeiras".
A desburocratização não pode ser um processo leviano. Menos propaganda e mais rigor, precisam-se!

 

Um 1º de Maio diferente nos EUA

12o anos depois do dia dos acontecimentos de Chicago que consagraram o 1º de Maio como Dia Internacional dos Trabalhadores, estes voltaram às ruas de Chicago e de mais setenta cidades norte-americanas. Não já os operários em luta por melhores condições de trabalho. Mas sim os "clandestinos", os imigrantes ilegais, à procura de legalização e integração social, e concretamente contra a criminalização da imigração clandestina, já aprovada na Câmara de Deputados. Sendo os objectivos e os protagonistas diferentes, o sentido geral da luta é o mesmo.
Os EUA formaram-se e enriqueceram à custa da imigração. Da legal e da clandestina. Foi esta última que permitiu a existência permanente de um "exército de reserva" na época industrial, que constituiu um poderoso travão às lutas sindicais por melhores salários. Foi ela que nas últimas três ou quatro décadas manteve o dinamismo da economia, ao canalizar para as funções precárias e mal pagas, mas indispensáveis ao funcionamento da economia e da sociedade, os imigrantes ilegais, mão-de-obra não qualificada. Em suma, são as sucessivas levas de imigrantes clandestinos que, ocupando com "baixos custos" funções e lugares desprezados pelos "autóctones", têm evitado acelerações inflacionistas, e consequentemente constituíram-se como factor de crescimento económico. A criminalização da imigração clandestina (e a proposta de criação de um muro na fronteira com o México, projecto de um securitarismo delirante) é uma ingratidão e um erro económico. O patronato já o fez sentir e sabemos o peso que ele tem nos EUA.
A dimensão que o protesto assumiu mostrou bem o papel que os 13 milhões de imigrantes ilegais desempenham no país que os quer rejeitar e mostram a insensatez desse projecto.
É um aviso também para a Europa. Não é só absurdo pensar que é possível construir muros (reais ou virtuais) que paralisem as migrações, como a verdade, já sabida, é que precisamos dos imigrantes. O que seria hoje de nós, portugueses, se nos faltassem os imigrantes africanos e eslavos que nos procuram? Quem iria fazer o trabalho a que eles (e elas) se sujeitam? E com os salários e as condições em que trabalham?

 

A propósito de um blog de defensores públicos

Retornando à questão dos defensores públicos, um dos mitos alimentados é que profissionais organizados e integrados num departamento autónomo, objecto de selecção transparente e formação profissional, não terão o profissionalismo e empenho de profissionais liberais custeados pelo Estado, sem que este sindique o seu desempenho.
O Ninth Circuit Blog de defensores públicos que exercem funções nesse tribunal federal, para além de proporcionar uma interessante panorâmica da justiça penal nos EUA, é revelador de muita da mistificação que se levanta contra a defesa pública.

02 maio 2006

 

Uma imagem que se impõe alterar

Os tribunais e sobretudo o Supremo Tribunal de Justiça têm sido alvo da atenção dos «media» pelas piores razões. Normalmente a comunicação social anda à caça de qualquer «deslize», de qualquer saliência que se destaque de uma certa forma de pensar ou sentir tidas em certo momento e em certos meios como correctas, de um comportamento mais anódino, em suma, de um qualquer acidente anedótico, para transmitirem a «mensagem» da crise da justiça. Esse é o estereótipo que interessa explorar em termos de comunicação, porque ela, sim, é a notícia. O contrário disso, aquilo que poderia transmitir uma imagem da justiça (ou, digamos, de certas facetas dela) antagónica do estereótipo da «crise» não é noticiável. Pura e simplesmente não existe. A justiça está em crise, eis o axioma, a verdade que faz render. O que é preciso é demonstrar isso constantemente, a todo o custo, farejando tudo o que possa contribuir para essa imagem e, frequentemente, deturpando, pelo empolamento ou pela distorção, a verdade singela dos factos.
Em relação ao Supremo Tribunal de Justiça, a realidade que se pretende montar é a de uma instituição cavernícola, constituída por gente retrógrada, anciãos com ferrugem no cérebro, vivendo completamente fora do tempo e alimentando ideias pavorosas. Ainda recentemente se viu isso a propósito da decisão das «palmadas paternais no rabo». A comunicação social explorou algumas frases da decisão até à medula, de uma forma sensacionalista e completamente desproporcionada. Por sobre a realidade de algumas afirmações polémicas, criou um facto jornalístico daqueles que causam furor, e pôs todo o mundo a falar desse facto. Como é costume nestas coisas, a maior parte das pessoas nem sabia verdadeiramente do que falava, porque o facto que passa a relevar não é o que deu origem à notícia, mas o que foi criado com a notícia. Tem sido sempre assim. Às tantas, para uma grande parte das pessoas, o que tinha sucedido é que o Supremo Tribunal tinha absolvido a arguida de crimes de maus tratos. Uma grosseiríssima falsificação.
Uma professora universitária, por exemplo, veio também à liça sem conhecer a decisão (ainda ao menos, que o disse) e, demonstrando um completo analfabetismo nestas coisas, chamou por várias vezes «acordo» à decisão colegial dos juízes, que toda a gente que leia jornais e veja televisão sabe que se chama «acórdão». Um completo desaforo.
E depois, atrás destes incidentes, vem sempre a ladaínha das decisões do Supremo que dão a imagem da sua decadência ancestral, desde a velhíssima decisão do «macho ibérico» que todo o bicho-careta cita de cor, até à da «sopa esturricada», que é uma falsificação descarada do acórdão que o Supremo produziu. Mas vale tudo nesta campanha de mistificação. Criado o facto jornalístico, toda a gente (incluindo intelectuais de «reconhecido mérito») se acham no direito de vir a terreiro criticar, dispensando-se de as lerem, as decisões «abnormes» do mais alto tribunal do país, prova suprema do descalabro da nossa justiça.
Ora, tudo o que saia deste universo catastrófico, que faz as delícias do sensacionalismo jornalístico, não tem dignidade para ser trazido à luz do dia. Maia Costa, num dos seus últimos textos publicados neste blogue dá conta desses «buracos negros» a propósito da recente tomada de posse do vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Um acontecimento que mereceria ter sido objecto da atenção dos «media», se os «media» não estivessem interessados em darem relevo apenas à imagem estereotipada que querem transmitir. Não só o acontecimento o merecia, como o discurso do empossado, o Dr. Henriques Gaspar, agora também publicado neste blogue, teria mostrado que o Supremo Tribunal não está tão caduco como os «media» querem fazer crer. A imagem real não é tão monolítica, como a que os «media», com a sua tendência para a homogeneização, tentam impor com notável esforço. O curioso é que os «media», muitas vezes, em algumas críticas que fazem a decisões do Supremo e de outros tribunais (por exemplo, quando dão eco às tendências mais retrógradas de certos sectores da sociedade em matéria de penas) dão de si uma imagem ainda mais anquilosada do que a das instituições que criticam. E sistematicamente silenciam o que de mais inovador se vai fazendo, porque, quer queiram, quer não, também se produzem coisas, fora do ruído vácuo, que prestigiam os tribunais. Diga-se, porém, que estes ainda não encontraram (e a culpa é, nesse aspecto, toda deles) uma forma autónoma de trazerem à luz do dia tanto do que, no silêncio dos gabinetes e no labor anónimo do dia-a-dia, se vai produzindo com interesse e que merecia ser conhecido do público. Talvez o novo vice-presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que deu mostras de uma lucidez ímpar, como, aliás já se lhe conhecia e por isso foi que os seus colegas o elegeram para o lugar, possa dar um contributo decisivo para uma alteração das coisas em matéria de comunicação.

 

Liberdade de Expressão v. Liberdade de Religião

O direito à liberdade de expressão continua a ser apreciado pelo TEDH.
Hoje proferiu decisão no caso AYDIN TATLAV c. TURQUIA, no qual o requerente se queixava da condenação criminal que sofrera (em 19/1/1998 fora condenado na pena de um ano de prisão, convertida em multa, por crime previsto no artigo 175 do CP Turco), a qual violava o seu direito à liberdade de expressão.

Neste caso, Erdoğan Aydın Tatlav, jornalista de profissão, havia escrito uma obra, constituida por 5 volumes, intitulada A realidade do Islão, cuja primeira edição do 1º volume (intitulado O Corão e a Religião) remonta a 1992 e a 5ª edição é de 1996.

Em 4 anos foram publicados 16.500 exemplares, sem reclamações quanto ao seu conteúdo mas, depois da 5ª edição do dito 1º volume, um particular resolveu apresentar queixa, por causa de algumas passagens ali escritas, o que deu origem ao mencionado processo crime.

A condenação que sofreu na Turquia ocorreu por considerações que fez no sentido de “a religião ter por efeito legitimar injustiças sociais, entendendo-as como sendo a «vontade de Deus»”.

Valeu-lhe o TEDH que entendeu as ditas passagens do livro em questão como a expressão “de um ponto de vista crítico, de um não crente, em relação à religião em matéria sócio-económica”.

Acrescenta o mesmo Tribunal que, nessas passagens, “não foi observado um tom insultuoso visando directamente a pessoa dos crentes, nem um ataque injurioso aos simbolos sagrados, concretamente dos Muçulmanos”, ainda que os Muçulmanos “se possam sentir ofuscados por aquele comentário feito, algo cáustico quanto à religião” Muçulmana.

Quando o TEDH ponderou as duas liberdades em conflito (de um lado, o direito, para o requerente, de comunicar ao público as suas ideias sobre a doutrina religiosa e, de outro lado, o direito das outras pessoas ao respeito da sua liberdade de pensamento, de consciência e de religião), utilizou alguns argumentos interessantes.

Destaco aqui, pelo seu particular interesse, algumas ideias a reter:
- “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática, uma das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um”;
- “o exercício da liberdade de expressão envolve deveres e responsabilidades, entre eles, no domínio das crenças religiosas, a obrigação de evitar expressões que são gratuitamente ofensivas para outros e que são profanadoras”;
- “o pluralismo, a tolerância e o espírito de abertura caracterizam uma sociedade democrática”;
- “aqueles que escolhem exercer a liberdade de manifestar a sua religião, pertençam a uma maioria ou a uma minoria religiosa, não podem razoavelmente esperar fazê-lo ao abrigo de toda a crítica, devendo tolerar e aceitar a rejeição, por outros, das suas crenças religiosas e mesmo a propagação de doutrinas hostis às suas”.

O Tribunal conclui, por unanimidade que, neste caso, «não estava demonstrada a existência, na época da edição litigiosa, de uma “necessidade social imperiosa” que permitisse considerar a dita ingerência como “proporcional ao fim legítimo perseguido"», decidindo, em consequência, pela violação do art. 10 da Convenção.

01 maio 2006

 

Pena de Morte, Tortura…

Ainda em 19/4/2006 a Amnistia Internacional denunciou a existência “de mais de 20.000 pessoas no corredor da morte, a aguardar execução pelos seus próprios governos. Pelo menos 2148 pessoas foram executadas, em 22 países, em 2005 – 94% dos quais na China, Irão, Arábia Saudita e EUA – e 5186 foram condenados à morte em 53 países”.
Segundo a mesma fonte (A.I.), “execução de menores ocorreram no Irão, ainda em 2005”; nos EUA, “em Março de 2005”, foi abolida “a pena de morte para jovens que tivessem cometido crimes enquanto menores”.
“Na China, muitos temem que os elevados lucros que estão por detrás do transplante de órgãos dos executados, podem funcionar como um incentivo à manutenção da pena de morte”.

Neste 1º de Maio de 2006, o Centro de Notícias da Onu informou que “a Comissão contra a Tortura começou hoje, em Genebra, a sua 36ª sessão, na qual iria debater informações recolhidas sobre o cumprimento dos tratados internacionais nesta matéria, por parte dos EUA, Peru, Guatemala e outros 4 países”.

Em pleno século XXI (nomeadamente) os EUA, país de liberdades… ainda não ratificou v.g. o Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, o Segundo Protocolo Opcional ao Acordo Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1989), nem tão pouco interiorizou o significado de “dignidade humana”.

Continuam, calmamente, a executar pessoas (v.g., que padecem de deficiência mental), continuam a usar da tortura…e por aí fora...

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