28 maio 2009

 

Sonia Sotomayor

A nomeação de uma juíza hispânica, oriunda de uma família pobre, que subiu na vida mercê do seu esforço e trabalho honesto, para o muito masculino e WASP Supremo Tribunal dos EUA pode ser "algo de nuevo".
Mas os "casos difíceis" vão bater à porta do tribunal. Por exemplo, as comissões militares de Obama, os direitos dos prisioneiros no Afeganistão, as limitações aos direitos individuais nos próprios EUA em nome da luta contra o terrorismo, etc. e aí a juíza Sonia vai ter que mostrar a sua fibra (oxalá a tenha e a mostre).

 

Revogação na "secretaria"

Não sei se já repararam os ilustres leitores frequentadores deste não menos ilustre blogue que a malfadada Lei da Droga, o DL 15/93, sofreu uma inesperada amputação aquando da sua última republicação, com a recente Lei nº 18/2009, de 11 de Maio.
A lei, muito simplesmente, limita-se a alterar os arts. 15º e 16º, que se referem a matérias não penais. Mas, inesperadamente, segue-se a republicação de todo o diploma, algo insólito, dada a limitada alteração legislativa.
Mas é na republicação que está a grande surpresa: o art. 40º, o célebre artigo do consumo, aparece completamente "recauchutado". Ainda tem como epígrafe "consumo", mas na verdade agora só trata do cultivo; ou seja, eliminaram-se nos nºs 1 e 2 as referências ao consumo, para ficar apenas o cultivo. E contraditoriamente mantém-se o nº 3 que continua a referir-se ao "consumidor ocasional". Um consumidor necessariamente cultivador!!!
Mas o mais interessante é que, pesquisadas as alterações ao diploma desde a Lei nº 30/2000, que descriminalizou o consumo, não detectei nenhum diploma legal que tivesse estabelecido esta alteração da redacção. Temos portanto uma alteração introduzida pela "secretaria", à revelia do legislador.
Para cúmulo, lembremo-nos que o STJ fixou jurisprudência, pelo Acórdão nº 8/2008, publicado no DR de 5.8.2008, no sentido de que o art. 40º, o tal, se mantém em vigor não só quanto ao cultivo, mas também quanto à aquisição ou detenção para consumo próprio de substâncias em quantidade superior a 10 doses diárias...
Uma verdadeira trapalhada. Mas talvez ninguém dê por nada...

 

O Portugal afectivo e a Mãe Rússia

O Portugal afectivo chora por mais uma criança arrancada aos afectos da família afectiva para ser entregue às garras da mãe biológica, com a agravante, desta vez, de ela ser russa. Aliás, ela não perdeu tempo a dar-lhe umas boas palmadas cor-rectivas, evidenciando assim a distinção entre afecto e biologia.
Como muito bem explicou o Ministro da Solidariedade, fazendo jus ao nome, em Portugal esse comportamento é crime! Em Portugal, tirando alguns pais biológicos, que estão sob a mira do dito ministro, a educação que os pais dão aos filhos é rodeada do maior afecto e carinho. Não só não há castigos corporais, como se procu-ra, no caso de comportamento repreensível da criança (que elas têm as suas coisas...), obter a sua compreensão e o seu consenso para a aplicação de uma qualquer medida censória, que não pode ir além da privação de ver TV durante 24 horas. Em caso de impossibilidade de consenso no diálogo dos pais com a criança, procura-se a conciliação através de familiares (avós, tios, etc.) ou pessoas de autoridade reconhecida pela criança (se as houver), e só mesmo nas hipóteses, meramente académicas (ou quase), de recusa de consentimento, haverá aplicação da medida censória, com a limitação já apontada, e sempre, portanto, com prévia audição da criança.
Por isso, somos invejados no Mundo. A nossa educação afectiva (com excepção dos tais pais biológicos, alguns disfarçados de juízes) é um modelo universal.
A Rússia, e as suas mães, têm muito a aprender com as nossas.

27 maio 2009

 

A imprensa portuguesa, segundo Álvaro de Campos

Ora porra!
Então a imprensa portuguesa
é que é a imprensa portuguesa?
Então é esta merda que temos
que beber com os olhos?
Filhos da puta! Não, que nem
há puta que os parisse.

(Poema sem data, "Poemas de Álvaro de Campos", Ed. crítica da Imprensa Nacional
(1992), p. 224)

25 maio 2009

 

Corporativismos

Estamos em época de eleições e eu estou a lembrar-me de um estudo de Conceição Pequita Teixeira, investigadora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas, chamado «O Povo Semi-Soberano, Partidos E Recrutamento Parlamentar Em Portugal», que acentua como principais características do político português o profissionalismo, o carreirismo, a obediência partidária, a rotação de lugares sempre pelos mesmos actores e, simultaneamente, o baixo índice de substituição dos políticos profissionais por outros que não tenham carreira feita. Significa isto que os nossos políticos se aferram aos lugares com unhas e dentes, porque a política é para eles um modo de emprego, sendo os partidos autênticas empresas. Significa também um afastamento, senão um divórcio dos políticos em relação aos cidadãos e aos seus problemas, porque eles tendem a olhar mais pelos seus interesses, do que pelas funções públicas que desempenham.
Já uma vez escrevi neste blogue que a corporação dos políticos é uma corporação tão ou mais forte do que outras corporações e que, nesse aspecto, pede meças aos corporativismos que muitos desses políticos dizem que precisam de uma “vassourada”. E precisam, mas a luta anticorportiva devia começar pelo «stablishment político», ao menos para dar o exemplo.


Um dos grandes objectivos que está na ordem do dia é a luta contra a influência dos sindicatos, que se diz defenderem só interesses corporativos. Os sindicatos das funções públicas são particularmente atacados por esses paladinos do anti-sindicalismo. Quanto ao sindicalismo judiciário, nem se fala. Mas esta verrina contra tal sindicalismo não é de sempre. Houve quem, sendo na actualidade ferozmente contra ele, já foi seu estrénuo defensor, inclusive fornecendo argumentos a favor e escorando essa defesa em límpidos princípios constitucionais. Ah, constitucionalistas de outrora! O argumento contra é agora o exercício de funções de soberania, incompatível com o sindicalismo. Mas é um argumento falacioso e elástico: umas vezes, alonga-se, outras, encolhe-se. Reparei que, há dias, Adriano Moreira se mostrou desgostoso por a denúncia de certas situações (referia-se ao caso das alegadas pressões sobre magistrados do Ministério Público no caso “Freeport”) provir de «vozes sindicais», porque se tratava de um órgão de soberania. Antes, Adriano Moreira já havia defendido que o órgão de soberania era o juiz (cada juiz). Assim, por esta inovadora perspectiva, o Ministério Público tenderia a ficar desfalcado no capítulo do sindicalismo, mas ganharia em poder soberano. Um significativo progresso.

24 maio 2009

 

Breves

Amor com amor se paga

A semana passada, o ministro da Justiça referiu negativamente as deficiências da investigação criminal, a cargo do Ministério Público, e os reflexos ruinosos que isso tem na imagem da justiça. O Procurador-Geral da República retrucou-lhe com as deficiências nos serviços e os efeitos devastadores provocados pela reforma dos Códigos Penal e de Processo Penal, permitindo a soltura de «perigosos delinquentes». Por sua vez, o vice-Procurador-Geral vibrou uma machadada fatal, ao afirmar, na sequência de um encontro na Gulbenkian (se não erro) que essa reforma constituía «um garrote» para a investigação dos processos mais complexos e explicou que «garrote» queria dizer «estrangulamento». A investigação criminal foi estrangulada.


Flexibilidade

A palavra mágica. A propósito da proposta da Administração da «Auto Europa» de os trabalhadores passarem a trabalhar ao sábado, como se fosse um dia normal, Belmiro de Azevedo lamentou que os trabalhadores, com a sua recusa, se tivessem mostrado inflexíveis, numa época em que falta trabalho.
Como explicou Fernando Rosas, esta é uma questão político-simbólica. O que está em causa é mais uma tentativa de reversão a situações anteriores à aquisição de certos direitos sociais. Os célebres direitos adquiridos. O que daria jeito – disse o mesmo Rosas - a Belmiro de Azevedo, por causa, nomeadamente dos seus supermercados. Faltou-lhe acrescentar uma coisa: esta é também uma tentativa de fazer pagar a crise a quem foi mais prejudicado por ela.

Estalinismo

Há estalinistas que, tendo mudado de campo ideológico, isto é, tendo passado da «extrema esquerda» totalitária para a «esquerda moderada», como fazem questão de salientar, continuam a ser tão estalinistas como eram. Basta ver e observar. É o que se chama coerência nas atitudes.

21 maio 2009

 

justiça e memória

Pode julgar-se a história?

Divulgação integral dos textos do Colóquio Internacional sobre a memória histórica: www.julgar.pt

19 maio 2009

 

As comissões militares de Obama

Afinal Obama não é contra as comissões militares. Até votou a favor delas em 2006, quando Bush teve que recorrer ao Congresso para suprir a inconstitucionalidade orgânica das primeiras comissões que ele próprio instituíra. Aliás Obama lembra que as comissões militares têm uma "longa tradição" nos EUA.
Portanto, meus amigos, esqueçamos tudo quanto ele disse anteriormente, como candidato presidencial e como presidente, quanto às comissões. Agora o que é preciso é "recauchutá-las", dar algumas garantias aos prisioneiros e pô-las a funcionar para "julgar" os mais perigosos, pois seria arriscado submetê-los a um tribunal comum, que poderia mostrar-se pouco "compreensivo" com as necessidades de "segurança nacional" e atender antes às regras da prova e eventualmente absolver o arguido, resultado absolutamente impensável, porque quem for submetido a julgamento é para ser condenado!
Aliás, alguns dos prisioneiros, entre os quais o célebre Khaled Sheik Mohammed, o campeão mundial de "waterboarding", provavelmente nem às comissões militares irão. Provavelmente ficarão presos até ao fim da guerra contra o terrorismo, lá para o final do 3º milénio...
Depois de um começo brilhante e auspicioso, a 22 de Janeiro, com a declaração formal da ordem de encerramento de Guantánamo no prazo de um ano, Obama afunda-se em contradições. Fecha, mas não fecha, suspende as comissões, mas remodela-as, liberta, mas não liberta ninguém afinal. A CIA já obteve garantias de impunidade total. Rumsfeld e companhia também. As novas fotografias de Abu Ghraib, já não as quer mostrar, porque podem "incendiar os teatros de guerra"...
Mas quantos se preocupam com tudo isto? Pois não é verdade que ele condenou Guantánamo ao encerramento? Se fecha ou não é uma questão de pormenor, que só os mal intencionados colocam.

18 maio 2009

 

Um "crime de violência urbana"?

Não, talvez seja melhor não recorrermos à violência, pelo menos a "urbana".
É que há quem ventile, penso que a sério, a possibilidade de ser introduzido esse espécime na tipologia penal. Um crime "destinado a proteger a paz pública, as liberdades e a vida quotidiana dos cidadãos e a própria polícia."
Fico absolutamente estupefacto com a leviandade (e a "violência") desta "proposta". Então o catálogo de crimes do CP não tem lá a panóplia suficiente de tipos legais (participação em motim, armado ou desarmado, instigação pública a um crime, apologia pública de um crime, associação criminosa, desobediência a ordem de dispersão de reunião pública, ameaça com a prática de um crime, resistência e desobediência à autoridade, ofensas corporais contra agente de autoridade...) para fazer frente aos desacatos que vamos tendo e poderemos vir a ter?
O que é que o "novo" crime traria efectivamente de novo? Que protecção acrescida que não esteja já garantida?
Escusado será dizer que serão inconstitucionais todas as normas que, por via penal, pretendam reprimir o mero protesto, ainda que veemente... Não se queira aproveitar a boleia da Bela Vista para fins pouco transparentes.
Aliás as dificuldades de contrução de um tipo penal daquele género seriam evidentes.
(Mas talvez aquela "ideia" não passe de uma manifestação - compreensível - de solidariedade jurídico-conjugal.)

 

Pedradas nas janelas

Surpreendentemente (pelo menos para mim), o editorial de hoje do "Público" é um incitamento claro (e público...) ao crime. É verdade! São elogiados os sequestros dos administradores de empresas em França e os apedrejamentos das janelas de deputados ingleses (dos tais "gananciosos"). São ditos comportamentos civilizados e postos em contraste com os resignados e brandos costumes portugueses... E mais: "...as pedradas dos britânicos são, pelo menos, empenhadas e estabelecem uma fasquia mínima de decência e de exigência".
Avante, portugueses, à pedrada, à fisgada, marchar, marchar! Vamos lá atingir a fasquia mínima, porra!

 

Escândalos britânicos

O escândalo recente (e ainda em curso, havendo aliás muito para correr) sobre a aplicação fraudulenta dos subsídios dos deputados ingleses mostra bem a decadência do país. Dantes os escândalos com políticos ingleses eram do foro sexual, envolvimento com meninas (ou meninos) para actos libidinosos.
Agora não é a líbido que os move. É o (vil) metal que os atrai, que os estimula. Que tempos estes!
Resta-nos a palavra confiante da Teresa de Sousa, que já veio explicar que a grande maioria dos deputados britânicos não são gananciosos nem corruptos. (Talvez tenha exagerado aquela expressão "grande maioria" porque parece que a procissão ainda vai no adro e lá para Julho é que teremos a lista completa dos prevaricadores.)
Oxalá os eleitores ingleses a ouçam e não percam a confiança nos seus representantes, como parece estar a acontecer.

11 maio 2009

 

Bela Vista

O problema do bairro da Bela Vista só superficialmente é de ordem pública. Os verdadeiros problemas estão (mal) escondidos atrás a insegurança: são o desemprego, a marginalidade social, a falta de equipamentos sociais, etc.
Toda a gente sabe disso. Mas o Governo enfrenta o problema como se de polícia e ordem pública se tratasse, apenas. Só MAI fala e fala grosso prometendo e ameaçando, conforme os pontos de vista, levar a lei e a ordem àquele território. O PM faz de conta que não tem nada a ver com aquilo.
A Bela Vista não é certamente o único território explosivo no nosso país. Conhecemos outros nomes, como Cova da Moura, Pedreira dos Húngaros (sem húngaros), etc. São as favelas de Lisboa e de Setúbal, cada vez mais irrequietas e difíceis de aquietar. São o outro lado das cidades prósperas onde moram as pessoas de bem.
Nós, que moramos deste lado, podemos dormir descansados por enquanto, pois a polícia vela por nós. Mas nada nos garante que, a continuarem as coisas assim, não venhamos a passar algum susto valente, como aconteceu aos parisienses há alguns anos atrás, quando escandalizadamente assistiram à invasão do centro da Cidade Luz pelas sombras da periferia.
Não será melhor pensar nos que vivem do outro lado do muro, antes que eles comecem a escalada?

 

O Tony anda por aí

O cargo institucional que hoje ostenta esta personagem única da cena mundial é absolutamente irrelevante: enviado especial do Quarteto (!!!) ao Médio Oriente. Nada pode decidir, nem nada passa por ele, quanto aos problemas do Médio Oriente. Mas isso não importa. Ele é uma estrela e é como tal que se apresenta nos fóruns internacionais. Faz-me lembrar o seu compatriota Beckham: não joga nada, mas não perde uma oportunidade de se mostrar (a ele e à mulher) em tudo o que seja palco mediático.
Por que foi convidado a vir às "Conferências do Estoril"? Trouxe ele alguma contribuição válida sobre a globalização? Ele, que é precisamente um derrotado, um homem do passado!!! Ele que apostou tudo na globalização desregulada, no "laissez faire" absoluto aos mercados financeiros... Ele que foi o homem de mão do Bush na Europa... Que o apoiou em tudo, em todas as aventuras, até na colaboração dos serviços secretos ingleses no interrogatório dos inimigos infiéis...
Como bom malabarista, ele agora não quer falar disso e admira Obama, elogia-o...
Ainda o havemos de ver a negar o passado, a dizer que nunca ouviu falar do Bush... Que a fotografia das Lajes é uma fotomontagem...
O que é certo é que, como as estrelas do espectáculo, tem bons agentes em todo o lado. É convidado, recebem-no com todas as honras, rodeiam-no de todas as medidas de segurança (por que precisará delas? e quem as paga?), e ele, todo babado, faz-se rogado nas entrevistas (quando são exclusivas, faz-se pagar bem, que ele é tudo menos parvo) e o seu "cachê" para dizer meia dúzida de banalidades ou baboseiras estará certamente ao nível do estrelato.
Mas ele é um homem dos palcos, um animador, um "entertainer", como se diz. Ele tem público e faz-se pagar, porque não há almoços nem espectáculos grátis...
Ele andará por aí enquanto tiver espectadores, mas não há comediante ou animador que não canse o público. E este não será excepção à regra.

09 maio 2009

 

Luandino Vieira

Parece um pouco desconcertante que um homem que passou oito anos no Tarrafal (entre 1964 e 1972), depois de ter andado cerca de três anos de cadeia em cadeia, em Luanda, condenado a 14 anos de prisão por actividades subversivas contra a segurança exterior do Estado, diga que «Os anos de cadeia foram muito bons para mim.» Esse homem é o notável escritor angolano Luandino Vieira, que, ao arrebatar o prémio pelo seu livro de contos «Luuanda», provocou o apedrejamento e o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, que teve o arrojo de galardoar, em 1965, «um terrorista».
Foi na entrevista que deu ao «Público», no passado dia 1 de Maio, que fez essa e outras afirmações aparentemente desconcertantes. Lê-la é mergulhar numa atmosfera de paz, de bonomia, de tranquila navegação no mar incerto da vida. É receber uma sábia lição da arte de bem viver, ou de como tirar partido, pelo engenho, pela superior inteligência, pela sensibilidade desperta a tudo o que nos rodeia, das circunstâncias mais adversas e até das situações injustas. A capacidade para inventar a felicidade mesmo no meio de todas as privações, para manter a dignidade humana em circunstâncias que a negam, para construir um mundo solidário e de cumplicidades entre as pessoas e os seres mais diversos, seja um companheiro de prisão, uma camponesa que vende leite à porta do campo de concentração, um director prisional, ou um pardalito que nos visita e acaba por, confiantemente, nos vir comer à mão, essa é a grande lição de amor que nos dá o grande mestre da escrita e da vida que é Luandino Vieira. Um homem que também confessa não guardar rancor a ninguém e em cuja palpável humildade se pressente uma atitude exigente face a si próprio e face ao outro, mas em que esse outro se não reduz à pessoa humana. Foi essa radical exigência que o levou a recusar o prémio “Camões”, quando lho quiseram atribuir, porque, segundo dizia, já há dezenas de anos que não produzia nada e por isso não se sentia merecedor da distinção (depois disso, apareceu em força com o pequeno-grande livro «De Rios Velhos e Guerrilheiros», o primeiro de uma trilogia, que tem por título «O Livro dos Rios»).
Revelou-se-me como escritor em Luanda, quando por lá passei no rescaldo da época colonial, em 1975. Foi uma descoberta fascinante. Quinze anos depois, tive o grato prazer de o conhecer em pessoa e de com ele manter uma conversa cativante, no Convento de São Paio, em Vila Nova de Cerveira, propriedade do escultor José Rodrigues, onde vivia e levava uma vida de eremita, entre animais e montes.
Agora, ao ler esta entrevista, senti-me outro, como que mais leve e disponível e com uma vontade de mandar às urtigas tudo aquilo a que damos tanta importância e que não é senão, a maior parte das vezes, uma forma de falsificarmos a vida e de nos defraudarmos a nós próprios. Bem haja quem assim é capaz de produzir um tal efeito num leitor.

08 maio 2009

 

Financiamentos: What else?

«Tanto o Estado como os cidadãos podem dar apoio aos partidos políticos, devendo assegurar-se que todo o apoio não ponha em causa a independência dos partidos políticos.
As medidas que os Estados tomem relativas aos donativos aos partidos políticos devem conter regras especificas que assegurem a transparência dos donativos e evitar os donativos ocultos.
Os Estados devem tomar medidas que limitem, interditem ou regulamentem de maneira rigorosa os donativos de pessoas colectivas que forneçam bens ou serviços à administração pública.
Os Estados devem prever que os donativos dados aos partidos políticos, nomeadamente quando ultrapassem um plafond estabelecido, devem ser tornados públicos.
Os Estados devem exigir que os partidos políticos e as entidades ligadas aos partidos políticos tenham uma contabilidade completa e adequada, devendo indicar todos os donativos recebidos nomeadamente a sua natureza e o seu valor, sendo que no caso de ultrapassarem um certo montante, o doador deve ser identificado na contabilidade.
Os Estados devem promover a especialização de agentes judiciários, policiais e outros em matéria de luta contra o financiamento ilegal dos partidos políticos e das campanhas eleitorais»: Recomendação Rec (2003) 4 do Comité de Ministros do Conselho da Europa sobre as regras comuns contra a corrupção no financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais.
What else?

 

O direito penal das armas

A partir do próximo dia 4 de Junho vamos ter dois tipos fundamentais de crimes: os crimes cometidos com armas e os outros. Um crime é cometido com armas quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, armas aparentes ou ocultas, e mesmo que esteja autorizado a usá-las. E, quando cometido com armas, os limites máximo e mínimo da pena abstracta são agravados nada mais nada menos que em 1/3. Tudo isto vem no art. 86º, nºs 3 e 4 da Lei 5/2006, alterada pela Lei nº 17/2009. E o nº 5 lembra, humanitariamente, que em caso algum pode ser excedido o limite de 25 anos de prisão. Todo o Código Penal alterado duma só pincelada!
E também o Código de Processo Penal. É que o novo art. 95º-A (estes artigos terminados em A ou B ou C, etc. costumam ser uma perigo...) dispõe, entre outras coisas, que é aplicável ao arguido prisão preventiva quando houver indícios da prática de crime doloso cometido com armas ou de detenção de armas, desde que punível com prisão superior a 3 anos, assim derrogando o art. 202º do CPP.
Esta Lei das Armas assume-se, pois, como diploma central do nosso sistema penal!
Extravagâncias do nosso legislador exravagante...
Trata-se de um caso flagrante e típico de legislação elaborada a reboque dos acontecimentos e em resposta às demandas populistas veiculadas pela comunicação social rasca.
No próximo verão, com a próxima onda de criminalidade, porque alguma ondulação haverá seguramente para noticiar, sendo notória a falta de notícias alternativas na época balnear, no próximo verão constatar-se-á que a criminalidade continua, que esta lei foi insuficiente para lhe pôr termo, as televisões farão boletins da criminalidade hora a hora e transmitirão, sempre que possível, crimes em directo, os mais sangrentos que houver. Reclamar-se-á então a publicação de leis mais duras. Começará então a preparação de novos projectos legislativos, etc...

 

Donativos, doadores e donatários

"Na última década, as 25 maiores empresas insituições que 'venderam' crédito de alto risco ('subprime') nos EUA gastaram quase 370 milhões de dólares (cerca de 277 milhões de euros)em operações de "lobby" e donativos para as campanhas de políticos norte-americanos. De acordo com um estudo divulgado ontem pelo Center for Public Integrity, uma organização sem fins lucrativos constituída por jornalistas, o objectivo destas acções era evitar a adopção de regras mais restritivas para o sector financeiro, que pudessem comprometer os altos rendimentos obtidos com os produtos de alto risco." ("Público", de ontem, p. 31) Entre os maiores beneficiários dos donativos, de 1994 a 2008, os dois partidos tradicionais (os homens do dinheiro jogam em todos os tabuleiros e apostam em todos os cavalos) e a candidatura de Barack Obama a senador do Illinois...
Como se sabe, os donativos foram bem empregados. Os doadores não têm razão de queixa dos donatários (mas só deles próprios, que fizeram o mesmo que o dono da galinha dos ovos de ouro).
Nada de novo, é claro. Nos EUA, corrupção chama-se "lobbying". Dá-se um donativo hoje, para recolher os frutos amanhã. É o sistema. Nada que Anatole France, e o seu prof. Obnubile, não tivesse já observado em 1908.

07 maio 2009

 

"Sorte (?) de Varas"









Parece que o glorioso Parlamento da minha terra se prepara para aprovar a, assim ironicamente apodada, “sorte de varas”. Antes de entrar mais propriamente sobre o tema devo deixar claro que não sou “activista” pelos “direitos” dos animais, nem um fundamentalista contra a caça ou a pesca (que aliás pratico) ou até mesmo (apesar de não apreciar) contra a tourada tal como é praticada ainda por esse Portugal fora. Algumas dessas actividades, como a caça e a pesca, não são meras “tradições”, mas estão antes (a sua prática) profundamente inscritas no etograma humano e, ao menos, está-lhes associado um fim muito específico e comum a todos quanto têm estômago: a gastronomia. A mais disso, como um dia escreveu um dos mais ilustres defensores da caça e das touradas (Ortega y Gasset), num famoso livrinho sobre o tema, tais actividades serão um modo de cada um de nós “tirar férias da Humanidade”.

Não me proponho, como é mais do que óbvio, terçar argumentos com o ilustre filósofo, mas penso ser bizarra e a mais disso extemporânea a pretensão de uns quantos que pretendem agora voltar à “tradição” da “sorte” (?) de varas e tudo quanto de grotesco e bárbaro (e supérfluo) representa como “espectáculo”. Tal como se não me afiguraria próprio proibir sem mais as tradições (como as touradas) por decreto (porque até certo ponto as tradições são para respeitar e devem definhar – como é o caso da tourada portuguesa – e morrer por si), também não se devem impor por portaria, sobretudo quando representam, quer se queira quer não (e não obstante a retórica semi-metafísica dos aficionados) um retrocesso civilizacional. É precisamente essa subtil distinção entre a manutenção de uma tradição civilizacionalmente questionável (como a actual tourada portuguesa, que pode ter por si várias e distintas razões, até de pacificação social) e um retrocesso civilizacional (como é o caso da "sorte" de varas) que os próceres da coisa não entendem.

Mas se cavarmos um pouco mais as razões desse aparentemente súbito apego às “tradições”, veremos que não se trata de apego nenhum e o que quer que seja não é, antes pelo contrário, súbito. Então, o que fará “correr” esta troika substancialmente composta de socialistas e social-democratas, aqueles que têm o poder de no Parlamento açoriano aprovarem uma tal lei, celerada e extemporânea? O que moverá tal mole de base alegadamente progressista a patrocinar uma actividade que mais não é do que a reminiscência de uma sociedade de cavaleiros e escudeiros, de uma sociedade hierarquizada, altamente conservadora e elitista? A resposta é simples: o receio de perderem os votos da única ilha açoriana onde a tourada tem presença secular e substancialmente estabelecida e uma afronta da República cometida há uns anos. Focar-me-ei neste útlimo aspecto.

A ferida abriu-se com um acórdão do Tribunal Constitucional prolatado em 2002, que considerou não ser do “interesse específico” da Região Autónoma dos Açores, para efeitos da norma constitucional pertinente, a derrogação, por normativo regional, da lei que interdita em geral a “sorte de varas”. Perante a inconstitucionalidade e a subsequente teimosia do Parlamento Regional, o Ministro da República da altura terá procedido ao chamado “veto de gaveta” – e a questão morreu por uns anos. Morreu a questão, mas não o ressaibo suscitado pela afronta. E é assim que no novíssimo e a outros títulos turbulento Estatuto Político-Administrativo da RAA, aprovado pela L 2/2009, de 12/1, a Região passa a ter competência legislativa em matéria de “touradas e tradições tauromáquicas nas suas diversas manifestações” (artigo 63.º/2/e), uma norma que quanto a mim tem o toque evidente de com ela se pretender tirar desforço da afronta referida. Ora, concordo que o “veto de gaveta” não seja daqueles instrumentos que se possa paradigmaticamente acolher sob o pálio da transparência democrática. Mas a um mal não se deve opor outro. E de qualquer modo um diploma tão importante como o Novo Estatuto Político-Administrativo da RAA merecia uma estreia bem mais nobre da que alguns marialvas parecem querer obsequiar-lhe; e o conceito de “interesse específico” das Regiões Autónomas, constitucionalmente sancionado, merecia ser corporizado em algo bem mais substancial e digno do que com a imagem de uma vara espetada nos lombos de um boi.

06 maio 2009

 

Direito à dissidência

Publico mais um texto que me foi enviado pelo colaborador do Sine Die, Luís Eloy:

Ao ler um excelente texto de Ximo Bosch, Juiz de Moncada (Valência) no último Boletim dos Jueces para la Democracia, intitulado Disidencia y democracia, lembrei-me de uma ou duas histórias da nossa magistratura que conheço bem.
Aqui fica um trecho desse reconfortante elogio da dissidência, recomendando-se vivamente a sua leitura integral:

«En consecuencia, no parecen admisibles las pretensiones de limitar el derecho a la disidencia. Hemos de recordar que en otras democracias más avanzadas todavía es mayor la consideración al discrepante. […]
«Ciertamente, estas muestras de diversidad siempre han espantado a los aparatos y a sus corifeos. Pero la disidencia en cualquier ámbito forma parte esencial de las reglas de la democracia y de la libertad de expresión. Sin duda, el discrepante debe asumir determinados riesgos: el ministro crítico puede ser cesado, el diputado divergente quizás sea vetado en las próximas elecciones, el compañero asociado que se desmarca puede ser arrinconado. Casi siempre valdrá la pena aceptar estos riesgos. La disidencia puede ser reducida a los ámbitos internos en algunos casos. En determinadas organizaciones vaticanas por razones de obediencia. Y en algunos grupos de origen siciliano por evidentes motivos de salvaguarda de la integridad personal. Sin embargo, en organizaciones democráticas debemos apostar al máximo por no restringir la libertad de expresión.»

Luís Eloy Azevedo

04 maio 2009

 

Anatole France fala-nos da Nova Atlântida

A viagem do Prof. Obnubile à Nova Atlântida


A democracia dos pinguins não se governava a si própria; obedecia a uma oligarquia financeira que ditava a opinião através dos jornais e tinha nas mãos os deputados, os ministros e o presidente. Ordenava soberanamente as finanças da república e dirigia a política externa do país.
Os impérios e os reinos mantinham então exércitos e armadas enormes; obrigada, por razões de segurança, a fazer o mesmo, a Pinguínia sucumbia debaixo do peso dos armamentos. Toda a gente lamentava ou fingia lamentar uma tão dura necessidade; contudo, os ricos, os homens de negócios, submetiam-se de boa vontade por patriotismo e porque contavam com os soldados e com os marinheiros para defenderem os seus bens e adquirirem fora mercados e territórios; os grandes industriais pressionavam o fabrico de canhões e de navios por zelo pela defesa nacional e para obterem encomendas. Entre os cidadãos de condição média e das profissões liberais, uns resignavam-se sem queixume a este estado de coisas, julgando que iria durar sempre; outros esperavam impacientemente pelo fim e pensavam levar as potências ao desarmamento simultâneo.
O ilustre professor Obnubile era destes.
“A guerra, dizia ele, é uma barbárie que o progresso da civilização fará desaparecer. As grandes democracias são pacíficas e o seu espírito acabará por impor-se em breve aos próprios autocratas.”
O professor Obnubile, que levava havia sessenta anos uma vida solitária e reclusa, no seu laboratório onde não penetravam os barulhos de fora, resolveu observar pessoalmente o espírito dos povos. Começou os seus estudos pela maior das democracias e embarcou para a Nova Atlântida.
Depois de quinze dias de navegação o paquete entrou, de noite, na baía de Titanporto, onde estavam ancorados milhares de navios. Uma ponte de ferro, lançada sobre as águas, toda resplandicente de luzes, ligava dois cais tão distantes um do outro que o professor Obnubile julgou navegar nos mares de Saturno e ver o anel maravilhoso que cerca o planeta. E essa imensa passagem carregava mais de um quarto das riquezas do mundo. O sábio pinguim, após o desembarque, foi servido num hotel de quarenta e oito andares por autómatos, e depois apanhou o comboio para Gigantópolis, a capital da Nova Atlântida. Havia no combóio restaurantes, salas de jogos, arenas atléticas, um escritório para comunicações comerciais e financeiras, uma capela evangélica e a imprensa de um grande jornal que o sábio não conseguiu ler porque não sabia a língua dos novos atlantes. O comboio passava, à beira de grandes rios, por cidades industriais que escureciam o céu com o fumo dos fornos: cidades negras de dia, cidades vermelhas de noite, cheias de clamores ao sol e de clamores à sombra.
“Aqui está, pensava o sábio, um povo demasiado ocupado com a indústria e com os negócios para se meter em guerras. Estou convencido, a partir de agora, que os novos atlantes seguem uma política de paz. Porque é um axioma reconhecido por todos os economistas que a paz exterior e a paz interna são necessárias para o progresso do comércio e da indústria.”
Percorrendo Gigantópolis, confirmou esta opinião. As pessoas caminhavam com um tal movimento que empurravam tudo o que encontravam de passagem. Obnubile, várias vezes derrubado, apreendeu a comportar-se melhor: depois de uma hora de corrida, conseguiu derrubar um atlante.
Chegado a uma grande praça, viu o pórtico de um palácio de estico clássico cujas colunas coríntias elevavam a setenta metros acima da base os capitéis de acanto arborescente.
Estava imóvel a admirar, de cabeça virada para cima, quando um homem de aparência modesta o abordou e lhe disse em pinguim:
“Vejo pela maneira como se veste que é da Pinguínia. Sei a sua língua; sou intérprete ajuramentado. Este palácio é o parlamento. Neste momento, os deputados deliberam. Quer assistir à sessão?”
Conduzido a uma tribuna, o sábio mergulhou o olhar na multidão de legisladores que estavam sentados em cadeirões de junco, com os pés em cima da secretária.
O presidente levantou-se e, murmurou, no meio da desatenção geral, as seguintes fórmulas, que o intérprete traduziu de imediato:
“Estando terminada a guerra para abertura dos mercados mongóis, com satisfação dos interesses do nosso país, proponho-vos que se enviem as respectivas contas à comissão das finanças…
“Alguém se opõe?
“A proposta está aprovada.
“A guerra para abertura dos mercados da Terceira Zelândia estando terminada com satisfação dos interesses do nosso país, proponho-vos que se enviem as contas à comissão de finanças…
Alguém se opõe?
A proposta está aprovada.
- Ouvi bem? Perguntou o professor Obnubile. O quê? Vocês, um povo industrial, meteram-se nestas guerras todas?
- Sem dúvida, respondeu o intérprete: são guerras industriais. Os povos que não têm comércio nem indústria não se vêem obrigados a meter-se em guerras; mas um povo de negócios é obrigado a fazer uma política de conquista. Quando uma das nossas indústrias não consegue escoar os seus produtos, é preciso que uma guerra lhe abra novos mercados. É assim que tivemos uma guerra do carvão, uma guerra do cobre, uma guerra do algodão. Na Terceira Zelândia matámos dois terços dos habitantes para obrigar os restantes a comprar-nos guarda-chuvas e suspensórios.
Nesse momento, um homem gordo que estava sentado no centro da assembleia subiu à tribuna.
“Reclamo, disse, uma guerra contra o governo da República da Esmeralda, que disputa insolentemente aos nossos porcos a hegemonia dos presuntos e dos salsichões em todos os mercados do universo.
- Quem é este legislador? Perguntou o professor Obnubile.
- É um comerciante de porcos.
- Alguém se opõe? Disse o presidente. Ponho a proposta à votação.
A guerra contra a República da Esmeralda foi votada de mão levantada por uma grande maioria.
“Como? disse Obnubile ao intérprete; vocês votaram uma guerra com esta rapidez e esta indiferença?…
- Oh, é uma guerra sem importância, que custará apenas oito milhões de dólares.
- E homens…
- Os homens estão incluídos nos oito milhões de dólares.
Então o professor apertou a cabeça com as mãos e pensou amargamente:
“Uma vez que a riqueza e a civilização comportam tantas causas de guerra como a pobreza e a barbárie, uma vez que a loucura e a maldade dos homens são incuráveis, resta uma boa acção para praticar. Os homens sensatos juntarão uma quantidade suficiente de dinamite para fazer saltar o planeta. Quando este girar em pedaços pelo espaço, uma melhoria imperceptível ocorrerá no universo e uma satisfação será dada à consciência universal, que aliás não existe.”


"A Ilha dos Pinguins" (1908)

03 maio 2009

 

1.º de Maio

Não era preciso que alguns manifestantes do 1.º de Maio, injuriando, socando e pontapeando Vital Moreira, fornecessem um tão óbvio pretexto de vitimização a quem dela precisa para vencer dificuldades e tirar partido dos opositores. E não me refiro a Vital Moreira. É caso para dizer que esses manifestantes se viraram contra todos os que alinharam na manifestação com o espírito recto de honrar o 1.º de Maio.

01 maio 2009

 

A propósito do 1º de Maio, um poema de Jorge de Sena

UMA SEPULTURA EM LONDRES

No frio e no nevoeiro de Londres,
numa daquelas casas que são todas iguais,
debruça-se sobre todas as dores do mundo,
desde que no mundo houve escravos.
As dores são iguais como aquelas casas
modestas, de tijolo, fumegando sombrias, solitárias.
Os escravos são todos iguais também:
De Ramsés II, de Cleópatra, dos imperadores Tai-Ping,
De Assurbanípal, do Rei David, do infante
D. Henrique, dos Sartoris de Memphis, dos
civilizados barões do imperador D. Pedro II.
Ou das «potteries», ou da Silésia, de África,
da Rússia. (E o coronel Lawrence da Arábia
chegou mesmo a filosofar sobre a liberdade moral
dos jovens escravos com quem dormia.)
No frio inenarrável das eras e das gerações de escravos,
que nenhuma lareira aquece no seu coração,
escreve artigos, panfletos, lê interminavelmente,
e toma notas, historiando infatigavelmente
até à morte. Mas o coração, esmagado
pelo amor e pelos números, pelas censuras
e pelas perseguições, arde, arde luminoso
até à morte. — Eu quero ver publicadas
as suas obras completas — diz-lhe o discípulo.
— Também eu — responde. E, olhando as montanhas
de papéis, as notas e os manuscritos, acrescenta com
esperança e amargura — Mas é preciso
escrevê-las primeiro—.
Como têm sido escritas e reescritas! Como
não têm sido lidas. Mas importa pouco.
Naquela noite — creiam — a neve inteira
derreteu em Londres. E houve mesmo
um imperador que morreu afogado
em neve derretida. Os imperadores, em geral,
libertam os escravos, para que eles fiquem mais baratos,
e possam ser alugados sem responsabilidade alguma.
O coronel Lawrence (como anotámos acima), com os seus jovens escravos,
também tinha um contrato de trabalho. Mais tarde,
criou-se mesmo a previdência social.
No frio e no nevoeiro de Londres, há, porém,
um lugar tão espesso, tão espesso,
que é impossível atravessá-lo, mesmo sendo
o vento que derrete a neve. Um lugar
ardente, porque todos os escravos, desde sempre todos
aqueles cuja poeira se perdeu — ó Spártacus —
lá se concentram invisíveis mas compactos,
um bastião do amor que nunca foi traído,
porque não há como desistir de compreender o
mundo. Os escravos sabem que só podem
transformá-lo. Que mais precisamos de saber?

"Peregrinatio ad loca infecta" (1969)

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