18 março 2020

 

China IV




Manhã cedo, quando a circulação de trânsito é ainda escassa, já estamos a rodar no autocarro em direcção à estação dos caminhos-de-ferro. É uma cidade ainda estremunhada esta, com raros trauseuntes, um ou outro autocarro, carros de limpeza. A Praça Tiananmen aparece de relance, ainda deserta, apenas povoada por meia dúzia de pessoas, talvez operários nas limpezas matinais, preparando o recinto para a multidão de turistas que a hão-de encher e animar de movimento.
Caminhamos por grandes avenidas; esta por onde circulamos chama-se Avenida da Paz Eterna (estes nomes chineses são uma delícia, transportando-nos para um mundo que não é deste mundo). É uma avenida inerminável, que praticamente vai dar à estação e ao longo da qual se pode dormir um bom bocado ao ritmo monótono do rodado do autocarro, uma soneca tão repousante e compensatória da forçada madrugada, que parece ter o sabor de uma paz, se não eterna, pelo menos abençoada. A grande chatice são as malas no termo da viagem, pois trazemos connosco toda a bagagem, enfileirando em bichas, passando com esforço portas automáticas e controles complicados, como nos aeroportos, a voz de Zhao Naipu chamando-nos à ordem e procurando juntar-nos com os braços abertos: Olá! Olá!…, correndo para aqui e para acolá: Olá! Olá!…, num curioso vocativo que me fez lembrar o barqueiro de Gil Vicente no Auto da Barca do Inferno: “À barca, à barca, hou lá!”
Entrámos para a plataforma quando, no painel electrónico surgiu a hora do embarque e passada mais uma porta que se accionava com a introdução do bilhete. Despedimo-nos de Zhai Naipu e tomámos os nossos lugares numa carruagem confortável. A distância que iríamos percorrer até Chian cifrava-se em 1200 quilometros. Vencêmo-los em seis horas exactas. Isto, porque o comboio parou em, para aí, uma dezena de estações ou mais, que serviam outros tantos centros urbanos. O certo é que perdia tempo a reduzir a velocidade antes da paragem, na estação e novamente no arranque. De resto, a velocidade a que normalmente circulava era de 300 quilómetros por hora. O serviço de bar é que não achei famoso, pelo menos em termos de refeições. Nem sequer serviam chá, que tão bem me teria sabido, em vez do café a que estou habituado.
Durante a viagem, houve sempre sol e podiam observar-se com nitidez as paisagens que se iam desenrolando diante dos nossos olhos. Poucas zonas montanhosas e planícies a perder de vista. Os povoados que surgiam pareceram-me desolados, com os seus prédios tipo caixote, uniformizados, sucedendo-se em filas, com espaços entre eles pouco desafogados. Áreas cultivadas, sim, mas onde não se divisavam nem pessoas, nem animais, assim como não se viam casas rurais, que emprestam sempre às paisagens campesinas um carácter especial.
Enfim, chegámos a Xian e já tínhamos à nossa espera a guia chinesa que iria conduzir-nos durante o tempo que lá estivéssemos. Falava castelhano muito bem e disse chamar-se Sílvia. É claro que era a tradução do seu nome chinês. Quando lhe pedi para me escrever o seu nome original, fez um gatafunho no caderno, que me deixou perplexo. Durante o trajecto de autocarro até ao hotel, foi-nos expondo, de um modo geral, um pouco da história da China, da sua indústria e das suas populações e, em especial, da história da cidade. Xian tem 3.000 anos de existência e foi a capital durante metade das dinastias do império. O nome Xian significa Paz do Oeste (Xi – Paz; An – Oeste). A cidade situa-se no Norte, perto da Mongólia Interior e tem 10 milhões de habitantes. Ainda se vêem trechos das muralhas que a cercavam.
A chegada ao hotel – Grand Noble Hotel, onde me coube o quarto 1205 – foi só para descarregar as malas, que o tempo nestas viagens tem de ser aproveitado até ao segundo. De volta ao autocarro, visita ao Pagode do Grande Ganso Selvagem, dos finais do século VII. É uma construção em pirâmide, escalonada em andares que se vão estreitando até ao vértice. Fica no alto de uma pequena elevação à qual se ascende por uma ampla escadaria. Espaço de lazer envolvente, interessante, com árvores. Havia função à hora a que lá chegámos. Viam-se os monges budistas e os fiéis, através da larga porta, salmodiando numa toada repetitiva, ritmada por um tambor e um pequeno sino. Era vedada a entrada, evidentemente, e a tentativa de disparar as máquinas fotográficas para o interior era imediatamente sustada por vigilantes. Em redor, várias dependências com figuras de jade representando a vida de Buda.
Actualmente, após o degelo maoísta, conforme foi salientado pela Guia, existe liberdade de culto na China. Mao queria acabar com a religião.
De seguida, partimos para um outro templo, desta feita, da religião muçulmana - a Grande Mesquita de Xian, cujas origens remontam ao século VIII (dinasstia Tang), segundo o que foi posto a circular na altura da visita, mas o templo terá sido construído bastante mais tarde, durante a dinastia Ming (1368-1644), segundo o que leio num velho guia da Baedecker (1996), que adquiri com vista a uma frustrada viagem a Macau antes da retirada de Portugal do território, onde iria participar num seminário sobre liberdade de expressão e de imprensa. É possível, no entanto, que antes deste tenha exisitido um outro templo para prestar serviço religioso à comunidade muçulmana, que desde cedo se fixou nesta cidade integrada na Rota da Seda. O actual dispõe de uma entrada comprida com jardins e várias construções. O templo propriamente dito está construído no estilo das construções chinesas e não no estilo tradicional muçulmano, não dispondo de cúpula e minaretes. Porém, a decoração é muçulmana.
À hora em que por lá andávamos, os fiéis eram convocados para a oração por meio de aparelhagem sonora, naquele estilo de cantoria monótona.
Percorremos depois o exótico bairro muçulmano, muito concorrido, com uma imensidade de lojas e barracas e uma grande variedade de comidas, que enchiam o ambiente de desencontrados odores.
Após o jantar, fora do hotel, em local previamente combinado, saímos para uma visita nocturna à cidade, em autocarro, acompanhados pela guia, que jantou connosco. Por força, queria trazer-nos para esta visita, tendo-se fartado de elogiar o encanto da cidade à noite, com o espectáculo das suas luzes. E, de facto, o cenário é magnífico. Fizemos várias paragens pelo caminho para admirarmos o efeito cromático das luzes, em que se distinguiam cores variegadas combinando-se em fantásticas composições, em particular numa zona ribeirinha dominada por uma elevação, com os prédios e a vegetação em cascata. Também no centro, numa das principais praças, onde avultavam vários edifícios nobres, com trechos da muralha a surdirem por entre as luzes, havia espectáculos de luminotecnia e animação com bonecos, movendo-se num bailado nas varandas de um desses edifícios, ao som de música ambiente.
Esta animação prosseguia por outros sítios. Transportados para outro local, fomos dar a um centro com variadas ruas, uma delas muito comprida, pedonal, uma espécie de rua mágica (acho que era designada mesmo assim), cheia de iluminações de variada coloração e composição. Numerosas pessoas passeavam por ali, em grupo, descontraídamente, ao som de música ambiente. Havia uma parte da rua onde actuavam grupos musicais de jovens, que tocavam uma música mais frenética e mais consonante com as novas modas. Passeámos longamente por ali, antes de recolhermos ao autocarro, para regressarmos ao hotel. Perguntei à guia se aquele ambiente festivo se devia a alguma comemoração (estava-se em Outubro, em que é tradicional celebrar-se durante o mês o aniversário da revolução socialista) ou se era habitual. Ela respondeu que era sempre assim. Caso para estranhar.

O mais importante, porém, estava para vir: a visita ao museu que guarda os célebres guerreiros de terracota. Foi para essa visita, fundamentalmente, que Xian foi incluída no roteiro da China. Logo de manhã cedo foi para lá que nos dirigimos.
Que espectáculo mais fora do comum! Não há ninguém que, em face do que lhe é exposto, não fique boquiaberto. Trata-se, efectivamente, de um local imperdível, ao menos para quem vai à China. Ir lá de visita e não se deslocar a Xian é como ir à Índia e privar-se de ver o Taj Mahal. Multidões de turistas circundam demoradamente este recinto, debruçando-se sobre a balaustrada de ferro que lhe serve de resguardo e disparando as suas máquinas fotográficas. Abaixo do solo, alinhadas em trincheiras escavadas na terra, milhares de figuras em terracota compõem um exército completo, com soldados, generais, carros de combate e cavalos. Tudo em tamanho natural. As duas trincheiras da direita estão repletas de soldados e carros de combate com cavalos, uma delas com maior número de figuras (cerca de 6.000), ao passo que a outra tem cerca de 1.300; a terceira, com menor número de figuras (umas dezenas) , está ocupada apenas por oficiais de várias patentes e um carro de combate puxado por quatro cavalos. As armas - arcos, lanças e espadas de bronze – eram reais e terão sido utilizadas na guerra. Uma coisa espantosa é o realismo e o detalhe com que estas figuras, do século III a.C., foram concebidas: as figuras humanas, os animais, os carros de combate, assim como as indumentárias e os apetrechos. E mais curioso ainda: a individualidade de cada figura, como se cada uma delas representasse um estilo e uma personalidade própria.
Esta fantástica armada de terracota será um monumento funerário, formando provavelmente um conjunto com outros objectos que foram encontrados junto do mausoléu do primeiro imperador da China – Qin Shihuang – situado ali perto, e carecendo ainda de uma cabal ou, pelo menos, mais completa explicitação da sua simbologia. O conjunto, que representaria o exército e a guarda de honra do referido imperador, velando-o poderosamente na outra vida ou dando continuidade à sua missão guerreira, pois que os soldados estão em posição de combate, foi descoberto em 1974 por camponeses, quando procediam à perfuração de uma parede que estava soterrada. Desde então para cá, tem-se desenvolvido um intenso trabalho arqueológico de desenterramento das figuras (visto que terão sido originalment enterradas) e de restauro das mesmas, o que obriga a mil cuidados, um restauro que não é integral, pelo menos no que se refere à pintura das esculturas, que em algumas figuras expostas é evidenciada por alguns vestígios que permaneceram ao longo do tempo.
Por conseguinte, este museu singular é o próprio local arqueológico onde têm sido desenterradas e recuperadas as figuras.
O resto do tempo até ao almoço foi preenchido com a visita a uma oficina de terracota e de móveis pintados e com incrustações em jade e madrepérola. Uma oportunidade, evidentemente, para as compras turísticas, pese embora o facto de a visita ter realmente interesse pela qualidade e beleza de muitos objectos expostos.
Após o almoço num restaurante situado no mesmo edifício, marchámos para o aeroporto, onde, após as demoradas formalidades, apanhámos o avião para Shangai. Duas horas e meia de viagem, entre as 18,00h e as 20,30h. À nossa espera, lá estava o guia, um patusco gordinho e baixote, com curso superior de português. Durante a viagem, expendeu longamente o seu gosto pela nossa língua e cultura e deu mostras da sua erudição citando Camões e alguns autores mais. E não só pela nossa língua e cultura, mas também pela religião tradicional do nosso país, confessando-se católico, apostólico, romano, menino de coro e defensor da vertente mais conservadora da Igreja, incluindo a missa em latim.

09 março 2020

 

China III


Transposta a majestosa Porta Meridional, cá estamos na Cidade Proibida. Um ampla esplanada ou praça é atravessada pela Ribeira Dourada, cavalgada por cinco pontes em mármore, ricamente decoradas com esculturas. É uma ribeira cujo nome é auspicioso; ao contrário dos rios que levavam ao Inferno, com nomes escuros como Letes, Estige, Aqueronte, etc., esta ribeira, uma vez atravessada, conduz-nos ao fabuloso conjunto de galerias e palácios imperiais com denominações evocadoras de um mundo harmonioso e perfeito, que se devia parecer com o Olimpo. Uma cidade dentro da cidade, celestial, que o não seria tanto para a multidão de serventuários, ocupando uma extensão vastíssima, que assim o exigia a magnificência da corte imperial. Rezam as crónicas que mais de um milhão de metros quadrados, comportando cerca de 800 edifícios e 9.000 aposentos. Este conjunto de imóveis, que foi declarado pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade, constitui um belo e singular acervo da arquitectura palaciana chinesa. Escapou por pouco à fúria arrasadora da Revolução Cultural.
Os diversos pavilhões e palácios que se sucedem uns a seguir aos outros dispõem-se ao centro, ao longo de um eixo, que divide simetricamente a cidade em duas (aos lados, Este e Oeste, outros palácios menos importantes se perfilam).
O Pavilhão da Harmonia Suprema é o primeiro que se nos depara, transposta a grandiosa porta do mesmo nome, flanqueada por dois enormes dragões em bronze. No vasto recinto que o antecede, onde, pelos vistos, havia lugar para 100.000 pessoas, decorriam as cerimónias importantes, como a coroação, os casamentos imperiais, as celebrações do Ano Novo, etc. O imperador era transportado numa liteira e colocado no seu luxuoso trono, designado por Trono do Dragão, ao centro do pavilhão, em face do público. Tal o espectáculo que era necessário montar para que o poder aparecesse em todo o seu esplendor. Dezoito queimadores de incenso, em bronze, simbolizando as dezoito províncias da China, ardiam no último dos três escalonados terraços, ornados de ricas balaustradas de mármore, que ascendiam até à entrada onde estava o trono.
A parte da frente do recinto era ocupada pelos funcionários (cerca de 9.000, segundo diz o guia Zhao Naipu pelo walkie talkie; segundo o guia em forma de livro escrito em inglês que tenho comigo, o pessoal tinha que saudar o imperador curvando a cabeça até ao solo, por nove vezes). As bancadas laterais eram destinadas aos músicos, tangendo os seus instrumentos.
Há uma enorme massa de turistas vagueando por aqui, subindo ao terraço e rondando o pavilhão. Acotovelam-se junto do sítio onde o imperador aparecia no seu trono. Parece que o trono está lá, mas eu não o vi. Não tive paciência para tolerar aquelas cabeças apinhadas, espreitar por cima delas e fazer a ginástica que toda a gente fazia de levantar os braços com a máquina em punho e tirar uma foto. Aliás, para a maior parte dos turistas, incluindo os do grupo onde me integro, o importante parece ser dar ao gatilho da máquina e disparar. Atingir o alvo. Alguns, mal acabam de entrar num determinado local, já estão a metralhar, antes mesmo de se aperceberem da realidade do objecto ou do sítio. Pior: a sua voracidade de imagens, a sua azáfama de caça vai ao ponto de nem sequer escutarem o que diz o guia, tolhendo a vida a quem quer prestar atenção. Também fui um pouco apanhado por esse vício, mas não me deixei possuir de todo e algumas vezes resisti. Como desta vez em relação ao trono do imperador. Por causa dele e da mania da fotografia, uma professora de inglês na reforma perdeu-se do grupo. Foi necessário os dois guias – a portuguesa e o chinês – irem no seu encalço, agitando a bandeirinha portuguesa, porque pelo telemóvel não se conseguiu falar com ela, fosse por causa do barulho, fosse por outra razão. Felizmente, com a sua experiência de viagens, deixou-se ficar onde estava e, daí a pouco, regressava ao nosso seio, gingando o corpo nas pernas trôpegas, que todavia não a tolhiam de acompanhar o grupo, mesmo quando era preciso andar mais depressa. Era uma mulher afável, de olhos azuis, viúva de um advogado que falecera vitimado por um cancro do pulmão, devido ao abuso do tabaco, e por quem os olhos dela se lhe aguavam, quando falava dele.
Assim se passou ao Pavilhão da Harmonia Central, ou do Meio, ou ainda, creio, Pavilhão da Harmonia Perfeita (os dois primeiros são designações que encontro nos guias impressos; o último foi o que recolhi no meu caderno de apontamentos, a partir do que o guia Zhao Naipu nos ia transmitindo).
Este era o local onde o imperador recebia cumprimentos ou vassalagem dos seus funcionários mais próximos, e dava os últimos retoques antes de passar ao Pavilhão da Harmonia Suprema, onde decorriam, como vimos, as cerimónias oficiais.
O terceiro Pavilhão que vem a seguir tem a designação de Pavilhão da Harmonia Preservada. Era o local dos banquetes imperiais, onde, de facto, conviria preservar alguma harmonia.
Este conjunto de edifícios enquadrava-se no chamado Pátio Exterior e era destinado às representações do poder, exteriorizado por cerimoniais, fausto e grandiosidade e pela criação de uma atmosfera de transcendência, em que o imperador aparecia revestido de uma espécie de magnificência celeste.
Para além desse Pátio Exterior, seguindo a ordem da sucessão de edifícios que se nos depara após a entrada pela Porta Meridional ou Porta Tiananmen, mas inversa à disposição construtiva, que é Norte/Sul, fica o Pátio Interior, um espaço exclusivamente reservado ao imperador e demais membros da sua corte e onde era proibida a entrada de qualquer estranho, sob pena de execução sumária.
Esta face interior era formada por três palácios: o Palácio da Pureza Celestial, o Palácio da União entre o Céu e a Terra e o Palácio da Tranquilidade Terrena. Nomes que, só por si, dizem muito da concepção da vida imperial e da ancestral cultura chinesa. Rezam as crónicas que era no último dos palácios citados que as imperatrizes viviam e dormiam e, além disso, era lá que era passada a noite de núpcias. As outras noites ficariam à discrição dos imperadores, segundo penso, pois tinham à sua disposição uma gama variável, mas no geral muito diversificada e vasta de concubinas, que viviam em palácios próprios, situados na área imperial. Através das vidraças das janelas, os turistas curiosos tentam imaginar como seria o seu dia-a-dia, coscuvilhando móveis, utensílios vários e objectos de adorno, que se divisam no interior.
Por trás destes palácios, ou seja, a seguir a eles, segundo a orientação que vamos seguindo, situa-se o Jardim Imperial, um belo e aprazível espaço que é um modelo da arquitectura paisagística chinesa. Pequenos recantos, montículos arrelvados e variadas espécies arbóreas, onde se distinguem velhos pinheiros, bambus, ciprestes. Entre o arvoredo, outras construções com nomes igualmente magnânimos, como o Pavilhão da Paz Imperial. Num destes edifícios, se bem escutei Zhao Naipu, foi que o último imperador, o protagonista do filme de Bertolucci, fez a sua aprendizagem escolar.
E assim vamos fruindo o espaço neste dia de sol, imaginando as delícias de um piquenique em qualquer destes recantos, enquanto nos vamos encaminhando para a porta de saída, situada do lado Norte.
Após o repasto chinês num restaurante de Pequim e um cafèzinho expresso tomado numa cafetaria ao lado, da cadeia Starbucks, que é uma multinacional (já o vimos noutras partes do planeta, nomeadamente na Índia, no Dubai e em Manhattan), pois os restaurantes chineses apenas servem chá, de ordinário durante a refeição, já vamos de largada para outra visita. Desta feita, o alvo da nossa viagem é o célebre Templo do Céu.
Mal descemos do autocarro num largo situado na vizinhança, deparou-se-nos, no cimo de uma elevação, um curioso monumento, que tenho a impressão que se avista de muitas partes da cidade, dada a sua localização altaneira. A área circundante é um amplo espaço de lazer com esplanadas arborizadas e mesas para piquenique. Muitos chineses por aqui passeiam e se divertem, com destaque para os reformados (homens e mulheres), que, em grande número, sentados em bancadas e muros baixos, pincipalmente a todo o comprimento de um Longo Corredor, semelhante ao que já encontrámos no Palácio de Verão, se dedicam ao jogo de cartas com entusiasmo e e grande arruído. Pelos vistos, segundo informação do guia, que interpelei, é um jogo muito comum na China e o principal divertimento dos reformados (a reforma é aos 60 anos), depois da obrigação de cuidarem dos netos.
Dos netos?”, reagi espantado.
Sim, reafirmou ele.”
Então não são as creches?, os infantários? Não é o Estado que se encarrega obrigatoriamente da ocupação e educação das crianças?”
Não é obrigatório que as crianças vão para as creches e os infantários. Depende da vontade dos pais, respondeu”.
Este é mais um exemplo da viragem da China. É claro que não se tratará apenas de uma maior liberdade educativa em benefício dos parentes da criança e da consequente abdicação, por parte do Estado, do monopólio da educação e ensino a todos os níveis, mas também (e principalmente?), da libertação estadual do correspondente ónus financeiro.
Mas retornemos ao Templo do Céu, que se avista mesmo na nossa frente, como estava dizendo. O monumento que ressalta na sua beleza invulgar é o principal de três templos taoístas. O taoísmo é uma religião baseada em grane medida nos ensinamentos e na filosofia de Lao Tse, um poeta que viveu no século VI a.C. a quem é atribuído o livro de poemas Tao Te King, que significa “livro da Via e da Virtude”, um livro que, sob muitos aspectos, é admirável pelo esforço que faz na conciliação dos contrários, na exaltação do fraco em vez do forte, da suavidade em vez da rudeza, do simples em vez do complexo, do humilde em vez do poderoso, como via ou o caminho para atingir a perfeição, a paz e a tranquilidade, a sublimidade celestial, mas que também é descoroçoante no exaltar a quietação, a inacção, por vezes até a ignorância e o nada [“Rejeita a sabedoria e o conhecimento,/o povo tirará assim cem vezes mais proveito” (…) e noutro poema: “Quem pouco sabe terá o conhecimento seguro, Quem muito sabe ficará na dúvida (…)”], (Tao Te King, Editorial Estampa, 2ª edição, 1977)
Uma escadaria majestosa em três lanços, com uma tríplice balaustrada em mármore, conduz ao principal dos templos a que me vinha referindo. Tem uma forma cónica e está coberto por um triplo tecto, cujos círculos se vão estreitando para cima e terminando por um pináculo com uma bola dourada. Telhas de um azul purpúreo cobrem o triplo tecto, conferindo-lhe um aspecto gracioso. Estamos em face da denominada Sala da Oração pelas Boas Colheitas. Era aqui que o imperador vinha rezar, todos os anos, pelas boas colheitas, no início da Primavera, e pelos frutos e cereais obtidos, no Outono.
O espaço em redor é um vasto círculo, de chão marmóreo, cercado pela referida balaustrada, interrompida no cimo pelos vários lanços de escadas correspondentes aos vários acessos que conduzem ao recinto – Norte, Sul, Este e Oeste. O que foi utilizado por nós leva directamente à Sala de Oração pelas Boas Colheitas.
Os outros templos situados na área são a Abóbada Celestial Imperial e o Altar Circular, ligado por um arruamento empedrado à Sala da Oração pelas Boas Colheitas. O primeiro apresenta uma construção similar à deste último templo, embora de dimensão mais reduzida e tem como curiosidade o muro que o cerca, conhecido pelo Muro do Eco, por permitir que uma voz emitida em qualquer parte dele seja ouvida no lado oposto ou em qualquer outro ponto. O Altar Circular dispõe de uma simbologia especial à volta do número 9 e seus múltiplos (9, 27, 81), patente no número de degraus da escadaria que lhe dá acesso, na balaustrada e na decoração interior.
É curioso constatar que a simbologia do número 9 e seus múltiplos está ligada ao sagrado de várias religiões e ao ritual de certas práticas iniciáticas, bem como transparece no simbolismo de certas obras de arte, das quais A Divina Comédia de Dante é um exemplo flagrante. Nove é o número de círrculos infernais; nove é um múltiplo de 3, sendo que o poema de Dante está construído em tercetos.
Do Templo do Céu partimos para outro local de Pequim, para um teatro, onde assistimos a um espectáculo teatral de Kung Fu. Contava a história de uma criança entregue aos cuidados de um monge de Kung Fu, o qual, através de ilustrações e exercícios próprios desta arte marcial, de uma incrível destreza e acrobática espectacularidade, ia ministrando ensinamentos sobre o domínio do corpo e da mente, sobre a arte de vencer resistências e dificuldades e de se superar a si próprio, expondo toda uma filosofia de vida.
Dali fomos para o jantar, num restaurante situado numa das grandes avenidas de Pequim. O jantar foi constituído por, entre outras coisas, porque a comida chinesa consta de uma variedade de pratos, como é sabido, pato à pequinense. Munidos de branquíssimos e brunidos aventais e armados de facas afiadíssimas, lá estavam dois empregados cortando aplicadamente as aves já cozinhadas em pequenas lascas, como é de uso na comida chinesa, por causa da não utilização da faca e do garfo. Faziam-no de forma extremamente metódica e expondo-se ostensivamente à curiosidade dos turistas, que, como é de prever, disparavam as suas máquinas fotográficas e telemóveis com grande voracidade gastronómica.
O mais curioso é este facto que nos foi contado pelo guia e que causa consternação: os patos, enquanto vivos, são submetidos a uma alimentação especial para crescerem rapidamente e para perderem a gordura que vão acumulando, são metidos em capoeiras alongadas com o chão forrado de tijolos aquecidos por meio de um qualquer sistema térmico, de forma a obrigarem os pobres animais a moverem-se constantemente de um lado para o outro. Cruel, não? E de sinistra imaginação glutona.




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