28 novembro 2005

 

Os ataques ao sindicalismo

Ainda bem que o Maia Costa aborda este assunto.
Estava convencido que vinha trilhando um caminho solitário nas minhas crónicas no Jornal de Notícias.
Eis a minha crónica do passado dia 17 de Novembro, se mo permitem:


As neo-ideologias




Há tempos, li num semanário um artigo de um economista (Daniel Amaral) que alvitrava que os salários têm de baixar, se quisermos que a economia ganhe competividade, pois são eles os grandes responsáveis pelo encarecimento dos produtos, ou dito de outro modo, o factor que representa a parte de leão do seu valor. Isto que dizia este economista é o que dizem, afinal, quase todos os economistas, reciclados no neo-liberalismo, e entre os quais parece reinar o mais terrífico consenso, que não abre janelas para nenhum alternativa. A solução parece ser a de trilhar irremediavelmente o caminho da inversão dos valores e dos direitos sociais e económicos em nome dos quais se travaram tantas lutas e se foi moldando o sonho de uma sociedade mais justa. Os sindicatos, agora encarados sem pudor nenhum como «forças de bloqueio», velharias recambiadas para o museu da História, encarniçam-se nos protestos do costume, na agitação de rua que toda a gente já conhece, greves e coisas que tais? Isso é a ganga ideológica que subsiste, ou seja, coisa nenhuma. O que é a ideologia – parecem dizer -, senão uma relíquia do velho mundo, ópio para endrominar incautos ou crentes sem os pés na terra? De que lhes vale a crença e que utilidade tem ela? Os investidores, concluía o economista acima referido, «estão-se nas tintas para a ideologia». «As ideologias foram arquivadas», sentenciou de forma pitoresca um dos nossos mais emblemáticos empresários – Belmiro de Azevedo. Os direitos sociais, económicos e culturais, os «famosos direitos adquiridos», são, então, ideologia arquivada e arrumada nas prateleiras poeirentas da História? E o que é a ideologia?, pergunto. A opção pela «economia de mercado» é uma fatalidade e não uma escolha ideológica? O «arquivamento das ideologias» ou o «estar-se nas tintas para a ideologia» não são outras ideologias?

 

Programa Nacional de Acção para o Crescimento e o Emprego 2005-2008

(DR I-B de 28/11/2005)

Que a modernidade e as reformas a implementar passem do papel à prática!
É que somos pioneiros em ideias, em planos, em estratégias…
A nossa legislação vai acompanhando os ventos da mudança.
Sempre na crista da onda…
Mas a realidade é outra … como vemos e revivemos dia a dia.

 

Fogueira de descontentamento

A propósito de «manipulações», posted by Artur Costa, apetece-me dizer…

As questões são lançadas para o público e abordadas para agradar a determinados interesses: a ideia geral é criticar para destruir e não para construir. Transparece a desintegração.
Os 4º e 5º poderes, que estão na rua, alimentam a fogueira do descontentamento, muitas vezes incentivam este desassossego, embora sob a capa do exercício de determinadas liberdades...
Será que vamos continuar a ouvir falar dos diversos temas sem novas abordagens, sem profundidade, com aquela mistura habitual entre a falta de humildade, a ignorância, a hipocrisia e a falta de isenção?
Não será já tempo de pensar em alternativas? Teremos ainda de mergulhar mais fundo? Será a atracção pelo abismo? Onde está a coragem de repor a verdade?

 

A nova estratégia para as drogas

Anunciada foi na 6ª-feira a nova estratégia em matéria de drogas. Aqui fica uma primeira análise crítica, com base apenas nas notícias dos jornais, retomando aliás as ideias que expus no mesmo congresso do IDT onde a nova estratégia viria a ser apresentada.
De realçar, desde logo, a fidelidade em relação à Estratégia de 1999 quanto à descriminalização do consumo e quanto às políticas de redução de danos. Registam-se as afirmações firmes de João Goulão sobre a necessidade das "salas de injecção assistida". Vamos ver se é desta que se vencem os preconceitos.
É também correcto rever-se a Lei nº 30/2000, a tal que descriminalizou o consumo, e cujo nº 2 do art. 2º conseguiu a notável proeza de permitir quatro (!!!) interpretações jurisprudenciais, não só para resolver esse problema, mas também para, com base na experiência destes anos, conferir maior eficácia às CDT's.
Mas o grande problena não está aí, nos consumidores, nos que são identificados como tal. A minha opinião é muito clara: os consumidores ocasionais não são propriamente um problema. Quanto a estes o que há a fazer é da ordem da prevenção/informação, e nunca da repressão.
E quanto aos toxicodependentes o que é preciso é seduzi-los para a sua integração no sistema de saúde, propor-lhes medidas credíveis e eficazes de redução de danos e apresentar-lhes propostas sérias de reinserção social. Será possível isso através das CDT's? Tenho as maiores dúvidas, porque estas são, quer se queira quer não, um aparelho formal repressivo, embora de natureza específica. E repressão e sedução não rimam (só foneticamente).
Os grandes problemas do regime legal das drogas, a meu ver, são: os consumidores que a lei leva a classificar como traficantes; e o estatuto legal do traficante-consumidor.
A cegueira da lei é tanta, com o seu conceito expansivo de traficante, que leva à inclusão nesse conceito das cedências altruístas, do consumo partilhado, da aquisição em conjunto para o próprio e para terceiros e até da administração de drogas para tirar a dor (lembram-se da enfermeira/abortadeira/traficante da Maia?). O conceito legal de tráfico leva à sistemática confusão entre situações de pequena ou ínfima gravidade com situações de elevada ilicitude. Por outro lado, os requisitos do crime de traficante-consumidor são tão exigentes que a maioria das situações reais são excluídas pelo legislador.
Torna-se, pois, necessário:
1. Reduzir o conceito de tráfico, introduzindo o requisito de intenção lucrativa, retomando assim o conceito do DL nº 420/70.
2. Reduzir, em qualquer caso, a moldura penal do tráfico, ou, pelo menos, o seu limite mínimo.
3. Clarificar os elementos típicos do tráfico de menor gravidade, para o tornar mais abrangente.
4. Reduzir/eliminar/clarificar muitas das qualificativas do tráfico agravado.
5. Ampliar o conceito de traficante-consumidor, de forma que abranja realmente os traficantes-consumidores, ou seja: acabar com o requisito da exclusividade da afectação do "lucro" ao consumo e acabar também com os limites quantitativos, uma vez que a situação de tráfico para consumo se caracteriza necessariamente por um tráfico de pequenas quantidades.
A ideia fundamental, para mim, é esta: reduzir a intervenção penal; ampliar a intervenção sanitária.
É preciso substrair ao sistema penal e penitenciário aquela massa imensa de toxicodependentes que precisam de tratamento (em sentido lato) e não de reclusão/rejeição/exclusão.
É preciso pôr termo ao açambarcamento do sistema policial/judicial/penitenciário pelas drogas. Os recursos, sendo escassos, como não cessam de nos repetir, têm de ser rateados. Há outras áreas a requerer atenção, como a corrupção, não é verdade?
Termino lembrando que muitas das medidas que aqui exponho já foram defendidas no Relatório da Comissão de Estudo e Debate da Reforma do Sistema Prisional, presidida por Freitas do Amaral, e por Faria Costa na Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 3930, pp. 275-280. Acresce que a necessidade de redefinição da figura do traficante-consumidor e a eventual revisão dos elementos do crime de tráfico já estavam na Estratégia de 1999!
A nova estratégia pode ignorar tudo isto?

27 novembro 2005

 

O sindicalismo em desgraça

Decididamente o sindicalismo perdeu os favores das elites pensantes, mesmo (e talvez sobretudo) da área da esquerda governamental.
Para os ditos pensantes os sindicatos são forças conservadoras e por vezes mesmo reaccionárias, ao contestarem as medidas do actual executivo. Os sindicatos lembram o sec. XIX, o suor operário, um reivindicativismo primário e cego que sobrepõe os interesses dos sindicalizados aos da Nação.
Os sindicatos deveriam ser "responsáveis", ou seja, solidarizar-se com o governo, com as suas sábias, inovadoras e corajosas medidas e até agradecer a Deus sermos conduzidos por governantes de tão elevado calibre. Um bom sindicato, hoje, é aquele que fecha os olhos e os ouvidos aos interesses e problemas dos seus associados e só pensa no "bem geral" (tal como é pensado por quem governa, que é quem sabe).
É este, acreditem, o confrangedor discurso de certos cronistas, que descem mesmo a um patético registo laudatório, exaltando, sem rodeios, a «coragem e determinação de José Sócrates», o grande timoneiro!
Três décadas depois da sua libertação do corporativismo fascista, os sindicatos sofrem agora outro tipo de investida, mais subtil, mas não menos insidiosa.

 

O governo e nós

Enquanto os magistrados não saírem do círculo vicioso das férias e do subsistema de saúde a que tinham direito, estão irremediavelmente prisioneiros da lógica e da estratégia do governo. Tanto mais incapazes se mostram de assumir um espírito de verdadeira independência, que passa também pela idoneidade para criar uma autonomia crítica. Logo a seguir às suas diatribes, o governo entra em cena e repete até à exaustão o seu brilharete perante uma opinião pública já irreversivelmente conquistada pelos argumentos (demagógicos, é certo, mas atingindo em cheio o alvo visado) do Executivo. Assim, os magistrados estão a dar pretextos ao governo para lhes dar mais umas arrochadas e à opinião pública para os considerar como detentores de privilégios injustificáveis.
As férias judiciais foram encurtadas? Só há que tirar daí as devidas consequências pessoais, familiares e profissionais. É preciso reformular o trabalho em novos moldes, criando uma outra cultura judiciária e uma nova mentalidade, em que a profissão (dantes dizia-se que era «um sacerdócio») seja encarada com toda a seriedade e dignidade, mas sem «vampirizar» tudo o resto. Há mais vida para além dos processos. A alienação, no sentido kafkiano, resulta precisamente de se ver tudo através dos processos: «Estava tudo tão claro e estudado, que era como se todas as pessoas em seu redor se metessem num assunto que só a ele dizia respeito», escreve o escritor checo no «Fragmento do «Delegado do Procurador da República».
Quanto ao subsistema de saúde, está bem que se lute por direitos e interesses nessa área, mas sem fazer disso o busílis das preocupações profissionais.
O que sinto como mais intolerável em tudo o que se tem passado é a maneira fácil, demagógica e leviana como o governo levou tudo para o campo dos «privilégios» e pôs o acento tónico dos fracassos do sistema numa culpa presumida ou explícita dos magistrados. Com isso contribuiu para um aprofundamento da degradação da imagem da justiça e dos seus profissionais, do mesmo passo que enfraqueceu um dos pilares do Estado de direito democrático. Aí sinto-me atingido como profissional e como cidadão. Foi isso que permitiu uma escalada de ataque às magistraturas, que, em muitos casos, se assemelha a um linchamento. Hoje, entra-se em certos tribunais e vêem-se, nos elevadores, coisas escritas como esta: «Os juízes são corruptos e manguelas». Isso só foi possível pela «deriva» (passe o palavrão) que o governo propiciou com a sua falta de jeito ou mesmo com a sua calculada actuação.
Aí, sim, há uma dignidade ultrajada e «quem não se sente, não é filho de boa gente», lá diz o ditado. Mas institucionalmente é preciso encontrar os caminhos adequados a uma resposta que não fique prisioneira da lógica do governo e que, ao mesmo tempo, ateste a nossa maturidade cívica e a excelência das funções que exercemos não em nosso nome, mas dos mesmos cidadãos que nos olham porventura negativamente e porventura sem razão esclarecida. Se outros não sabem respeitar essas funções, respeitemo-las nós.

 

Quem manipula o quê?

Quem manipula afinal o quê?




O meu amigo Manuel António Pina, que foi aqui evocado pelo João Paulo, escreveu há já uns dias uma crónica no Jornal de Notícias, em que abordava a questão recorrente das relações entre a comunicação social e a justiça e concluía que afinal não era só a justiça que estava em crise, mas também a comunicação social. Isto, a propósito do acórdão da Relação de Lisboa sobre o caso do arguido Paulo Pedroso e outros arguidos. Tendo lido o acórdão – porque o leu efectivamente – Manuel António Pina comparava a «manipulação grosseira» que o aresto imputaria ao Ministério Público ao célebre e burlesco arrastão de Cascais e dirigiu o seu apontamento crítico ao acórdão num outro sentido, formulado muito inteligentemente e sob forma interrogativa.
Ora, o que neste momento me interessa é a exploração sensacionalista e frequentemente deturpada que a comunicação social faz de certas decisões judiciais, seja porque está interessada num determinado ponto de vista (o tal jornalismo de causas, mas de más causas), seja porque pretende simplesmente criar impacto ou colher o cidadão de surpresa (o princípio do «soco no estômago», segundo um jornalista meu amigo, mas às vezes é muito mais do que um «soco no estômago), seja ainda porque a pressa é tanta, que não há tempo para parar um bocado e olhar, um momento, a paisagem. Já se viu um jornalista sobraçando cento e muitas páginas de acórdão a correr para a Lusa e a ter que ler essas cento e muita páginas? Não. Apanha em andamento umas linhas aqui e outras acolá e se calhar de topar algo que faça sangue ou que lhe pareça tal, tanto mais ele corre para a Lusa, a fim de chegar a tempo do telejornal da noite e pôr aquele sangue que entreviu a servir de aperitivo ao jantar dos telespectadores.
Assim é que se difundiu pela comunicação social que o célebre acórdão da Relação de Lisboa «arrasava o Ministério Público». Mas muito mais do que isso, já que o tema do arrasamento do Ministério Público tem servido de mote a diversos comentários da imprensa sobre decisões judiciais que apreciam a intervenção processual daquela magistratura: acusava o Ministério Público de «manipulação grosseira». Haveria, assim, «um salto qualitativo» na escalada do confronto entre as duas magistraturas: do arrasamento, que remete para um cenário bélico, em que, apesar de tudo, a demolição se passa ao nível da argumentação que se joga de um lado e do outro, passa-se para uma violação das regras do «jogo», uma verdadeira fraude praticada por um dos sujeitos processuais que tem a especial incumbência de fazer «jogo limpo», um aniquilamento da ética a todos os níveis – da ética deontológica e da ética do Estado de direito democrático, que tem na sua base o respeito supremo pelos direitos fundamentais do cidadão. Isto, a ser verdade, seria pura e simplesmente o fim. Talvez por isso mesmo é que houve logo uma série de profissionais da imprensa a adiantar as conclusões apocalípticas. Seria impossível ir mais longe na irresponsabilidade.
O mais grave é que desta forma se criam factos, ou seja, cria-se a própria realidade a partir da qual ninguém mais discute senão o facto criado pela comunicação social, sem se importar com o facto – esse, sim, real – que está pressupostamente na base da «informação». Quando o próprio Vital Moreira apadrinhou no seu blog a tese da «manipulação» (é certo que, logo que um juiz veio desmentir essa tese, apagou-a do ciberespaço e substituiu-a sorrateiramente por uma versão corrigida), que se há-de dizer do cidadão comum?
Mas, feitos os desmentidos pelos juízes desembargadores, algum jornalista ou órgão da comunicação social veio penitenciar-se?

Artur Costa

25 novembro 2005

 

O Senhor Kraus e os números exactos

A propósito dos que na televisão nos esmagam com os números deixo aqui uma citação do último livro (O Senhor Kraus) desse notável escritor que é Gonçalo M. Tavares (é um livro a não perder):

Sobre a insistência em avançar com números por parte dos políticos (ou: sobre a importância dos cordões dos sapatos) o senhor Kraus disse o seguinnte:
Todo o número exacto atirado aos olhos da população insegura e distraída produz cegueira.
Quando nos atiram um número directamente à cara, devemos fingir-nos distraídos, imitar certos actores cómicos do cinema mudo, e aproveitar esse exacto instante para apertar os cordões dos sapatos.
Quando, por fim, voltarmos a endireitar o tronco e a levantar a cabeça, o número já passou, a grande velocidade, e por isso já não nos afectará a visão - continuou o senhor Kraus.
Se esperarmos um pouco, ainda ouviremos o número a partir-se contra uma parede em vários fragmentos disformes.
Com a visão intacta poderemos então assistir ao lamentável espectácuolo das ruínas incoerentes, daquilo que parecia, ainda há instantes, ser um número exacto, convincente e decisivo.

 

A iniciativa privada nas prisões

Eduardo Catroga pertence àquele núcleo (mais) duro dos economistas iluminados, aqueles que desde há 30 anos ou perto disso circulam entre o Banco de Portugal, a CGD, o governo, os bancos privados ou seguradoras, num giro incessante e rotativo em que alternam posições para retomarem depois as anteriores, umas vezes governando o País, outras vezes apenas o aconselhando, mas sempre iluminando-o com o brilho das suas ideias e propostas para salvação da Pátria (infelizmente cada vez pior: será por ouvi-los de menos ou de mais?).
Ontem lá recitou ele toda a cartilha dominante: redução do Estado (na economia, claro está!), contenção da despesa pública, estímulo à iniciativa privada, competitividade, produtividade, redução de impostos...
Dentre o rol sobressaiu a ideia de "outsourcing" (como adoram eles estas palavras mágicas em inglês que conferem um carácter irrefutável às suas propostas!): o Estado deveria recorrer ao tal "outsourcing" em diversos serviços públicos, como por exemplo... as prisões.
A gula da iniciativa privada em relação ao sistema prisional é evidente. A experiência dos EUA mostra que é um "ramo" altamente lucrativo. E em Portugal, com a elevadíssima taxa de reclusão que temos, as expectativas não seriam más...
Nem poderiam, uma vez implantado o sistema, ser defraudadas! As prisões deveriam ser colocadas ao serviço da economia: acabar de vez com a demagogia da ressocialização, com as penas alternativas e outras ideias requentadas dos anos 60, completamente desajustadas à sociedade de risco de hoje! Enchendo as prisões, construindo novos edifícios para esse fim, tudo sob a sábia gestão da iniciativa privada, estimular-se-ia a economia, aumentar-se-ia o emprego, o Estado cobraria mais impostos!
É claro que o Estado teria de pagar o dito "outsourcing". E ainda de pagar os custos financeiros (sustentar o funcionamento do aparelho repressivo e do aparelho judicial) e sobretudo os custos sociais (exclusão social dos reclusos e famílias durante e sobretudo depois do cumprimento das penas). E a sociedade pagaria elevados custos em termos de direitos, liberdades e garantias.
Mas só os maldosos, os derrotistas, os que não sabem fazer contas é que se lembram disso...

 

Lapso manifesto

Ocorreu um lapso manifesto de que sou responsável: o texto da Nota de Abertura que "inaugurou" este blogue não passa de um esboço do texto que a final foi aprovado e subscrito pelos seus membros. Detectado o "erro material", procedo nesta data e sem mais formalidades à eliminação do texto publicado no dia 9 deste mês e à sua substituição pela "texto autêntico".
E ainda uma explicação: o grupo "fundador" do Sine Die integra apenas magistrados; mas, como se diz na dita Nota, não é um grupo fechado. Pretendemos alargá-lo a outros sectores profissionais, como advogados, professores e outros juristas (e, com o tempo, não só juristas), para que um diálogo mais intenso e mais alargado seja possível.
O tempo (esse "escultor") dirá se o conseguiremos.

24 novembro 2005

 

Antigo Regime e Revolução - avocações


Não sei porquê, hoje achei que talvez não fosse despropositado partilhar um exemplo apresentado por Alexis Tocqueville a propósito da necessidade sentida de responder a problemas gerados pela inamovibilidade de certos agentes do Estado, e do facto de o executivo depressa se ter socorrido do mecanismo de avocação para comissários especiais dos processos em que algum interesse público era posto em causa, «avocações que não aconteciam apenas de longe em longe mas todos os dias»:
«numa outra circunstância, o próprio intendente envia ao inspector-geral, a propósito de um empreiteiro do Estado que havia tirado do campo do vizinho os materiais de que se servira: ‘não posso demonstrar-vos de forma suficientemente clara quão prejudicial seria aos interesses da administração abandonar estes empreiteiros ao julgamento dos tribunais ordinários, cujos princípios não podem jamais conciliar-se com os seus’» (Alexis Tocqueville: 1856).
É reconfortante constatar como certas coisas mud(ar)am...

21 novembro 2005

 

Saudação

Saúdo vivamente a adesão (mesmo não tendo sido convidado) de Swift ao nosso blogue. É uma mais-valia incontestável. Tanto mais que Swift regressa ao seu melhor nível, tanto no vigor estilístico, como na originalidade e no rigor das suas propostas (que ele muito modestamente apelida de "modestas"), que ficam à atenção do País e dos nossos governantes, que oxalá tenham tempo (e suficiente modéstia) para as analisar.
Desejo, e creio que todos desejamos, uma longa vida e muita saúde ao novo membro do Sine Die.

 

Agradecimento

Um especial agradecimento à notícia do surgimento deste espaço e aos votos formulados, em particular pelos seguintes companheiros da blogosfera: Justiça Restaurativa; Grande Loja do Queijo Limiano; Cum Grano Salis; Incursões; Informática do Direito; O Meu Monte; Patologia Social; Vexata Quaestio; disLEXias.

PS- Se outros houve que aqui não foram referidos tal deve-se, exclusivamente, a falha do postador na sua referenciação (e para o reparo de tal omissão toda ajuda será bem vinda).

(Actualizado)

 

Para um tsunami de propostas para a reforma penal…

Considerando que o legislador nos habituou a cultivar uma visão humanista do direito penal, cremos que deve ser ampliado o catálogo das penas acessórias previstas no Código Penal.
É que, algumas dessas penas acessórias, estando dispersas pelo Código (como sucede, nomeadamente, com os artigos 152 nº 6 e 179), revelam uma certa visão redutora, quase discriminatória em relação a outros tipos legais.
Conhecidas as finalidades das penas acessórias, bem como critérios que as podem justificar, não seria de “amplificar” a possibilidade da sua aplicação (pela sua acrescida função preventiva e pela censura especial ao agente), nomeadamente aos crimes contra as pessoas?
Porque não acrescentar, ao elenco das actuais penas acessórias, as seguintes:
Artigo 70 (proibição de contactos)
1- Quem for condenado por crime contra as pessoas pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a personalidade do agente ou particular relação que o ligue à vítima, ser proibido de a contactar, por um período de 2 a 5 anos.
2- A proibição de contactar a vítima inclui o afastamento da sua residência ou do seu local de trabalho.
3- Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado de liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

Artigo 71 (afastamento de locais públicos e inibição do exercício de direitos)
1- Quem for condenado por crime contra as pessoas ou crime contra a propriedade, em casos em que sejam vítimas crianças, pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a personalidade do agente ou particular relação que o ligue à vítima, ser obrigado a afastar-se de lugares públicos que sejam frequentados por crianças, por período entre 2 e 10 anos.
2- Quem for condenado por crime contra as pessoas pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a personalidade do agente, ser inibido do poder paternal, da tutela e curatela por período entre 2 e 5 anos.
3- Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado de liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

Artigo 72 (proibição do exercício de actividade)
1- Quem for condenado por crime contra as pessoas pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a personalidade do agente, ser proibido de exercer uma actividade (profissional ou não), que lhe permita entrar em contacto com vítimas particularmente indefesas, por período entre 2 e 5 anos.
2- Considera-se vítima particularmente indefesa quem se encontrar em situação de especial vulnerabilidade, nomeadamente, em razão da idade, deficiência, doença ou gravidez.
3- Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado de liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.

Estas medidas, aliás, nem são inovadoras: basta consultar alguma legislação europeia sobre esta matéria!

19 novembro 2005

 

Novo quadro para a política criminal (2) - O contexto constitucional


A circunstância de sob a anunciada Lei Quadro da Política Criminal se perspectivarem apenas alterações na lei ordinária e na criação de novos instrumentos normativos infra-legais, obriga a que seja importante recordar o quadro constitucional como o contexto sobre o qual tem de operar a discussão.
Desde logo o invocado art. 219.º, nº 1, da Constituição na redacção introduzida há 8 anos e que agora se «pretende desenvolver», ou seja a previsão de que (também) compete ao Ministério Público participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, o que constitui uma solução de compromisso com dois vectores:
- Por um lado, a afirmação inequívoca de um postulado dirigido ao judiciário: A actuação da justiça, exercida por burocracias profissionais, não pode ganhar prevalência na articulação com os poderes democráticos e a circunstância de nalguns casos os órgãos judiciários realizarem as intenções político-criminais do sistema legal, por exemplo em sede de soluções de diversão e de sanções penais, não ilide antes reforça o postulado da sua subordinação ao programa político definido pelos órgãos de soberania politicamente conformadores e democraticamente legitimados, em particular a Assembleia da República através das suas leis;
- Por outro, uma restrição ao perigo de politização da justiça penal, com a expressa salvaguarda do princípio da reserva judiciária no foro penal, pelo que a participação do Ministério Público na execução da política criminal tem de se operar nos termos da lei e está vinculada, de forma expressa, ao respeito de dois princípios constitucionais, (a) a autonomia do Ministério Público e (b) o exercício da acção penal orientado pela legalidade.

A opção programática da Constituição em matéria de justiça penal tem uma implicação política ao estabelecer um complexo contexto operativo com diferentes órgãos constitucionais competentes e interdependentes o que gera exigências de escrutínio que, manifestamente, não têm sido satisfeitas. Défice de accountability, que, sublinhe-se, abrange não só o desempenho dos Tribunais, do Ministério Público e dos Conselhos Superiores (estes enquanto órgãos administrativos autónomos responsáveis pela gestão das magistraturas), mas também das instâncias de definição de política criminal, cuja legislação nunca tem sido sujeita a avaliação (nem autónoma, nem própria), e em particular do Governo (que além de participar na definição da política criminal, a executa através da política de segurança, órgão executivo responsável pela dotação de meios do judiciário e de quem dependem orgânica e disciplinarmente os órgãos de polícia criminal).
A efectivação de um sistema de prestação de contas de todas estas entidades que obste à diluição de responsabilidades e permita a fundada afinação do sistema é o que mais se impõe discutir. No fundo, superação de um estado de global e generalizada irresponsabilidade...

No plano jurídico, o aspecto mais controverso sobre os potenciais corolários jurídico-práticos da previsão expressa de que o MP participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania centra-se na reserva de lei. Há quem entenda que a referência aos termos da lei implique que os comandos normativos para o Ministério Público terão sempre de se operar na forma de lei. Em contraponto, pode preconizar-se que a Constituição a partir de 97 admite que a lei possa também constituir uma fonte mediata de outras orientações genéricas (guidelines) dirigidas ao Ministério Público por órgãos politicamente conformadores, em particular a Assembleia da República (que goza de reserva de competência nas áreas centrais de definição da política criminal).

A Lei Quadro parte desta segunda perspectiva, mas mesmo para quem considere que esse é um espaço de intervenção constitucionalmente autorizado (como é o caso deste postador), não pode deixar de reconhecer que a lei de enquadramento envolve um terreno complexo nos planos político e jurídico, pois mesmo nos casos de «reenvio dinâmico» (da Constituição para a lei ordinária) a vinculação do legislador tem de se aferir à luz de uma interpretação em conformidade constitucional (em particular no que respeita à política criminal de respeito do quadro de repartição funcional e de interdependência de órgãos do Estado).

18 novembro 2005

 

Modesta proposta

Modesta proposta

ou de como obter a máxima produtividade penal, evitar o agravamento do Orçamento e melhorar, de uma forma geral, a imagem da justiça neste reino.



Se a eficácia do sistema repressivo penal se mede, à partida, pelo número de participações que dão origem a acusação e depois pelo número de acusações que dão origem a condenações, a minha modesta proposta para a solução radical do problema, se mo permitem Vossas Excelências, é muito simplesmente a seguinte: acuse-se e condene-se a eito para alimentar as estatísticas e dar a medida óptima da eficácia do sistema.
Os magistrados do Ministério Público e os magistrados judiciais poderão, finalmente, dar –se as mãos, na solidariedade por uma grande causa comum. Uns produzirão acusações e outros, condenações, na óptica da máxima rentabilidade repressiva e segundo o princípio da máxima produtividade penal.
Com isso obter-se-á um outro objectivo nada despiciendo: concertando as suas posições na mira desse desígnio nacional e patriótico, as duas magistraturas transmitirão a ideia de uma unidade sólida do sistema judiciário português e evitarão desfasamentos entre a Acusação e o julgamento, que tantas especulações provocam e tantos prejuízos acarretam para a imagem da própria justiça. E mais: cortar-se-á pela raiz uma perversa tendência que vai grassando: a de se colocar no banco dos réus a entidade que persegue criminalmente os crimes e procede à acusação, bem como testemunhas e outros figurantes processuais, com fundamento em as acusações se não provarem em julgamento e assim, segundo alegam, se pôr a nu o maquiavelismo da investigação e da acusação.
Os benefícios para o Estado, em hora tão crítica, também são evidentes, na medida em que se evitarão sobrecargas do Orçamento, derivadas de, uma vez fracassadas as acusações, os arguidos (sobretudo aqueles que têm - como direi? – maior sensibilidade social e pessoal) se sentirem alentados a propor acções de indemnização pelos danos alegadamente causados à sua honra e à sua carreira profissional com o processo-crime que alegadamente lhes foi movido com perversa intenção.
Creiam Vossas Excelências no recto propósito que me move, o qual vem a ser apenas, como disse, o de muito modestamente contribuir para a boa solução dos ingentes problemas que muito afligem o nosso Reino.

(Jonatham Swift 1665 – 1745)

17 novembro 2005

 

Novo quadro para a política criminal (1) - Entre o que se pretende alterar e o que se impõe discutir


A conclusão do anteprojecto da proposta de Lei Quadro da Política Criminal foi a semana passada anunciada na generalidade dos órgãos de comunicação social, embora o respectivo conteúdo não conste ainda no sítio do Ministério da Justiça (apesar de divulgado sem qualquer solicitação de sigilo a um cada vez mais alargado universo de privilegiados). Este constitui manifestamente um tema cuja análise não pode ser reservada aos corredores de instâncias burocráticas (velhas ou novas) ou às páginas de circunspectas e reservadas revistas jurídicas, em especial quando a experiência recente em sede de política criminal tem sido o de rápida aprovação de novos quadros legais (cuja eficácia, além do mais, não tem sido a posteriori avaliada para efeito das decantadas responsabilidades políticas: de definição e de execução da lei).
O objectivo da proposta de lei em avançado estado de concepção, é revelado no programa de governo sob a epígrafe «Tornar mais eficaz o combate ao crime e a justiça penal, respeitando as garantias de defesa» pois aí anuncia-se que: «No plano da política criminal, a Assembleia da República, sob iniciativa do Governo, passará a prever periodicamente, de forma geral e abstracta, as prioridades da política de investigação criminal, bem como as responsabilidades de execução dessa política, nomeadamente no que respeita ao Ministério Público, com base num novo quadro legislativo específico de desenvolvimento do artigo 219.º da Constituição».
À primeira vista parece que a opção programática do Governo em sede de «política criminal» passa pela definição de um novo quadro procedimental de alargamento: a) do espectro da acção governamental (e não do Parlamento que, por força da Constituição, tem a competência decisória mas que novo modelo passaria a estar dependente da iniciativa governamental), enquanto entidade com exclusividade para a iniciativa de definição infra-legal e legal da política criminal, e b) de responsabilidade do Ministério Público pelo cumprimento do que lhe é definido (embora essa centralidade de responsabilidade na execução da política criminal não pareça compreender um alargamento de competências).
De qualquer modo, no actual momento e acima de tudo, sejam quais forem os desígnios imediatos e o efectivo desenvolvimento do processo em curso, este anúncio constitui uma interpelação incontornável para se discutir a política criminal, em particular os actores estaduais e a repartição de funções e responsabilidades (quer na definição legal e infra-legal quer na execução).
Discussão que deve ser independente dos horizontes colocados na mesa pela iniciativa governamental, abrangendo de uma forma global o quadro de definição e execução de política criminal e os respectivos responsáveis, que no nosso contexto constitucional são a Assembleia da República, o Governo, os Tribunais e o Ministério Público. A clarificação das suas funções e meios constitui ainda uma oportunidade para se tentar efectivar o respectivo escrutínio, algo que tem sido dificultado pela muita poeira que frequentemente se levanta, nomeadamente na leitura do modelo constitucional.

16 novembro 2005

 

Ainda a despenalização da IVG

Confesso que ainda não me conformei com o adiamento "sine die", ou "ad eternum" da despenalização da IVG. Aqui fica o meu protesto, sob a forma do artigo que enviei para o Público em 27 de Outubro último e que ficou por publicar.


O aborto e as promessas eleitorais



Perante a decisão do Tribunal Constitucional que inviabiliza o referendo à modificação da lei sobre interrupção voluntária de gravidez, muitas vozes se fazem ouvir lembrando a necessidade de o PS “cumprir a promessa eleitoral”, aproveitando-se aliás do que o Primeiro-Ministro insistentemente repetira aquando do “chumbo” do referendo pelo Presidente da República sobre o “contrato” celebrado com o eleitorado quanto à realização do referendo.
Ora, há que esclarecer o seguinte: o PS não podia pura e simplesmente fazer qualquer contrato desse tipo, porque não estava nem está nas suas mãos (isto é, nas mãos do Governo ou da Assembleia da República) a convocação do referendo, matéria que é da competência exclusiva do Presidente da República, não falando da necessária intervenção do Tribunal Constitucional para “validar” a pergunta e o processo referendário.
Portanto, ao fazer a promessa eleitoral de que “convocaria” um referendo para alterar a legislação da interrupção voluntária de gravidez, o PS prometeu mais do que podia, devendo entender-se que o PS estava apenas obrigado a fazer, enquanto Governo e maioria parlamentar, o que lhe era possível: aprovar uma proposta de referendo e apresentá-la ao Presidente da República.
E foi isso que o PS fez. E até fez um pouco mais: face à recusa inicial do Presidente da República, renovou a iniciativa referendária, depois de aprovar as alterações legislativas necessárias para que fosse possível o referendo até ao final deste ano.
Mas o “chumbo” (aliás juridicamente fundamentado) do referendo pelo Tribunal Constitucional inviabiliza a realização do referendo até ao fim da presente sessão legislativa, ou seja, até Setembro de 2006. Desobrigado se deve sentir portanto o PS da sua “promessa”. Melhor: deve considerar cumprida tal promessa!
Resta portanto o fundo da questão: a da necessidade de, independentemente do procedimento, se resolver o problema do aborto clandestino, necessidade reconhecida pelo PS também no seu programa eleitoral, que pela primeira vez assumiu uma posição oficial inequívoca nesta matéria.
Assim, para ser fiel a esse programa e às suas promessas, o que o PS tem a fazer é, perante a inviabilização (pelo menos por um ano, e quem sabe por quantos mais!) da via referendária, escolher a via parlamentar para concluir o processo legislativo sobre as alterações à interrupção voluntária de gravidez.
Toda a legitimidade constitucional tem a Assembleia da República para o fazer. E também legitimidade política reforçada, uma vez que o eleitorado em Fevereiro deste ano votou com larga maioria nos partidos que inscreveram expressamente essa proposta legislativa nos seus programas eleitorais.
Assumam, pois, as suas responsabilidades perante o eleitorado.

 

O regresso do feudalismo

Na orquestrada e bem afinada campanha contra os “privilegiados” do regime (ou seja, os funcionários públicos em geral e os “corpos especiais” em especial, ou não fossem eles especiais) que nos últimos meses tem campeado pela comunicação social, avulta o conceito de “feudalismo de Estado” desenvolvido por Vital Moreira para caracterizar a existência dos tais corpos especiais, magistrados, militares e professores, por exemplo.
Considera ele “pré-moderna” uma organização do Estrado onde certos corpos detêm estatutos profissionais específicos. O desaparecimento dos estatutos específicos e o “nivelamento” de tratamento jurídico de todos os funcionários seria assim uma “obra de equidade social”, de que o actual Governo já é credor.
Tão confrangedoramente frágil é esta argumentação que se estranha sinceramente que seja produzida pelo seu autor e só se compreenderá em tempos de “fervor socrático”, que pode não durar e oxalá não dure, porque perturba o discernimento.
Certamente que Vital Moreira não proporá o igualitarismo absoluto, o que seria a mais absoluta das demagogias (mas estamos em tempo delas…). O que ele quer é acabar com os “privilégios”. Mas o que são “privilégios”?
Privilégio haverá sempre que é atribuído um direito ou uma contrapartida que não é devida, que é excessiva relativamente aos deveres e às funções, riscos e responsabilidades do contemplado.
Ora, é precisamente essa ponderação que é preciso fazer.
Os casos dos militares e dos magistrados são paradigmáticos. Os desvios dos seus estatutos, no que toca a deveres, responsabilidades e restrições de direitos, são intensos, como se sabe e se julga que não é preciso enumerar, de modo que as contrapartidas têm de ser compensadoras (até para garantir um recrutamento por cima). Será isto difícil de compreender?
Aliás, desde os alvores do liberalismo, houve a consciência nítida de que um estatuto remuneratório justo dos juízes era condição indispensável e integrante da independência dos tribunais.
A diferenciação de estatutos não é feudalismo. À complexidade das situações responde-se com pluralidade de soluções e de respostas. Isso não é um feudalismo pré-moderno, mas sim uma lógica estritamente moderna ou aliás pós-moderna (para quem preferir).

 

A autoridade democrática do Estado

Desde há meses vimos assistindo diariamente à acção do rolo compressor do “pensamento único” centrado no défice das contas públicas. Vivemos uma época de ditadura do economicismo (ou do financismo), que se traduz na prioridade absoluta às contas, aos números, aos conceitos económico-financeiros. O direito, os direitos, mesmo os fundamentais, virão depois (quando, e se, houver dinheiro).
Em toda a comunicação social, de directores a comentadores, fixos e móveis, todos num coro monumental advertem/avisam/ameaçam apocalipticamente os leitores/ouvintes/espectadores de que chegou a altura dos sacrifícios, de que é tempo de comer e calar, de nos submetermos aos “superiores interesses da Nação”, tal como eles os entendem. Os novos sacerdotes do regime, os economistas, ungidos de títulos académicos impressionantes, acumulados deste lado e do outro lado do Atlântico, esmagam-nos com sabedoria e ameaças de pragas infindáveis se não obedecermos às suas profecias.
Percorre as elites em geral (da direita pura à esquerda governamental) um fervor autoritário, com salpicos nacionalistas (salvar Portugal enquanto é tempo) e messiânicos (é preciso alguém que encarne e assuma esse projecto de “ressurgimento”).
Defende-se abertamente uma modificação da matriz do regime no sentido presidencialista. É um novo sidonismo, um gaullismo à portuguesa. E o candidato até está à vista de toda a gente. Ele até já se prontificou para desenvolver uma “cooperação estratégica” com a AR e o Governo. Todos os poderes marchando unidos! E sem forças de bloqueio!
Também para a esquerda governamental a redução do défice se tornou um desígnio nacional. E desta forma se legitima, com o apoio, claro está, da maioria absoluta, uma política de redução drástica das despesas públicas (incluindo as despesas sociais). Agora o défice, mais tarde, quando (e se) for possível, as políticas sociais, o emprego, etc.
O sindicalismo tornou-se também suspeito, se não mesmo vituperado. Sindicalismo e corporativismo são aliás coincidentes, pois os sindicatos defendem interesses egoístas, e não o “interesse nacional”! É abertamente contestado o direito ao sindicalismo de certos extractos profissionais: os militares devem meter-se nos quartéis e obedecer aos chefes, os seus únicos representantes (à boa maneira prussiana!). Os magistrados também são abertamente visados: querem-se magistrados politicamente neutros, calados, acríticos, muito tementes aos poderes instituídos. Os funcionários públicos em geral estão sob fogo cerrado: em vez de estarem humildemente agradecidos por terem emprego vitalício, ainda protestam e querem manter “direitos especiais” (isto é, privilégios)!
“Acabar com os privilégios” é a palavra de ordem da “base social-mediática de apoio ao governo”. Fácil de vender, aliás, pois o populismo barato sempre vendeu (durante um certo tempo, depois esgota-se, mas às vezes demora a esgotar-se, e entretanto rende). Tira-se aos ricos para dar aos pobres! Só os privilegiados se podem queixar! Todos os que aparecerem a protestar, a manifestar-se, a fazer greves, são privilegiados e resistentes à mudança. Por que não dizê-lo? São os novos inimigos sociais!
E cuidado: não se esqueçam da autoridade (democrática, pois claro!) do Estado, que aí está para o que for preciso. O Governo não pode, não deve, ceder, conceder ou tergiversar. E não abusem de manifestações, se não… repensa-se o respectivo regime legal!

14 novembro 2005

 

Que futuro para os hospitais psiquiátricos?


Há dias, quando fazia a ronda pelos canais da tv, parei alguns minutos num mini debate onde se discutia a política de saúde mental e a vontade governativa de acabar com os hospitais psiquiátricos. E fiquei a pensar…
Como se conseguirá implementar uma política de desinstitucionalização, recorrendo ao chavão politicamente correcto da «necessidade de integrar os doentes mentais na comunidade»?
Podemos concordar que o tratamento e a compensação de doentes mentais, ainda que dependente de um internamento temporário, poderão ser levados a cabo nas restantes instituições hospitalares.
Mas, terão os nossos hospitais condições (resposta rápida) para receber tais doentes, sem irem para as famosas listas de espera?
E, nos casos dos internamentos temporários, como integrá-los com os restantes doentes?
Como gerir a falta de camas vagas e a pressa de «mandar os doentes para casa»?
Na Comunidade que alternativas viáveis e efectivas existem ou vão ser criadas? Qual a nova estratégia global a seguir?
Os seus custos e a necessária mobilização e sensibilização (sem o habitual amadorismo), serão mais vantajosos e mais profícuos do que os suportados com os hospitais psiquiátricos?
Não podemos esquecer que muitos desses doentes, não têm quaisquer condições, nem apoios no exterior, precisando de acompanhamento permanente para se manterem compensados.
Claro que é preciso investir e promover uma boa saúde mental, nomeadamente no domínio de uma política prioritária de saúde pública, elevando o bem-estar físico e mental.
Mas isso implica intervir coordenadamente em todas as áreas, designadamente (acompanhando as políticas comunitárias) na melhoria da qualidade de vida, na inclusão social e na participação activa na vida social e económica.
Mas, afinal, qual é a opção? Reestruturar os hospitais psiquiátricos ou acabar com eles?
O que se vê nas ruas (não vou falar agora nos bairros sociais, nem nos indigentes, nem na falta de postos de trabalho etc.), é que as fileiras dos sem abrigo têm aumentado e os arrumadores continuam no terreno…serão estilos de vida a preservar e a incrementar?

09 novembro 2005

 

Nota de Abertura


A decisão de criar este blogue parte da constatação de que o espaço público português está cada vez mais reduzido, mais condicionado, logo, mais pobre e menos democrático.
É um fenómeno mais ou menos universal, devido fundamentalmente à intervenção asfixiante do poder económico na comunicação social, condicionando de forma significativa o pluralismo de opiniões e a independência dos jornalistas.
A par disso, a agenda político-mediática reduziu-se, os intervenientes na discussão pública são um corpo reduzido de vozes (por vezes mesmo um coro), dialogando uns com os outros, umas vezes amenamente, outras acidamente, mas sempre como velhos amigos/inimigos que sabem que partilham o mesmo espaço privilegiado, negado à maioria, ao vulgo.
É uma autêntica asfixia da opinião pública o que se vem produzindo e agravando nos últimos meses em Portugal. As possibilidades de furar o bloqueio na comunicação social são cada vez mais limitadas.
Tudo isto é a negação do papel fiscalizador da imprensa e de toda a comunicação social, enquanto pilar da democracia.
É precisamente neste ponto que o aparecimento da “blogosfera” abriu uma possibilidade inédita de intervenção cidadã, sem condicionalismos económico-financeiros, o que permite contrariar a lógica prevalecente na comunicação social tradicional e vislumbrar uma democratização profunda da discussão pública e consequentemente uma intensificação do controlo democrático do poder político.
É esse o sentido e o propósito da criação deste blogue. A iniciativa parte de um grupo de juristas, magistrados judiciais e do ministério público. Mas as nossas afinidades não são corporativas, no sentido que ultimamente este palavrão adquiriu. O que nos aproxima são convergências de valores e princípios: o apreço pela defesa dos direitos humanos, pelo ideal da justiça social, pelo primado do direito, no plano interno, como no âmbito internacional.
Afinidades não significa obviamente unanimidade. Dentro desse quadro geral, a pluralidade de sensibilidades e de preocupações é inevitável e salutar. Os textos só responsabilizam o seu autor, não o grupo.
As pessoas que tomam a iniciativa de criar o blogue não têm favores a pagar nem os querem pedir. Sentem-se, pois, absolutamente livres, como cidadãos, de criticar ou aplaudir conforme entendam. O que as move é o imperativo que sentem de exercer o mais elementar dos direitos de cidadania - o de intervir na praça pública sobre os assuntos da polis.
Assumimos um compromisso de cidadania: falar com frontalidade, mas também com responsabilidade. Não haverá anonimato de opiniões, não haverá “má língua”, insinuações ou outras torpezas (o que não significa abdicar de recursos estilísticos eficazes como a ironia e mesmo o sarcasmo). Defenderemos e combateremos ideias, projectos e actos. Os seus autores serão apenas visados enquanto tais, não nas suas pessoas. Seremos implacáveis com todas as formas de demagogia e populismo, de mistificação e de mentira, que estão a tornar-se, sobretudo no plano internacional, mas também internamente, o modo normal e corrente de fazer política. Não procuraremos a polémica, mas não a evitaremos, quando útil para o debate franco de ideias. O nosso «livro de estilo» é o fundamento ético das nossas posições.
Esperamos assim encontrar um espaço próprio, constituir uma voz distinta, pelo rigor e credibilidade das nossas posições, no espaço da blogosfera.
Não queremos que o nosso blogue seja um espaço fechado, mas também não estamos disponíveis para intromissões que deturpem os nossos propósitos. Assim, aceitaremos e solicitaremos ocasionalmente colaboração. E acompanharemos a correspondência recebida e a ela responderemos com a prontidão possível.
O decurso do tempo e a experiência que se for adquirindo ditarão as correcções necessárias do percurso. Mas os nossos objectivos e intenções ficam enunciados.

Alberto Esteves Remédio
António Henriques Gaspar
António João Latas
Artur Rodrigues da Costa
Carlos Rodrigues de Almeida
Cristina Ribeiro
Eduardo Maia Costa
Guilherme da Fonseca
João Paulo Rodrigues
José Gonçalves da Costa
Mª do Carmo S. Dias
Paulo Dá Mesquita

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