17 abril 2019

 

A legiferação mediática




Os diplomas que postulavam o agravamento das penas para os crimes de violência doméstica baixaram à Comissão Constitucional a ver se os partidos se concertam quanto ao que querem manter ou alterar.
E a intenção de o Bloco de Esquerda pretender consagrar em diploma legislativo o recurso obrigatório para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que pretensamente violem direitos humanos, com vinculação ao Conselho Superior da Magistratura para abrir processo disciplinar no caso de ser julgada verificada tal violação?
Saberão os senhores proponentes de tal solução (mais uma que vai atrás da onda mediática) o que isso significa? Saberão que qualquer um passará a poder invocar a referida violação para interpor recurso para o Supremo? Saberão, por experiência, que no Supremo não há recurso classificado legalmente de extraordinário que, na prática, não se transforme em ordinário?
E estabelecer uma cláusula de obrigatoriedade de o CSM abrir processo disciplinar não colidirá com o princípios de independência dos juízes?

16 abril 2019

 

Para o fogo não há sagrado nem profano





Notre Dame. Não sei o que dizer sobre o caso. Foi uma tragédia. É tudo. Há ocasiões em que as palavras não acrescentam nada e até ficam aquém do que o silêncio pode dizer. É uma perda, sem dúvida, e uma grande perda. E também uma pena. As cidades têm uma identidade, como as pessoas. Não se consegue imaginá-las sem um determinado cenário, sem este ou aquele edifício simbólico, que, do fundo da sua vetustez, se nos abre como um livro a atestar um passado que foi o dos nossos antepassados e é também o nosso, e a assinalar aos vindouros a passagem fugaz das gerações passadas e presentes pelas pedras mudas do seu chão, das suas paredes, das suas torres. E daí, talvez, seja essa precariedade dos próprios edifícios-símbolo, afinal sujeitos à contingência e ao acidente, que os torna mais próximos da nossa humanidade e, por isso, mais receptivos a que as sucessivas gerações lhes vão apondo um sinal do tempo que foi o seu.

04 abril 2019

 

A família socialista

Também fiquei perplexo com a teia de relações familiares que ligam vários membros do Partido Socialista (PS) ao governo e a variadíssimos cargos de relevo nas instâncias políticas nacionais e internacionais, na Administração Pública e no próprio partido. Quer dizer que, dentro da própria família socialista, existe um círculo familiar mais restrito, composto por amigos e por membros ligados entre si por relações de parentesco, os quais ocupam uma parte considerável de cargos públicos de relevo.
É evidente que uma tal constatação não pode deixar ninguém indiferente (pelo menos, quem ainda tem algum pudor e sentido da ética da política, da administração da coisa pública e da democracia). A situação faz lembrar, por uma espécie de acto reflexo, os apparatchik, os homens e as mulheres do aparelho estatal e partidário, confundidos ambos. Quem pertence ao aparelho tem a enorme vantagem de obter empregos e lugares para os cônjuges, os parentes e os amigos, e de os deixar em herança a essas pessoas do seu círculo. Não digo que todos aqueles que foram colocados nos diversos lugares onde se encontram o tenham sido independentemente da sua competência, mas temos de concordar que a base é estreita, provoca suspeitas, mina a credibilidade dos políticos e das instituições democráticas.
Não há dúvida de que o caso lança uma sombra negra sobre o governo, embora haja muito oportunismo na forma como a situação foi despoletada nos media, em época eleitoral, e na forma como certos dirigentes partidários da Oposição tentam cavalgar a onda. Para além de oportunista, esse cavalgar a onda é hipócrita e os seus figurantes ou os partidos que representam têm muitos rabos-de-palha, como se costuma dizer.


03 abril 2019

 

A demagogia que vai por aí a propósito da justiça


Tinha intenção de escrever variados textos ao longo dos dias passados, mas uma avaria no meu computador portátil e no que disponho no escritório onde passo parte dos meus dias (este definitivamente arrumado e prestes a ser substituído) impediu-me de o fazer.
Era para falar, por exemplo, da demagogia que vai por aí a propósito da justiça. Tomando por fundamento os comentários que se têm tecido acerca de algumas decisões judiciais, nomeadamente no campo da “violência de género” (fala-se sobretudo em “violência doméstica”, mas não é bem este o campo de eleição das críticas), o que se não tem opinado e o que se não tem proposto a nível legislativo para supostamente remediar os males que têm sido diagnosticados! Meu Deus, que desaforo! Tribunais especiais para julgamento de crimes de violência doméstica, mas disfarçados sob a forma de tribunais de competência mista especializada, onde seriam julgadas matérias relacionadas com questões familiares, para tornear a proibição constitucional. O Conselho de Ministros veio incrivelmente propor essa solução, reclamada por vários sectores da sociedade portuguesa e por partidos à esquerda do PS, maxime, o Bloco de Esquerda. Como se a política e a produção legislativa devessem funcionar numa lógica de corporação dos bombeiros em que o objectivo fosse apagar os fogos que se vão declarando aqui e acolá. Tudo na hora, na urgência de atacar o desastre (ou o pseudo-desastre).
Também o Bloco de Esquerda está a trabalhar, no Parlamento, numa alteração à lei penal, intentando agravar a pena prevista para o crime de violência doméstica. Mais uma alteração ao sabor das ondas mediáticas. O Código Penal e o de Processo Penal parecem condenados a esse destino fatídico: o de nascerem com uma determinada filosofia e irem sofrendo, ao longo do tempo, remendos atabalhoados que desvirtuam essa filosofia e introduzem soluções pragmáticas assistémicas, por sua vez causadoras de embaraço e confusão. O que é incrível é que sejam partidos de esquerda a proporem tais soluções, verdadeiramente dignas de uma política criminal eivada de populismo penal. Nisso tem inteira razão a deputada do PS Isabel Moreira.
A esquerda, creio eu, é que foi responsável, historicamente, pela introdução no Direito Penal de medidas contrariadoras de penas de prisão excessivamente alongadas, de criação de alternativas à pena de prisão, de inscrição, nas finalidades da pena, de fins ressocializadores, de libertação dos condenados, antes do termo da pena, para adaptação à vida em liberdade (a chamada liberdade condicional), etc., etc., etc. Por isso, estranha-se este enfileiramento de certa esquerda atrás das hostes que reclamam o endurecimento e a agravação das penas. Ainda por cima, têm o desplante de classificar como conservadores pessoas que vão contra esta onda populista.
Agora já se lamenta o limite de 5 anos de prisão, estabelecido na revisão de 2007, até ao qual se pode suspender a execução da pena. Diz-se que tal limite é muito elevado, postulando-se um regresso ao limite anterior de 3 anos de prisão. Até aqui, havia que alargar as penas alternativas à pena de prisão como forma tendencialmente ideal de sancionamento da criminalidade média e favorecimento da ressocialização em liberdade. Porém, agora, nesta onda de endurecimento das penas, muito bem acolitada pela comunicação social, clama-se que é de mais. Até juízes com responsabilidade, como o presidente da Associação de Juízes, responsabilizam o alargamento da possibilidade de suspensão da execução da pena pela frustração sentida em certos meios com certas decisões judiciais que não satisfazem a ânsia de penas efectivas de prisão. Como se a suspensão da execução da pena tivesse um carácter obrigatório e os tribunais não tivessem que ponderar, em cada caso concreto, se a medida não contraria, desde logo, o sentir da comunidade relativamente à necessidade de pena efectiva de prisão em determinados casos.
Não só a agravação das penas integra o panorama de endurecimento penal a que temos vindo a assistir. Também uma cada vez mais acentuada tendência para medir a eficiência da administração da justiça através do número ou da percentagem de condenações efectivas em relação ao número de processos criminais que entram no sistema (e não já, apenas, em relação às acusações deduzidas pelo Ministério Público, o que já era de alcance duvidoso). Não é a justiça do caso concreto que interessa; é o resultado global, em termos de condenações de uma justiça massificada, que importa considerar. É como se a contabilidade própria de um capitalismo que reduz tudo à esfera da mercantilização tivesse penetrado a nossa sociedade, ou, pior ainda, a mente de certas elites intelectuais da nossa sociedade.

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