30 março 2007

 

A tentação penal

Tempos houve em que era a direita que preconizava (e sempre que podia aplicava) a repressão penal para todos os comportamentos desviantes.
Mas a esquerda vem querendo ocupar essa função tradicional da direita (neste aspecto, como noutros). Não falando agora das políticas securitárias que o PS implementou no consulado 1996-2002, e que agora pretende continuar e aprofundar (mas falaremos nisso noutra ocasião), repare-se na polémica em torno do cartaz do PNR.
Compreende-se a indignação e o alerta pela mensagem do cartaz. O que é não aceitável é que, com quase unanimismo parlamentar, se exija que a PGR intervenha, isto é, que seja promovida a punição criminal.
Esta instrumentalização e manipulação do direito penal é absolutamente intolerável. Saberão os autores do apelo que o direito penal só intervém em última instância? Que esse princípio é um autêntico pilar da democracia?
Falta de cultura constitucional é o que denota este apelo demagógico à "intervenção" da PGR.

 

Um discurso contra o messianismo penal no combate à corrupção



Intervenção do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Cons. António Henriques Gaspar, na sessão de abertura do colóquio "Combate à Corrupção, Prioridade da Democracia", na AR, em 26 de Março


O tema da corrupção está, hoje, no centro do discurso político, e por pressuposto ou refracção, na agenda da comunicação que se assume como mediadora das projecções de cidadania.
O fenómeno da corrupção, muito exposto nas representações sociais, ou, porventura, com maior rigor, na apresentação externa das representações sociais, está, porém, presente em todas as latitudes em diversas modalidades e graus de intensidade.
A corrupção é hoje apresentada pela opinião e pressentida como um obstáculo principal ao desenvolvimento económico e como uma ameaça real para a qualidade da democracia.
O discurso político e as percepções sobre a corrupção parecem revelar mais, no essencial, a emergência da imposição social e democrática de rigor nos costumes e na moral política e administrativa, do que verdadeiramente uma agravação do fenómeno ou das suas implicações como problema.
A actualidade e o lugar central do discurso, bem como a generalidade da proclamação que traz frequentemente coligada, não podem nem devem, porém, ofuscar ou fazer esquecer a necessidade de compreensão dos mecanismos da corrupção, a densidade do problema, a tipologia dos agentes implicados, as condições e os ambientes de emergência e as consequências associadas.
A primeira das referências para a compreensão do fenómeno está, no entanto, na delimitação das noções e na questão das definições, em que a semântica se situa na intersecção da história, da sociologia, da antropologia política e do direito.
A aparente homogeneidade que se surpreende na utilização corrente da noção cobre, com efeito, uma acentuada diversidade de representações que andam associadas. A projecção sociológica e antropológica e o conteúdo social das representações sobre a «nebulosa da corrupção» ou o «complexo da corrupção» vão frequentemente para além dos formatos jurídicos das categorias do fenómeno.
As expressões da comunicação, recorrentemente enunciadas, reflectem a dificuldade das definições, que partem de modelos de abordagem diversos e com perímetros de delimitação fluidos.
O recentramento das noções e o rigor das definições constitui um pressuposto essencial da lisibilidade do discurso sobre a corrupção, porque é necessário saber do que falamos quando falamos de corrupção.


Através do vocábulo acusador são estigmatizados diversos tipos de comportamentos não lícitos ou ilícitos ou como tal considerados nas expressões externas das representações sociais.
O termo “corrupção” tem sido, não poucas vezes, vítima de ambiguidade no senso comum, com a utilização generalizada de uma noção genérica e cultural que pretende englobar todas as formas de abuso ou de mau uso de uma função pública ou privada.
São diversos os ambientes em que se revelam práticas genericamente identificadas como corrupção.
Segundo algumas análises, a existência ou a exposição das práticas de corrupção anda associada à emergência de contextos de crise, de alterações económicas ou políticas, e a momentos em que os critérios e os valores comuns parecem conhecer reavaliações significativas.
Em contextos de crise e de reavaliação de valores, a erosão das virtudes republicanas banaliza as reacções sociais ao fenómeno e a importância das percepções em ambiente de relativismo histórico e cultural.
Por isso, a ambiguidade que, não poucas vezes, parece rodear tanto os princípios como as práticas de controlo, impõe exigências de rigor nas grelhas de leitura e no reordenamento dos critérios que evitem a anomia nas percepções e nas reacções; a resposta ao problema exigirá mais resultados do que retórica.
Mas no labirinto das múltiplas definições e das diversas práticas que pode abranger, a corrupção continua matéria controversa e por vezes dificilmente enquadrada tanto sociológica como cientificamente.
Da ideia clássica de degradação das instituições, à denúncia de todas as formas de abuso de poder e de estratégias de influência, as acepções do termo são múltiplas e cada cultura privilegia, por vezes, alguma das dimensões produzindo o seu próprio modo de eufemização.
A corrupção como metáfora de denúncia dos abusos tem um problema de definição recorrente desde a filosofia clássica, associando-se a degenerescência das instituições públicas e à desintegração dos princípios que constituem o fundamento do sistema político.
O domínio heterogéneo das concepções gera incerteza e descontinuidade nas qualificações aplicáveis, e o espaço difuso das generalidades não é propício à identificação dos problemas, à procura de estratégias de intervenção e à instituição de mecanismos de recomposição.

Está estudado que cada sistema político cria e combina estruturas de oportunidade próprias para a corrupção. A circularidade de posições de poder gera oportunidades políticas e administrativas e os sistemas de alianças informais diluem não poucas vezes os valores de referência.
Na perspectiva de enfrentamento e domínio do fenómeno pelos mecanismos institucionais, a delimitação a que há que proceder não pode ser sociológica, mas tem que ser essencialmente jurídica.
A hierarquia de valores e interesses sociais tocados tem de ser medida e construída pelo direito numa perspectiva de normatividade.
Há, por isso, que centrar o problema mais do que nas percepções, qualificações e julgamento social das ofensas à probidade pública e à honestidade, na sua específica dimensão e perspectiva jurídica, especialmente pelas delimitações de conteúdo penal.
O modelo jurídico das definições e a identificação das categorias pelo rigor das normas e dos conteúdos materiais que efectivamente lhes correspondem, constituem os quadros de referência na análise e na escolha das estratégias e na alocação dos meios adequados para enfrentar o problema na cultura de legitimidade republicana.
O discurso e o registo comunicacional das generalizações pode ser sedutor pela redução, mas acaba por se volver contra o sistema de controlo formal, já que as respostas que pode dar, dependentes do quadro traçado pelas categorias penais, podem ficar aquém da expectativa do sentido comum condicionado por conceitos gerais nem sempre com exacta correspondência penal.
As Convenções Internacionais e as leis penais constituem a referência jurídica e é por este eixo que deve passar a definição operativa.

A compreensão do fenómeno exige que sejam identificados os espaços de análise que permitam organizar os modelos de resposta.
A começar pela apreensão da medida e do volume – isto é, da amplitude sentida ou pressentida do fenómeno. As estratégias e os meios- e porque não, o discurso – devem ser proporcionados á dimensão real, ou à dimensão realmente conhecida e não apenas suposta do problema.
A dificuldade de medição ou de estimativa da corrupção acrescenta complexidade na identificação das causas e das consequências do fenómeno.
As estimativas resultam, por regra, de instrumentos de análise empíricos, produto do tratamento de microrealidades fragmentadas, constituindo apenas índices que, por não revelarem mais de que uma parte, não podem ser tomados pelo todo.
Estudos e análises desenham, com efeito, vários ambientes, graus, níveis e formas – corrupção «negra», «cinzenta» e branca» - com diferentes repercussões sociais e consequências, e que aconselham, certamente, diversos modos de abordagem e a adequação e proporcionalidade dos modelos de resposta.

No modo de abordagem jurídica, o complexo da corrupção pode acolher vários tipos de crimes.
Além da corrupção como nome próprio de crime, vêm associados na «nebulosa da corrupção», o peculato, a participação económica em negócio, o abuso de poder, a concussão, o favorecimento pessoal ou o tráfico de influência, que têm em comum o uso desviante das funções para fins desligados do interesse público, mas, cada um, com perspectivas, elementos e modos de abordagem diversos.
No estudo, percepção e abordagem dos modos, das formas e dos instrumentos de combate deverá estar suposta a complexidade das formulações, reduzindo-a, porém, pela identificação dos objectivos próprios de cada dimensão sectorial.

Enfrentar o fenómeno exige estratégias culturais, de prevenção e a intervenção de instrumentos formais de controlo.
Na base dos comportamentos que estão definidos como crimes no complexo associado à corrupção está a violação de princípios da ética republicana e do que constitui o mais fundamental dos deveres de serviço público.
A educação e a formação para a ética desde a escola, como exigência indeclinável de cidadania, as formações profissionais e a densificação dos valores culturais específicos dos agentes públicos serão aqui essenciais.
Nas formulações de prevenção devem ser certamente adensados modelos de prevenção primária e de prevenção situacional adaptados à especificidade e às expressões de conformação do fenómeno.
Prevenção primária, pela instituição de contra-medidas que contribuam para eliminar, bloquear ou enfraquecer os factores de emergência.
A construção de espaços com menor amplitude de poderes discricionários e com mais fortes vinculações naqueles campos em que a decisão de excepção vem prevalecendo frequentemente sobre decisões estritamente vinculadas; melhor regulação de procedimentos de decisão, eliminando factores intermédios e não estritamente essenciais propícios a compensações ou a manipulação de informação técnica; atenção particular à construção dos novos modelos de parcerias público-privadas onde pode residir alguma ambiguidade sobre o limite material do interesse público; o risco dos modelos voláteis de transição funcional do sector público para o privado, com espaços de indefinição do sentido material dos vínculos; ou mesmo, em plano que anda arredado do discurso, regulações adequadas que dificultem a emersão de situações de nepotismo directo ou cruzado, podem constituir critérios operativos em função preventiva primária.
Como também, na prevenção situacional, a utilização sistémica, integrada e cruzada dos resultados e verificações dos diversos serviços de inspecção e auditorias, seja de legalidade administrativa, de comprovação do mérito ou de natureza financeira.
Mas, como pressuposto essencial de rigor, evitando a erosão que pode perturbar o bom caminho: não usar a prevenção como espectáculo, nem fazer o espectáculo da prevenção.
Em outra perspectiva, o sucesso do combate através do direito penal depende do afinamento dos modelos de investigação e da utilização adequada dos instrumentos processuais disponíveis, na conjugação de proactividade entre os resultados da prevenção e as competências das instâncias formais de controlo.
Mas tudo enquadrado pela dogmática dos modelos, sem a proclamação messiânica das redenções penais.
Será, porventura, útil recordar que, desde há mais de uma década (1994 e em 2002), o legislador instituiu possibilidades acrescidas, com o desenho de meios especiais de investigação, que têm de ser utilizados e explorados até ao limite das possibilidades que oferecem, antes de serem reclamados outros meios que podem não superar testes difíceis no crivo de valorações dos direitos fundamentais.
É certo que, no ambiente de cumplicidades e silêncios onde os comportamentos emergem, com códigos de linguagem e de acção e com estratégias de dissimulação e alguns jogos de máscaras, a questão relativa à investigação e à prova assume especial complexidade.
Por isso, tanto na decisão sobre a acusação como no julgamento sobre os factos, os magistrados têm de saber interpretar e compreender o ambiente sobre o qual decidem, avaliando a prova pelos feixes de indícios possíveis e concordantes lidos na especificidade dos condicionamentos da acção: as regras da experiência têm de ser interpretadas pelo filtro poliédrico da multiplicidade dos códigos comportamentais.
Utilizados os meios de que a lei actualmente dispõe até ao limite das possibilidades que permitem, algum espaço de risco de não sucesso fará certamente parte dos equilíbrios da sociedade democrática, que impõe a si mesma defender-se no respeito por valores inalienáveis.
Temos aqui o dever da inteligência. As dificuldades devem ser superadas pela competência e exigência, evitando fugas em frente como, por exemplo, a invenção de novos crimes de difícil leitura perante os pressupostos essenciais sedimentados na dogmática penal ao longo de dois séculos.

Não será inútil alertar para os riscos de utilização de categorias penais simbólicas, muitas vezes com finalidade que aparenta ser apenas de «simbolismo ineficientista».
O simbolismo pode perturbar a clareza e criar ruído quando se quebre o pacto genético geralmente amarrado ao simbolismo e se pretenda tornar efectivo o que seria suposto ser simbólico.
Bastará referir alguns tipos penais com um sentido que se limita em muito ao valor simbólico, como algumas formas de peculato de uso, em que a carga semântica intensamente negativa não tem correspondência com o real conteúdo valorativo, ou a extensão típica fortemente excessiva do tráfico de influência, que anda paredes meias com actividades lícitas organizadas, e onde simbolicamente tudo parece caber e efectivamente não muito parece entrar.

Terei abusado por demais da benevolência da vossa atenção.
Com a percepção de que posso ter entrado por caminhos que não serão meus, invadindo competências alheias.
Não será, porém, mais do que a expressão do sentimento que me transmite a organização deste Colóquio Internacional cujos trabalhos se iniciam, e que devemos vivamente saudar e reconhecidamente agradecer a Vossa Excelência, Senhor Presidente da Assembleia da República.
A criteriosa escolha dos temas e as elevadíssimas qualificações dos intervenientes garantem, estou certo, a excelente qualidade das análises e das conclusões que serão alcançadas e de cujo rigor estarão beneficiárias as instituições e a democracia.
Nesta tarefa, os cidadãos reclamam, o serviço público impõe e a República exige o melhor de todos.
Porque, como enuncia o tema do Colóquio, o combate à corrupção constitui uma prioridade da democracia.

António Henriques Gaspar

28 março 2007

 

Salazar: mais um concurso ganho

Não vejo motivos para grande surpresa pela vitória de Salazar no concurso da RTP. É que ele, enquanto pôde, fartou-se de ganhar concursos, a que chamava eleições, e que ele periodicamente organizava meticulosamente para inglês ver.
Claro que este concurso não foi organizado já por ele. Mas a sua herança política ficou e pode resumir-se assim: os resultados de uma votação não devem ter nada a ver com o que a população realmente pensa.
A RTP continua a fazer autêntico serviço público.

 

De 4,6 para 3,9, finalmente para 3,3

São vitórias sucessivas do Governo sobre esse monstro chamado défice. Todos somos desafiados a enfrentá-lo destemidamente, abrindo o peito (e a bolsa) e pegando-lhe pelos cornos. Quando for abatido (ele resiste, esperneia, apesar de tudo), todos ganharemos. Até lá, mantenhamos o peito (e a bolsa) aberto, não podemos descansar nem um bocadinho, quer sejamos da privada ou da pública. Até agora, foram os da pública os chamados para a linha da frente e aí sofreram mais investidas. Mas, citando André Freire (um dos poucos que vale a pena ler numa imprensa portuguesa que cada vez mais merece a qualificação que lhe foi dada por Álvaro de Campos e que aqui eu recordei há tempos), no Público de 26 deste mês: "desenganem-se os assalariados do sector provado que pensam que este processo lhes trará alguns benefícios. Quando a empreitada de deterioração das condições de trabalho, nomeadamente em termos de segurança do emprego, terminar no sector público, o plano inclinado resvalará para o sector privado. É que o sector público era uma espécie de vanguarda, referencial de estabilidade e de melhoria das condições de trabalho... Quando esta decair, devem esperar-se a seguir tempos mais difíceis para o sector privado..." É a tal flexi-insegurança.

 

A política criminal, segundo os órgãos de soberania

Já é conhecido o anteprojecto de lei de política criminal, a primeira que vai ser aprovada depois da publicação da Lei-Quadro. Já saíram vários comentários. Não me revejo totalmente neles. Acho que algumas das críticas são directamente endereçáveis à própria Lei-Quadro. Em todo o caso, este anteprojecto também merece muitas reservas.
Desde logo, a imensidão de "prioridades". Se quase tudo é prioritário, então fica tudo na mesma! O anteprojecto não denota qualquer estratégia de luta ao crime, limita-se a fazer uma listagem caótica de crimes que considera prioritários, mais nada!
Para mais, não faz uma única lista, mas várias, segundo as diversas tipologias da parte especial do direito penal, sem estabelecer uma hierarquia de prioridades entre elas. Um caos elevado ao quadro...
Acresce que a atribuição de prioridade a um processo, embora concedendo-lhe precedência sobre os outros, não se aplica quando houver perigo de prescrição nem relativamente aos processos considerados urgentes pela lei. É caso para dizeer: tudo como dantes, quartel-general em Abrantes!
Há talvez uma diferença: é que agora pode responsabilizar-se alguém, o MP, pelos resultados! A intenção parece ser acima de tudo arranjar um responsável e apontá-lo publicamente, eventualmente puni-lo.
Quanto à pequena criminalidade, poderá haver aspectos positivos. Como se sabe, o défice de aplicação das medidas alternativas à prisão neste tipo de criminalidade é um dos grandes obstáculos a uma racionalização e à melhoria da justiça penal. Esperemos que as recomendações agora propostas venham a produzir efeitos na práica processual do MP. Um ponto há muito importante: o tráfico de menor gravidade foi incluído na pequena criminalidade. Portanto, também em relação a ele devem ser promovidas pelo MP penas diferentes da prisão. Sabendo-se que actualmente esse crime é normalmente punido com prisão efectiva, esperemos para ver...
Por último, um aspecto muito negativo, porque numa linha estritamente securitária, à maneira do Texas: a informação das vítimas no caso de fuga ou de libertação de arguido em alguns tipos de crime. Vindictas privadas, não, obrigado!

 

Cultura e Direito Penal

A decisão de uma juíza alemã no sentido de negar um pedido de divórcio a uma mulher muçulmana sob argumento de que os maus-tratos que sobre ela foram praticados pelo marido estarem de acordo com orientações do Corão, vem mais uma vez espicaçar a polémica em torno do papel que o Direito, e com especial acuidade o Direito Penal (se bem que a questão relevasse, ali, primeiramente, do Direito da Família), deve assumir em sociedades multiculturais.
Desconheço se entre nós já foram submetidos à apreciação judicial quaisquer casos que convoquem essa problemática, mas é bem possível que isso venha a suceder num futuro próximo a propósito da chamada excisão clitoridiana, uma vez que algumas das comunidades emigrantes radicadas no nosso país levam a efeito esse tipo de prática, fundada em superstições e rituais ancestrais.
A este respeito, julgo que na esmagadora dos países do nosso universo jurídico-cultural tem sido dada alguma relevância, nos casos penais, à regra de que a responsabilidade do agente pode ser de alguma forma mitigada em nome do argumento de que ele se limitou a seguir as normas próprias da sua cultura. Quanto a isto, julgo que há um consenso mais ou menos alargado. O problema começa é quando se trata de saber qual o peso concreto dessa cultural defense: atipicidade, exclusão da ilicitude (como, desgraçadamente, parece ter entendido a juíza germânica, que para mais terá desconsiderado o exit right da peticionante em termos de escolher um modo de vida distinto do que é imposto pela sua própria comunidade) ou “apenas” exclusão da culpa? E neste último caso, em que termos? Ou, afastadas todas aquelas hipóteses, poderá ocorrer atenuação especial da pena?
Ora, bem quanto às duas primeiras hipóteses (atipicidade e justificação), elas são de afastar liminarmente, pois relevam de uma visão radical do que seja o multiculturalismo, que o concebe em termos de considerar que as obrigações dos membros uma determinada comunidade étnica e cultural prevalecem sobre a ligação deles a uma determinada cultura política. Quanto a mim, um sinal neste sentido – de afastamento de soluções de atipicidade e justificação – parece ser o que é dado pelo Anteprojecto da Reforma do Código Penal, ao consagrar expressamente, na alínea b), do n.º 1, do artigo 144.º, do C. P., como agravante da ofensa à integridade física, o facto de dela resultar a supressão ou afectação da capacidade de “fruição sexual” (precisamente, o ponto 8 da Exposição de Motivos refere que com a alteração se pretende englobar a “mutilação genital feminina”), sobretudo se se levar em conta que o actual texto já parece comportar danos como o referido como causa de agravação da pena da ofensa à integridade física. Ou seja, no Anteprojecto parece ter-se querido (e bem, a meu ver) “advertir” que está fora de questão considerar a excisão como atípica ou justificada em nome de qualquer cultural defense de sabor anglo-saxónico. E o valor desta chamada de atenção está em que, segundo creio, vai muito para além da questão da mutilação genital feminina, antes podendo (devendo) tomar-se como “princípio” geral nesta matéria.
Já as soluções que se movem seja no âmbito da exclusão da culpa (por ex., por intercedência de erro sobre a ilicitude), seja no âmbito menos radical da atenuação da pena (como propôs entre nós, muito recentemente, Augusto Silva Dias), podem dar uma resposta adequada (em todo o caso, e obviamente, casuística e não “automática”!) aos valores e dilemas que não raro se enfrentam nesta nódulo problemático. Elas permitem, por um lado, afirmar o primado de uma determinada cultura jurídico-política (que preza sobremaneira a dignidade humana como valor não relativizável) sobre certas obrigações emergentes da pertença a uma dada comunidade étnico-cultural (e preservando, assim, o valor comunicativo-pedagógico, preventivo, da sanção – ou ameaça da sanção – penal), sem no entanto ignorarem o facto de os agentes que levam a cabo a prática de tais condutas agirem, não raro, num quadro dilemático (quando não de pura e simples ignorância) tal que é de molde a diminuir sensivelmente o grau de censura que se lhes possa dirigir e, assim, a necessidade da própria sanção penal. Ou seja, um tal modo de perspectivar o problema é, também ele, o único compatível com a nossa cultura jurídico-política, nos termos da qual um juízo positivo de culpa é a barreira intransponível da punição.



26 março 2007

 

O Corão nos tribunais alemães

Por vezes, a preocupação multiculturalista pode levar a resultados chocantes, se não risíveis. Negar o divórcio na Alemanha, a uma alemã, embora muçulmana e casada segundo a lei islâmica, com base no Corão, por alegadamente este permitir os castigos corporais do marido sobre a mulher, é pôr a ridículo o verdadeiro multiculturalismo, fundado no respeito pelas outras culturas, mas não na subserviência da nossa a qualquer outra. Na Alemanha não se pode aplicar uma lei que contrarie a constituição alemã: isso parece claro e evidente! A violência conjugal não pode deixar de constituir aí uma conduta reprovável e reprovada.
Aliás, são sempre questionáveis estas interpretações literais dos livros religiosos e das leis assentes na tradição que eles inauguram. Os livros fundadores das religiões não podem ser lidos à letra, eles estão cheios de metáforas, de parábolas, e de outras figuras de retórica, que fazem o seu encanto.
O perigo surge quando aparecem os intérpretes "fiéis ao texto". Eles aparecem um pouco por todo o lado. E então começa a intolerância.

 

Casamento e concepções de ordem «filosófico- confessional» – um segundo comentário



Tentando formular um comentário que vá agora um pouco além das margens da discussão (1, 2, 3, 4 e 5), parece-me que a limitação do casamento no actual Código Civil não corresponde a uma exclusão da tutela jurídica das «comunhões de vida» em virtude da orientação sexual mas a um contrato tipo com várias limitações (ou se se quiser «sinais valorativos com forte carga restritiva»), a mais impressiva das quais não sei se será a diferença de género dos contraentes se a limitação à contratação apenas a duas partes, especialmente quando nenhuma das partes pode manter mais do que um contrato em simultâneo, além de outras condicionantes como as relativas aos laços de parentesco entre os elementos do par, mesmo que de diferente género.
Não me parece que os contornos jurídicos do casamento civil derivem de estritas vinculantes de ordem «filosófico-confessional», de qualquer modo não pretendo embarcar pela genealogia da instituição (que ajudaria a desmentir essa hipótese) mas simplesmente destacar o dado que suponho consensual: o contrato de casamento vigente na lei ordinária portuguesa tem um lastro histórico que o conforma.
Naturalmente essa marca histórico-cultural tem implicações ideológicas no presente que implicam desde a adesão (com variantes entusiásticas que podem integrar a nostalgia por um outro quadro socio-cultural), à rejeição (que também pode ir da estrita opção pessoal à ambiciosa reforma social) ou indiferença.
Ou seja, compreende-se que a carga da instituição implique para alguns a pretensão de rotura, que aliás não seria inédita, o que me parece é que, assim sendo, a via mais saudável será assumi-lo sem tibiezas com o fim do «casamento», ainda que substituído por outros contratos típicos ou atípicos de «comunhão de vida» mais ou menos flexíveis quanto ao género e número dos contraentes, outros impedimentos e efeitos do contrato, sem enfeudamentos à figura rejeitada. Ou se o problema não é o casamento mas a disponibilização de contratos que satisfaçam as pretensões de tutela de «partilhas afectivas» e «comunhões de vida» não integráveis no actual modelo de casamento, repetindo-me, diria que a questão política passa a ser sobre a «possibilidade, além do casamento actualmente previsto no Código Civil, de outro tipo de contratos de “comunhão de vida”».
Sem opinar sobre a perspectiva evolucionista (sobre «modelos ultrapassados», «sentido da mudança» ou «evolução do meio humano» já aqui referidos) e as concepções filosóficas inerentes, entendendo-se que não constitui um imperativo constitucional a previsão do contrato de casamento para duas pessoas do mesmo género, ou para todas as pessoas que têm uma, ou mais, «partilhas afectivas» e pretendem uma «comunhão de vida» (ou várias), parece-me que a decisão do modelo contratual de regulação jurídica das «comunhões de vida» depende de uma «maioria» (imperativo democrático que, aliás, constitui o principal legitimador da própria Constituição).
Por último, também me parece que as diferentes perspectivas filosófico-culturais nesta matéria não dependem, no fundamental, de opções confessionais, aliás, se calhar existem proximidades insuspeitas entre aqueles que, ainda que preconizando vias antagónicas, partilham a ideia de que «a realização enquanto pessoa» depende de uma normatividade consagratória e não se satisfazem com um direito à prossecução da felicidade que compreenda, no essencial, abstenções de intervenção «de uma qualquer maioria ou de uma qualquer minoria».

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25 março 2007

 

Mr. Magoo

O Público tem uma versão para cegos. "E daí?", podem perguntar. "Daí nada", digo eu. Mas não pude deixar de reparar que o link da versão para cegos é este http://jornal.publico.clix.pt/magoo/.

Sim, como em Mr. Magoo.



 

O direito à (in)diferença

A história conta-se em poucas palavras: uma mulher recorre a um tribunal por forma a obter o divórcio, alegando e provando, que é vítima de maus tratos. Pede ainda que em face dos factos lhe seja concedido rapidamente o divórcio, prescindindo-se assim do requisito da separação de facto por um ano. O tribunal nega-lhe o pedido fundamentando a sua decisão no facto de os membros do casal serem muçulmanos, sendo que na sua cultura é costume os maridos infligirem maus tratos físicos sobre as suas esposas, citando em abono da sua tese o Corão numa parte em que permite ao marido disciplinar a sua esposa, se necessário, recorrendo ao castigo físico.

Esta decisão é reveladora da dificuldade que se sente nos dias de hoje nas relações com culturas e formas de estar diversas daquelas que são as dominantes em determinado país. Dificuldades que se vão adensando na Europa à medida que se vão sucedendo episódios como o dos cartoons de Maomé, da proibição do véu e dos símbolos religiosos, das declarações do Papa...
Dificuldades que podem dar em tristes exemplos como este que vem, agora, da Alemanha e que se escudam numa falsa compreensão da diferença.

 

Ainda o casamento.

A manutenção do casamento, na lei ordinária, como uma realidade jurídica exclusiva da heterossexualidade é, do meu ponto de vista, já um julgamento em matéria de orientação sexual. O direito criado no fundo afirma que o casamento homossexual não tem cabimento no “dever ser” que seleccionou do “ser”. E isso equivale, a meu ver, à emissão pela via legislativa de um sinal valorativo com forte carga restritiva do ponto de vista, para além daquele estritamente jurídico, do acesso aos mesmos códigos simbólicos comunitariamente percepcionados como evidência de uma cidadania plena. Tal sucede, entendo, porque em matéria do âmbito familiar ainda persistem na lei certas concepções de ordem filosófico- confessional (os tais «“princípios estruturantes” moralmente comprometidos» a que me referia aqui) que, se historicamente, serviram para moldar e conformar os costumes, hoje se mostram, julgo, ultrapassadas, face à laicização da actividade reguladora do Estado.
Não é por decreto que se altera a forma como a sociedade se vê a si própria. Entendo, porém, que a lei, sendo reclamada, deve ter um papel estimulante no sentido dessa mudança. Pode ser que desse modo, no futuro, a história do príncipe que casou com o outro príncipe não pareça assim tão bizarra.

23 março 2007

 

TEDH contra a Polónia

Porém, nem tudo corre pelo melhor aos gémeos polacos.
Agora o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem decidiu condenar a Polónia em matéria de IVG, por não ter legislação adequada à protecção dos direitos da mulher!
E o mais curioso é que se as mulheres portuguesas tivessem, em devido tempo, recorrido àquela instância, teriam seguramente obtido decisão idêntica. Mas vejamos o caso, que se chama Tysiac c. Polónia, e foi decidido a 20.3.2007 (a decisão pode ser encontrada em coe. int).
Uma polaca, mãe de dois filhos, ao engravidar terceira vez, e sofrendo problemas graves na vista, decidiu interromper a gravidez por recear o agravamento da sua visão, receio fundado no parecer de vários médicos que consultou mas que se recusaram a emitir um parecer favorável à IVG. O médico do hospital público a que se dirigiu para efectuar a IVG recusou-se (depois de um exame de cinco minutos, sic) a passar-lhe o certificado necessário à IVG. Ela viu-se obrigada a levar a gravidez até ao fim. Posteriormente os seus problemas de visão agravaram-se exponencialmente e actualmente não vê a mais de 1,50 m de distância.
Considerou o TEDH que foi violado o art. 8º da CEDH, que consagra o direito ao respeito pela vida privada, porque a legislação polaca não prevê nenhum mecanismo de recurso da decisão do médico que recusar a emissão do certificado, não sendo assim facultado à mulher impugná-la, ao contrário do que acontece em vários países europeus.
Esta decisão é tanto mais interessante quanto a lei polaca é muito semelhante à lei portuguesa actual (que esperemos que não seja actual por muito mais tempo), já que se funda também no sistema de indicações, também basicamente as mesmas: perigo para a vida ou a saúde da mulher; malformação do feto; violação da grávida. E, à semelhança da lei portuguesa, também é necessário um "certificado" dum médico para que a IVG seja possível (seja legal!). E, como na lei portuguesa, não há recurso de tal decisão! (Mas há um aspecto em que a lei polaca é melhor: a mulher nunca é punida!)
Quer isto dizer que, não fora o referendo de 11 de Fevereiro, bem valeria a pena às mulheres portuguesas recorrer ao TEDH e pena é que não tenham tentado essa via, preferindo em massa recorrer aos serviços clandestinos de alguma parteira ou médico ou então ou optar por uma viagem a Badajoz.
A pertinácia e coragem desta polaca, Alicja Tysiac, que lutou pelo reconhecimento dos seus direitos quando já de certa forma era inútil, pode constituir um passo em frente na luta pela despenalização da IVG na Polónia, que agora ficou mais isolada no contexto europeu, depois do nosso referendo.
Para já, os manos gémeos vão ter que desembolsar uns zlotys para indemnizar a senhora.
Esta decisão do TEDH, que não se pronuncia, como é expressamente afirmado, sobre o direito ao aborto, constitui um significativo reforço dos direitos da mulher, na esfera da sua privacidade, entendida como compreendendo um largo espectro de direitos, desde o direito à identidade, à autonomia, enquanto pessoa humana, ao desenvolvimento pessoal, ao direito de estabelecer relações com os outros e o mundo exterior (ver nº 107 da decisão).
Uma decisão que é inovadora na jurisprudência do TEDH.

 

A Inquisição na Polónia

Os manos gémeos são imparáveis. E a Polónia está aos seus pés.
Agora é a caça aos "colaboracionistas" do regime comunista. Os "suspeitos" têm que declarar se tiveram ligações com esse regime. A seguir a Inquisição intervirá, conferirá a veracidade da declaração, absolverá ou condenará os suspeitos. E nem a Igreja escapará. Aliás, já um bispo foi excomungado.
Isto acontece na Europa, no ano de 2007, num país que alegadamente reconquistou a liberdade.

 

Allgarve, a província mais portuguesa de Portugall

Allgarve vai passar a ser a designação daquele rectângulo lá do Sul, povoado ainda por alguns portugueses, é certo, mas cuja designação actual já não corresponde à realidade e às necessidades do mundo de hoje.
Não sejamos saudosistas, preconceituosos, conservadores. Não tardará muito que Portugall será a nossa pátria.

22 março 2007

 

Mais envelopes

O inquérito parlamentar ao "Envelope 9" é certamente um dos episódios mais lamentáveis da nossa história parlamentar pós-25 de Abril.
Enquanto não vem o texto definitivo do relatório, saliente-se o incidente sobre todos deplorável da revelação no DN de trechos das declarações do Procurador João Guerra, ouvido sob sigilo. Então, os senhores deputados também dão à língua com os jornalistas? Ou então são os jornalistas que se apropriam maldosamente de envelopes (a maldição dos envelopes!) que deputados (ingénuos, ou negligentes, ou cúmplices?) deixam em cima da mesa? Então os jornalistas podem remexer à balda nos papéis dos senhores deputados?
Mas o pior foi certamente a decisão de não investigar a violação do sigilo com base na inutilidade dessa averiguação (por a sanção ser a perda de mandato na comissão, em último dia de "trabalhos", para o responsável da violação do sigilo).
Então os senhores deputados não sabem o que é a prevenção geral? Ou a censura ética?

 

Biografias oficiais

Da extensa reportagem no Público de hoje sobre as habilitações académicas do nosso PM, fiquei apenas com uma certeza: ele não é afinal "engenheiro civil", qualidade de que se arrogava, já que constava do currículo oficial, mas sim "licenciado em engenharia civil", título que agora assume. Só não percebo bem qual é a diferença entre uma coisa e outra... Uma embirração da Ordem dos Engenheiros, ou coisa assim (é bem preciso meter na ordem as Ordens!).
Em todo o caso, a correcção já está feita no seu currículo. O PM, ao fim de largos anos, ficou a saber que não é "engenheiro", mas sim "licenciado".
O anterior eng. José Sócrates é agora o dr. José Sócrates. Não esquecer.

21 março 2007

 

Nas margens de uma discussão – um comentário moralmente comprometido



O Ricardo Matos termina o seu postal de 17-1-07, que só li hoje depois de um isolamento informático já aqui referido, com as seguintes palavras:
«Niilismo? Erotismo? Pessoalmente, prefiro humanismo democrático. Que, despojando-se de conceitos ou "princípios estruturantes" moralmente comprometidos (com uma qualquer maioria ou com uma qualquer minoria), deixa de impor limites à realização da pessoa, respeitando a individualidade de cada uma e as diversas formas legítimas (mesmo aquelas milenares) através das quais se manifesta».

Sendo certo que o texto se insere numla discussão com o Pedro Soares Albergaria sobre a possibilidade da figura jurídica do casamento civil abranger uniões de duas pessoas do mesmo sexo (1; 2 e 3), eu pretendia cingir um primeiro comentário a um elemento marginal, que parece ser, simultaneamente, uma pretensão e um método no trecho citado, o «despojamento» de «’princípios estruturantes’ moralmente comprometidos».

Se bem entendi, a discussão dos meus colegas de blog, ainda que referenciada ao acórdão da Relação de Lisboa, evoluiu para a solução legal preferida sobre o problema de o contrato de casamento dever apenas poder ser celebrado entre duas pessoas de sexo diferente ou também compreender duas pessoas do mesmo sexo.
O que me parece é que qualquer das posições se baseia, se tem de basear, em «’princípios estruturantes’ moralmente comprometidos», sejam eles marcados pela defesa da absoluta igualdade de tratamento jurídico de uniões de duas pessoas independentemente da diferença ou identidade de género ou pelo alegado sentido histórico cultural da instituição. Aliás o livro do Código Civil que regula o direito da família está essencialmente carregado de «’princípios estruturantes’ moralmente comprometidos», inclusive nas regras objecto da reforma de 1977 que consagraram alguns princípios antinómicos dos que então foram revogados.
A isenção relativamente a «’princípios estruturantes’ moralmente comprometidos» poderia, eventualmente, ser a pretensão metodológica no tratamento jurídico-constitucional da questão, no fundo se a Constituição impõe, proíbe ou remete para a lei ordinária o alargamento do casamento a uniões entre pessoas do mesmo sexo, mas os sentidos dos postais parecem clara e saudavelmente ir além dessa estrita questão...
Será aliás desejável que esta e outras questões, como a possibilidade de, além do casamento actualmente previsto no Código Civil, poder haver outro tipo de contratos de «comunhão de vida» (e se com esse ou outro nome jurídico), com diferentes requisitos e efeitos e se num novo quadro, com maior liberdade de escolha de contratos de «comunhão de vida» se justifica a intervenção jurídica estadual em situações de facto, depende de um debate alargado (que curiosamente tem sido muito incipiente no nosso país) que não ilida os diferentes «’princípios estruturantes’ moralmente comprometidos» sobre a intervenção do Estado e a liberdade individual.
Aliás a própria definição da comunicação sobre este e outros temas na esfera pública de uma sociedade democrática deriva de «’princípios estruturantes’ moralmente comprometidos», em particular a liberdade de expressão, o que, naturalmente, compreende a legítima assunção de diferentes princípios a propósito da regulação jurídica pelo Estado das «comunhões de vida».

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"Humanismo democrático?"

E podia lá ser humanismo anti-democrático ou mesmo democracia anti-humanista? E quem é contra o casamento homossexual é anti-democrata e anti-humanista?

O problema destas etiquetas é que, sendo efectivamente atractivas (lá está: quem for contra não pode ser humanista e democrata – e todos gostam de ser humanistas e democratas; logo não convém ser contra), divertem a discussão daquilo que é nesta sede essencial. Ora, o que está em causa não é julgar qualquer orientação em matéria sexual e nem colocar obstáculos às relações ou afectos que as pessoas, a seu bel talante, entendam por bem estabelecer. Cada um procura a sua felicidade como bem entende. O que está em causa é saber se o Estado tem ou não razões para continuar a distinguir, como forma institucional de constituição de família, o casamento (sublinho, o casamento) enquanto relação heterossexual, dele excluindo as relações homossexuais, as relações poligâmicas, etc., como sempre fez.

Nesta como noutras questões conexas, julgo que a comunidade politicamente organizada tem uma palavra a dizer e cabe-lhe fazer opções. Tão só a título ilustrativo, cabe-lhe decidir ainda sobre se é aceitável a adopção de crianças por casais do mesmo sexo (uma questão que na política de pé ante pé que rege nesta matéria foi, para já, estrategicamente, deixada de fora) ou se é aceitável o fomento e a promoção (como já se faz em alguns, poucos, países) da chamada “literatura gay friendly” para crianças, digamos de 4 anos de idade (lá está a etiqueta: quem não for gay friendly em matéria de literatura infantil é contra os homossexuais), com histórias como aquela do príncipe que recusa três donzelas e casa com outro príncipe, ou de dois pinguins macho que adoptam um ovo, ou de dois reis em lua-de-mel.

A pergunta é se todas estas soluções, ou algumas delas (pois é óbvio que as objecções que se possam erguer a umas e outras não têm a mesma intensidade), são aceitáveis. Pode ser que sim, mas parece que o ónus da prova da bondade das mesmas caberá àqueles que as propugnam. E não me parece que esse ónus esteja satisfeito com a alegação genérica de que assim é que se é “humanista” e “democrata”.

Já quanto à argumentação desenvolvida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não me cabe escrutiná-la aqui, por razões óbvias. No entanto, sempre direi que em face da actual redacção da Lei Constitucional e do Código Civil, no que a esta matéria respeita, só porventura desbordando dos dados normativos poderia decidir-se em sentido distinto. Não quero dizer, é óbvio, que Constituição obsta a uma alteração da lei ordinária no sentido de ficar consagrada a possibilidade de casamento entre duas pessoas do mesmo sexo. Ao remeter para a lei ordinária ela mostra-se especialmente flexível, neste particular. Mas precisamente por isso, enquanto as pertinentes normas do Código Civil não forem alteradas, pode bem dizer-se que é o casamento heterossexual que a Lei Fundamental acolhe. E nem por isso parece que se possa dizer que é um documento anti-democrático ou anti-humanista...

PS: uma bibliografia muito completa e actualizada sobre o tema, contra e a favor, pode consultar-se aqui.

 

Os juízes e o mundo

No passado dia 19 o Luís Eloy enviou-me o texto abaixo com o título em epígrafe, autorizando a sua publicação no Sine Die, a que só procedo hoje pois só agora voltei a estar conectado com a rede e a abrir a caixa de correio:
Os juízes e o mundo

O recente acórdão da Relação sobre casamento de pessoas do mesmo sexo, divulgado num post de Pedro Soares Albergaria, suscita-me algumas perplexidades que não quero deixar de partilhar:
-A argumentação da decisão é fundada quase exclusivamente na conhecida doutrina nacional, com especial destaque para os comentários à Constituição de Gomes Canotilho/Vital Moreira e Jorge Miranda/Rui Medeiros.
-Ora, sem questionar a valia de tais contributos, se há matéria onde se justifica(va) ultrapassar o estrito âmbito do nosso território esta é uma delas.
-Como referem Antoine Garapon e Jullie Allard “todos os julgamentos pertencem potencialmente a um espaço público mundial (…) o acesso às decisões estrangeiras constitui assim um vasto desafio do novo espaço publico judiciário”, Les juges dans la mondialisation, Seuil 2005, p. 88.
-Teria sido fundamental analisar a argumentação contrária, nomeadamente as decisões surgidas nos Estados-Unidos declarando normas semelhantes como contrárias à Constituição (acessíveis na Internet) e expandir a leitura de textos a diversos trabalhos doutrinários nesse sentido, nomeadamente organizados por Daniel Borrilo.
Em suma: lamento que num tema com esta dimensão a jurisprudência não tenha descolado da nossa doutrina e rasgado horizontes, independentemente do sentido da decisão final.
Como já alguém referiu há matérias onde a minha comarca é o mundo.


Luís Eloy Azevedo

17 março 2007

 

Herança(s) milenar(es).

Os conceitos jurídicos, como as instituições e a própria lei, na sua forma e conteúdo, têm, naturalmente, um passado, este presente e, seguramente, terão um futuro. Admitindo que a figura do casamento tem densificação enquanto instituição, no sentido de se tratar de um modo, comunitariamente aceite e complexo, de regulação do relacionamento (antes de mais) afectivo entre duas pessoas, não pode, julgo eu, deixar de se considerar que a sua forma e o seu conteúdo são revelados e cumpridos de acordo com um concreto e particular contexto histórico- cultural. Parece-me que efectivamente está a instituição casamento necessariamente vinculada a uma “herança cultural milenar”. Mas mais determinantemente, o desenho de tal instituição deverá ser traçado tendo em conta a evolução do meio humano, mais nas suas manifestações de reconhecimento e respeito mútuos do que nas (também elas milenares...) diferentes formas de relacionamento interpessoal que o mesmo pressupõe. Não me parece assim que seja de aceitar plácida e passivamente uma tal instituição quando esta não fornece as respostas que, suponho que inequivocamente, o modo de relacionamento humano reclama.
No que respeita ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, do meu ponto de vista, a abordagem deve resumir-se a reconhecer-se, lucidamente, a existência evidente de cidadãs e cidadãos cuja realização enquanto pessoa passa, para além do mais, pela partilha afectiva e comunhão de vida com pessoas do seu sexo. Reconhecer-se para além disso que, como os demais, algumas de tais mulheres e alguns de tais homens realizam-se enquanto pessoa afirmando publicamente tal comunhão de vida através do código jurídico-social vigente estabelecido para o efeito. E reconhecer-se, final e decisivamente, o absoluto dever do Estado de promover o desenvolvimento pleno da sua personalidade, sob pena de, à falta de “justificação razoável de acordo com os critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes”, se negar efectivamente “validade cívica” a algumas pessoas.
Niilismo? Erotismo? Pessoalmente, prefiro humanismo democrático. Que, despojando-se de conceitos ou "princípios estruturantes" moralmente comprometidos (com uma qualquer maioria ou com uma qualquer minoria), deixa de impor limites à realização da pessoa, respeitando a individualidade de cada uma e as diversas formas legítimas (mesmo aquelas milenares) através das quais se manifesta.

15 março 2007

 

A teimosia da Constituição



No dia15 de Fevereiro de 2007, o Tribunal da Relação de Lisboa pronunciou-se no sentido de que não feriam a Constituição da República, por violação do princípio da igualdade (artigo 13.º, CR) ou do direito a casar e a constituir família (artigo 36.º, CR), os artigos 1577.º, (que define o casamento como um contrato entre pessoas de sexo diferente com vista à constituição de família) e 1628.º, al. e) (que fulmina de juridicamente inexistente o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo), ambos do Código Civil. A argumentação do acórdão vai no sentido sublinhar que o próprio legislador constitucional estabeleceu, claramente, uma linha divisória entre casamento e família (artigo 36.º, n.º 1, da CR), em termos de se poder concluir que a relação entre os dois conceitos é unívoca (se o casamento existe, sempre, em função da constituição de uma família, não é verdade que a constituição de família suponha o casamento) e de que foi deixado ao legislador ordinário amplo poder de conformar o conceito de casamento. Uma conclusão que nem mesmo o Prof. Vital Moreira se atreve a contrariar na última (e, aliás, excelente) edição da Constituição da República Portuguesa Anotada, de que é co-autor.

No fundo, claro está, o que pretendem os paladinos das “causas fracturantes”, os novos niilistas, neste temário como em muitos outros, é expurgar a lei de toda e qualquer reminiscência de uma herança cultural milenar. Nem que seja a tratos de polé. Mas o casamento não é apenas um conceito jurídico; é também, e sobretudo e antes de tudo, uma instituição. E as instituições são-nos “dadas” pela cultura, não pela lei. Na feitura desta é que não se pode – não se deve – desconsiderar que é feita para vigorar num (e supondo o lastro de um) determinado ambiente cultural, que não convém alterar por mutação mas sim por evolução, de forma lenta e sedimentada. Só assim é que as normas jurídicas, sobretudo em área tão sensível e tão “culturalmente comprometida” como a aqui em causa, ganham aceitação social e, por isso, efectiva vigência. E muito menos pode fazer-se da lei coutada desta ou daquela minoria, laboratório deste ou daquele engenheiro social, porque isso redunda em formas de moralismo “de pernas para o ar”: converte-se na imposição a uma maioria dos códigos morais de uma minoria. Neste ponto, bem se vê, já os tiques autoritários são insofismáveis.

Por outro lado, sempre achei algo estranho que muitos dos que nos anos 60/70 do século XX enfileiravam orgulhosamente no movimento anti-institucionalizador, que reclamavam que o casamento mais não era do que uns rabiscos num pedaço de papel e que prejudicava a comunhão (ou seja, no fundo, o amor, a família, a substância das coisas), se ergam agora como os mais eriçados e empedernidos defensores da institucionalização da família (homossexual) em forma de casamento. Isso prova bem que a retórica é coisa de que se (ab)usa em função dos apetites do momento.

Seja como for, tenho por estranho o relativo silêncio da imprensa das “causas” a propósito daquela decisão. Será que é porque não vale pena levantar alaridos, porque o Governo/PS já anunciou que, após o momento tanático (com o aborto, mas que previsivelmente terá desenvolvimentos próximos na eutanásia), nos vai brindar ainda este ano com um momento erótico, resolvendo definitivamente este grave problema que afecta a sociedade portuguesa e atirando-nos para um patamar de desenvolvimento inimaginável, ainda superior àquele que conquistamos com a liberalização do aborto até às 10 semanas? Ou será porque não seria muito cómodo, neste caso, singularizar um bode expiatório? Sim, porque uma reacção típica para um tal desaforo implicaria, no bem conhecido estilo histérico, retaliatório e intolerante para com a livre expressão do pensamento (dos outros, claro), rotular de homofóbicos (essa arma temível que dispensa o cuidado de argumentar) todos aqueles que, de um modo ou outro, se relacionam com aquela decisão (conservador do registo civil, juiz de comarca, juízes desembargadores). E, nesse caso, nem seria coerente deixar de lado, imagine-se, um ou outro ilustre comentarista da Constituição da República...

14 março 2007

 

O julgamento do major

O major Valentim Loureiro teve um desabafo magoado: não é compreendido pelos tribunais. Ao longo deste tempo em que em que se tem visto envolvido em processos por vários crimes, nomeadamente por corrupção desportiva, ele não tem feito outra coisa senão tentar convencer os juízes de uma coisa que nem sequer precisava de demonstração, por evidente: a sua inocência. E, para além de evidente, presumida legalmente. Ora, todo esse esforço – confessa-o agora o major com enorme desalento – tem sido baldado. Por isso, o major manifestou agora uma aspiração heróica: ser julgado na televisão. Nada mais. Arrostar com os holofotes da publicidade mediática, levando para os estúdios advogados, juízes (não sei se os mesmos que são incapazes de compreender, se outros, mas presumo que sejam juízes como aqueles que costumam aparecer nos mais variados concursos, desde o tango ao orangotango, e onde aparece gente representativa dos estratos mais exóticos da sociedade portuguesa), testemunhas, etc. No final desta espécie de “reality show”, o major, de baraço ao pescoço, como o bom e leal Egas Moniz, submeter-se-ia ao veredicto popular, não só dos juízes em cena, mas também, certamente, do grande público, que, como é prática na televisão por ocasião dos grandes eventos nacionais, como o festival da canção, poderia votar por telefone.
Poder-se-ia conceber julgamento mais democrático, mais limpo e mais isento? E, além disso, mais digno da boa-fé do major?

 

Perigo das contaminações (2) - aditamento a propósito do SIRP, SISI e do Conselho Superior de Investigação Criminal

Na sequência do anterior postal, um breve aditamento sobre os dados que me parecem merecedores de reflexão na recentemente publicada lei do SIRP e na resolução do Governo sobre o SISI.
A controvérsia tem incidido, alternada ou simultaneamente, sobre dois perigos: (a) de se estar a resvalar para um excessivo arsenal de meios intrusivos e coercivos ao dispor do Estado; (b) de, no seio do Estado, se estarem a concentrar numa única entidade demasiados poderes «sensíveis». Abordagens que se podem constatar através da consulta do Bloguítica que se tem destacado no acompanhamento crítico da iniciativa governamental - e na identificação de tópicos fundamentais, por exemplo, as exigências de ‘horizontal accountability’ e as múltiplas resistências numa sociedade, como a portuguesa, culturalmente restringida, nesta e noutras matérias, a esquemas verticais (espero também poder retomar este tema em breve).

Neste momento, estou longe de acompanhar duas das linhas críticas avançadas por alguns:
1- Colocar no mesmo saco o cartão de cidadão e o documento único automóvel, por um lado, e as reformas dos serviços de informação, polícias e investigação criminal, por outro, ainda que justificado pelo natural receio gerado pelos mecanismos proporcionados pela evolução tecnológica, depende para uma crítica sustentada que ainda não li, de uma ponderação e concretização das vantagens e riscos daquelas modernizações burocráticas.
2- Na análise do SIRP e SISI de forma atomizada, também não se me apresenta como problemática a concentração da responsabilidade política e do controlo governamental de serviços com o mesmo espectro funcional. Ou seja, à partida, não vejo razões para obstar à balcanização de serviços de informações, por um lado, e de polícias, por outro, através de duas entidades unitárias com funções de coordenação e inclusive alguns poderes de direcção.
Questão distinta é se o reforço dos mecanismos de uma direcção global não é acompanhada do concomitante e paralela alteração dos meios de fiscalização e controlo externos desses serviços, sob pena, de se estar a reforçar o poder (e consequentemente os perigos associados) e a debilitar o seu escrutínio.

O que me preocupa:
(1) Que o processo de unificação da coordenação e direcção dos serviços de informações e das polícias compreenda uma unificação da respectiva direcção bipolar, e, para utilizar terminologia da resolução, a aposta centrada na criação de «interfaces» no quadro de «geometrias variáveis»;
(2) A diluição da destrinça funcional entre informações da República, prevenção e repressão criminal.

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Há um ano sobre o perigo das contaminações

Estando impossibilitado de "postar", antes da próxima semana, uma análise sobre a resolução do Governo sobre o SISI, como me foi proposto por um amigo, vou derrogar um princípio que tenho mantido de não poluir este espaço com poeirentos textos escritos noutros contextos, transcrevendo a parte final de uma intervenção que apresentei num Congresso de Investigação Criminal em Março de... 2006:

7. Prevenção, repressão, Estado de direito e o perigo das contaminações

A prevenção primária e a segurança assumem reforçada relevância na actual sociedade de risco e determinam que se torne necessário ponderar a uma nova luz o recurso a meios limitadores dos direitos fundamentais, na defesa relativamente a perigos gerados pela criminalidade organizada ou pelos atentados contra os fundamentos do Estado.
Verificando-se uma perigosa deriva que perpassa por alguns discursos, de instrumentalização do processo penal para finalidades não repressivas, como meio privilegiado para o acesso à informação relevante para a segurança do Estado, contra a qual aqui se quis acentuar o quadro jurídico-legal da investigação criminal, no sentido de que não se pode anexar / subordinar o processo penal a objectivos preventivos da polícia ou dos serviços de informações.
Plano em que importa sublinhar que não há lógica de eficácia que o legitime mas tão só actuações abusivas dos órgãos do Estado, pois a definição dos meios para a prevenção primária e segurança não pode estar nas mãos das estruturas burocráticas do Estado, sejam das polícias sejam das magistraturas, antes deve ser definida legislativamente, no necessário respeito do quadro constitucional, pelos órgãos de soberania democraticamente legitimados para o efeito.

Concretizando, o problema da definição do âmbito de iniciativa própria de investigação criminal dos órgãos de polícia criminal só por abuso pode ser confundido com a eventual necessidade de alargamento dos meios policiais (e fundamentalmente dos serviços de informações) para o cumprimento das respectivas funções constitucionais precípuas.
Os meios excepcionais do processo penal não se destinam à obtenção de informação para a actividade executiva mas à recolha de prova para a acção e julgamento penal, e a eficácia dos mesmos relaciona-se com as finalidades primárias e secundárias do processo penal. A confusão dos procedimentos relativos às duas áreas afigura-se como uma via constitucionalmente ilegítima, que, além de problemática no plano político, apresenta-se como epistemologicamente perigosa, mas, acima de tudo, põe em causa o Estado de direito.
Vertente em que a informação recolhida pela Polícia Judiciária enquanto órgão de polícia criminal através de meios excepcionais que apenas podem ser utilizados, por força da lei, para os fins do processo penal não devem, sem autorização legal expressa, em caso algum ser encaminhadas para outros fins, sejam eles de polícia em sentido estrito, de informações ou defesa.
E esta é uma área em que para evitar os abusos é fundamental uma delimitação funcional e orgânica.
Ou seja a destrinça entre organismos judiciários e policiais, por um lado, e serviços de informações por outro, regulando-se de forma clara na lei as respectivas articulações e deveres de cooperação (que terão de assumir uma clara natureza excepcional).
A legitimidade de intervenções intrusivas admitidas para fins de processos penais perde-se se forem desviadas ou aproveitadas para outros fins. Pelo que não deve ser confundido o espaço de acção de órgãos de polícia criminal e dos serviços de informações da República. Terá que ser a lei a definir os actos materiais colidentes com direitos individuais que podem ser aproveitados para efeitos de informações e defesa do Estado
[1], atento, nomeadamente, o princípio sublinhado no art. 18.º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de que as restrições a direitos e liberdades «só podem ser aplicadas para os fins que forem previstas».

Importa também aqui não confundir controlos administrativos e judiciários, com efeito se estes se justificam em relação às actividades das polícias com os fins do processo penal, já não têm o mesmo sentido para actividades que visem outros fins públicos, em que se impõe aí sim um controlo de entidades administrativas autónomas com competências próprias de fiscalização.
A confusão nesta matéria, mesmo que envolvendo entidades administrativas provenientes das estruturas das magistraturas pode ser perversa a dois níveis:
1) Por um lado a dimensão essencial do controlo tem de ser feito de acordo metodologias e conhecimentos específicos distintos dos fins de repressão criminal, para além de se exigirem estruturas centrais com núcleos fortes, pelo que envolver no caso estruturas dirigidas para os fins do judiciário é negativo em termos operativos;
2) Por outro, o comprometimento de entidades com funções judiciárias (especialmente se forem órgãos de topo) com essas actividades pode também comprometer a defesa da legalidade relativamente a eventuais ilícitos praticados por esses serviços.

[1] O que em certos casos exigiria mesmo a alteração da Constituição, v.g. o art. 34.º, nº 4 da Constituição, «é proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal».
Porto (Março de 2006)

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Papeis velhos - um édito

Um velho édito de 1667: «les fonctions de justice et de police sont incompatibles et d’une grand étendue pour être bien exercées par un seul officier dans Paris» (citação extraída de J. Gleizal / J. Gatti e C. Journés, La police – Le cas des démocraties occidentales, Paris, PUF, pp. 64-65).

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13 março 2007

 

O "Príncipe"

Tem sido objecto de preocupação por parte de muitos cidadãos e comentadores o projecto de concentração policial em preparação e que coloca nas mãos de uma entidade dependente do primeiro-ministro a coordenação das diferentes polícias e mesmo de organismos de investigação criminal. Tratar-se-á de mais um passo no sentido de uma concentração de poder que muitos vêem pelo menos com muito cepticismo?
Hoje, coloco neste blogue uma crónica de Manuel António Pina que manifesta não só a sua surpresa, como – pior do que isso – o seu alarmado receio ante essa suposta concentração de poder.
Ontem, transcrevi parte de um texto que, a propósito de biografias de certos líderes políticos, no caso a do primeiro-ministro no semanário “SOL”, “desmonta” a forma como uma certa comunicação social, pretensamente independente, mas no fundo “reverente” para com o poder (e é o mínimo que se pode dizer) constrói imagens que não andam longe da fomentação de cultos da personalidade. Ou então do velho tique lusitano que é o culto do homem providencial.
Não sei se há relação entre estas coisas, mas aqui vai o texto de Manuel António Pina:


Apenas “perigoso”?
“Aos poucos, começa a definir-se o significado da ofensiva do Governo contra as “corporações da justiça”. O poder legislativo é há muito um instrumento dócil do executivo, restava o judicial. Dado que, no nosso ordenamento jurídico, o poder de iniciativa penal pertence ao Ministério Público, o controle do poder decisório dos tribunais passa pelo controle deste e da investigação criminal. O processo Casa Pia, que chamuscou algumas figuras do PS, terá sido um grito de alerta. A revisão de Monstesquieu em curso é, percebe-se melhor agora, o regresso a Maquiavel, com uma concentração de poderes no “Príncipe” sem paralelo em qualquer democracia ocidental. O primeiro-ministro controla já directamente o Serviço de Informações e irá passar a controlar também directamente o Sistema Integrado de Segurança Interna e o Conselho Superior de Investigação Criminal (onde o autónomo PGR será tão-só “mais um”). Juntem-se a isto o Cartão Único e a Lei-Quadro da Política Criminal e será fácil concluir que tão depressa não voltará a haver um processo Casa Pia e que o “Príncipe” saberá mais sobre cada um de nós, para os fins de “interesse público” que entender, do que nós mesmos sabemos. “Perigoso”, diz a Oposição timidamente. Assustador, digo eu, cidadão comum.”

12 março 2007

 

Biografias

Não li a biografia do Primeiro-Ministro no semanário “SOL” tão badalada durante a semana toda em grandíssimos anúncios publicitários, que ocupavam uma página inteira, em jornais diários, como «O Público». Mas o “bloguer” JOSÉ leu e teceu um longuíssimo comentário crítico. Valerá a pena transcrever este trecho, recomendando-se a sua leitura integral em www.grandelojadoqueijolimiano.blogspot.com


As biografias dos nossos políticos mais notórios, publicadas numa dúzia de páginas das revistas semanais, costuma ser florilégio de referências hagiográficas, pois todas contêm imagens serôdias de anjinhos de procissão, do tempo em que o Estado e a Igreja davam as mãos, em comunhão concordatária.Aconteceu com Cavaco, Guterres e agora Sócrates que aparece na Tabu de Sábado, em 20 páginas resumidas e também sumidas de referências seguras, reveladoras do verdadeiro perfil do Primeiro que agora manda no Executivo.
(…) Ao contrário do que foi anunciado, em pancartas publicitárias, a entrevista não é a história da vida de Sócrates. É apenas uma operação de imagem, com relato de episódios simpáticos, em registo de puro spin, que o Sol patrocinou, porventura conscientemente e com interesse mútuo. Afinal, as vendas de jornais dependem destas coisas. O Diário de Notícias de hoje, Domingo, dirigido por um incrível Miguel Gaspar, amplifica o efeito com as páginas de abertura, numa suspeita operação alargada de OPV de imagem do nosso Primeiro.Em 20 de Fevereiro último, o Público, em artigo de Ricardo Dias Felner, adiantou um artigo ainda mais interessante, sobre o perfil do Primeiro.
(…)
Terá algum interesse saber quem é o Primeiro Ministro que governa o país, com maioria absoluta e que tem concentrado em si mesmo, na sua pessoa política, uma fatia de poder já perigosamente alargada?A ociosidade da resposta, convidaria a que este tipo de abordagens jornalísticas, deixasse um pouco mais de lado a aura hagiográfica e se centrasse um pouco mais na personalidade verdadeira e real do entrevistado, com a apreciação crítica das incongruências de quem tomou as rédeas de um poder, delegado pelo povo.Porém, assim não acontece. Este tipo de artigos, alguns a rasar o plano da sabujice mas chã, contribui ainda mais para a mitificação dos governantes e a ausência de críticas que se possam ouvir à sua acção política.
(…)

08 março 2007

 

A vitória sobre o monstro

Concordo com as ideias expendidas por Vital Moreira, no seu artigo de opinião no “Público” da passada terça-feira. É um artigo justo, correcto e comedido. Nele, o articulista distingue causas de congestionamento e ineficácia dos tribunais a que se pode atalhar com medidas imediatas como as que foram implementadas e que se traduziram, segundo os números oficiais, numa diminuição da pendência de processos e do número de processos entrados de “causas estruturais que pesam sobre o desempenho da justiça” e que têm a ver com a organização judiciária, a complexidade processual, o abuso de expedientes processuais e recursos, o aumento de litigiosidade, a carência de meios humanos e materiais, o aproveitamento óptimo dos meios disponíveis, como, por exemplo, a afectação dos juízes apenas a tarefas que tenham a ver com a função de julgar, a falta de controle da produtividade dos “operadores judiciários”.
Ora, em primeiro lugar, Vital Moreira, não obstante a simpatia que geralmente manifesta para com as medidas governamentais que vêm sendo implementadas, embora com aspectos críticos, não embandeira em arco com o sucesso proclamado de forma altissonante pelo governo. Sem negar os resultados positivos, diz expressamente que não são “espectaculares”, e nisto marca uma assinalável distância da posição assumida pelo governo, nomeadamente pelo primeiro ministro, que vindo em auxílio do seu ministro da justiça, classificou os resultados de “absolutamente extraordinários, surpreendentes e motivadores”, apresentando-os como uma vitória contra o “monstro” – uma linguagem muito consentânea com a arrogância com que vêm sendo atacados certos sectores da sociedade, nomeadamente o sector da justiça.
Por outro lado, o artigo de Vital Moreira tem o mérito de não centrar as causas da ineficiência da justiça fundamentalmente nos “operadores judiciários”, ao contrário da ideia que vem fazendo carreira e que, ainda por cima, injustificadamente restringe os “operadores judiciários” aos que (magistrados do Ministério Público, juízes, funcionários) trabalham nos tribunais – ideia essa que, tendo a implementá-la vários interesses conflituantes, foi de certo modo incrementada por alguns comportamentos do actual governo.
Se é verdade que juízes, magistrados do Ministério Público, funcionários, polícias têm “culpas no cartório”, muitas vezes por força de uma mentalidade conformista e burocrática, rotinas instaladas, falta de sentido cívico e falta de sentido criador e inovador, e outras vezes por incapacidade, negligência e falta de consciência deontológica (factos que não serão muito diferentes do que se passará a nível de qualquer outra profissão), também não se pode escamotear que outros operadores judiciários têm grandes responsabilidades no estado em que a justiça se encontra. Vital Moreira cita, por exemplo, o abuso de expedientes processuais, nomeadamente recursos. E também os sucessivos governos não podem ficar à margem desta responsabilização, como também outros órgãos de soberania, uns e outros por não terem implementado medidas a tempo, não terem tido o “golpe de vista” necessário para preverem as situações, não terem disponibilizado os meios adequados e terem também, em certos casos, confundido o interesse nacional com interesses partidários.
Por último, há causas estruturais que têm a ver, quer com a situação de crónico atraso do país, quer com a explosão de direitos e a procura judiciária propiciados pelo desenvolvimento subsequente ao “25 de Abril”, quer ainda com a desadequação do “sistema de justiça” às mudanças de toda a ordem a nível político, social e económico que têm vindo a ocorrer, tanto a nível nacional, como a nível transnacional e global.

03 março 2007

 

A (perseguição da) história


 

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A palavra que - se também para isto houvesse concurso, programa televisivo ou sondagem - elegeria como a palavra da estação Outono-Inverno 2006/2007.
(desta vez, sou eu mesma)

02 março 2007

 

Choque tecnológico - um exemplo

Há mais de um ano o primeiro ministro de um país anunciou que a força de um «choque tecnológico» determinaria que o ADSL cobrisse a totalidade do respectivo território, contudo nalgumas zonas mais recônditas tal desiderato ainda não foi logrado, mesmo num lugar a menos de 60 quilómetros da capital.
A consciência dos governantes pode, contudo, estar tranquila já que de acordo com as bases de dados da empresa de telecomunicações que monopoliza a rede telefónica fixa, esse sítio está coberto pela banda larga, só depois dos respectivos assinantes do serviço telefónico solicitarem a instalação do equipamento adquirido para o efeito é que os técnicos, sem necessidade de deslocarem já que estão treinados na resposta, informam que afinal não existe cobertura por banda larga. Refira-se que nesse sítio longínquo nem as ligações por banda estreita são possíveis, já que a rede telefónica não se revela capaz para a transmissão de dados.
Entretanto, o sol aparece no horizonte já que uma empresa que tem uma das autorizações da rede móvel, pretende adquirir a o gigante das telecomunicações. A folha de serviços dessa moderna empresa também é exemplar, decorrido mais de um ano do anúncio que no tal sítio se poderia, em breve, aceder à internet pela rede móvel em 3G, não só tal não foi conseguido como se degradou o serviço em 2G que na maior parte do tempo nem sequer permite o acesso à internet.
Importa reconhecer que os habitantes desse lugar não podem queixar-se das comunicações, já que em matéria de rede viária, que como se sabe exige investimentos muito mais reduzidos, depois de se ter discutido qual a melhor solução económica para o acesso a uma Auto-Estrada que estabelece a ligação à capital, se uma via rápida de acesso a um «nó» existente se a construção de um novo «nó», os poderes se revelaram muito desembaraçados, realizados vários estudos, suspensos trabalhos para novos estudos, construiu-se primeiro a via rápida e depois o novo «nó».
Eventuais queixas só revelam assim gente mal agradecida, para que é que querem internet rápida quando lhes bastar entrar no carro viajar até à capital para se ligarem?

PS A circunstância descrita sobre esse país imaginário pode ter alguma relação com ausências blogosféricas.

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