31 dezembro 2007

 

Fumadores: o vosso destino está traçado!

Fumadores de Portugal: o vosso destino está por horas! Aproveitai minuto a minuto o tempo que vos resta! A partir da meia-noite, tereis de fumar ao relento e a noite está fria. Cuidado com as gripes. E, atenção, não vos mostreis rancorosos com quem vos quer tratar da saúde. Se não, ainda sereis obrigados a entrar na clandestinidade, a fumar nos mijatórios públicos, nos bairros degradados, na companhia dos vossos irmãos drogados. Atentai bem no vosso destino, arrepiai caminho, abandonai o vosso degradante vício, que vos levará inevitavelmente a arrumadores de automóveis.
Pensai bem: a partir de hoje, estais sob vigilância pública, sob liberdade precária.
E quem vos aconselha vosso inimigo é.

 

Topo e fundo de 2007

Eu coloco sem hesitações no topo deste ano findo o presidente do Supremo Tribunal do Paquistão demitido por Musharraf. Ele tentou salvar o direito contra a arbitrariedade e a prepotência. Ficou vencido, mas não só ele: foi o próprio Paquistão que ficou mais uma vez à mercê de ditadores violentos e sem escrúpulos. Os resultados estão à vista. Sem legitimidade nem credibilidade, o poder de Musharraf é precário. O golpe (in)constitucional terá sido suficiente para o manter no poder? Talvez não... E seguramente não é por este caminho que se abrem perspectivas de secularização e democratização do país...
No fundo, bem no fundo, caberia muita gente, mas eu escolho este grupinho de gestores que circula entre o público e o privado, sempre animados do mais elevado sentido patriótico, agindo sempre a bem da Nação, sempre abnegados e devotos servidores do sagrado Capital onde quer que sirvam.

27 dezembro 2007

 

Carta a um amigo

Meu Caro Maia Costa:
Quem te disse a ti que, por ser Natal, ninguém leva a mal a tua libérrima veia humorística? Nado e criado na chamada “civilização europeia ocidental”, podes “brincar”, se assim se pode dizer, com as figuras sagradas do cristianismo e não só, aventando que o pai biológico de Jesus Cristo foi o Espírito Santo, S. José, o pai afectivo e a Virgem Maria, uma mãe de aluguer. Estou a lembrar-me, como tu, inevitavelmente, do poema de Fernando Pessoa /Alberto Caeiro, esse longo poema de “O Guardador de Rebanhos”, onde se diz da génese de Jesus Cristo: “O seu pai era duas pessoas - / Um velho chamado José, que era carpinteiro/ E que não era pai dele;/ E o outro pai era uma pomba estúpida/ A única pomba feia do mundo/ Porque não era do mundo nem era pomba./ E a sua mãe não tinha amado antes de o ter./ Não era mulher: era uma mala/ Em que ele tinha vindo do céu (…)” Podes enfileirar nessa tradição cultural e extraíres conclusões humorísticas para a situação presente, em que tanto se tem enaltecido – e bem - os direitos naturais dos pais afectivos sobre os frios direitos legais dos pais biológicos. Lembra-te, porém, do caso das caricaturas de Maomé. A barulheira cheia de ira divina que elas provocaram no mundo islâmico! E também na Europa, repleta de tradições de crítica à Religião, aos dignitários da Igreja, às hierarquias celestes, enfim às figuras do sagrado – uma crítica que, desembocando muitas vezes abertamente na blasfémia, já ninguém parecia ousar pôr em causa – houve muitas vozes contra as referidas caricaturas do Profeta, não só solidarizando-se com as “ofensas” aos povos islâmicos, como também predispondo-se para cercear a liberdade de expressão, de uma forma geral, no campo religioso, tornando intangível à crítica aquilo que constituiria o reduto do sagrado em qualquer religião.
Ora, não me admira nada que, um dia qualquer, neste mundo em que as intolerâncias progridem a vários níveis, apareça a União Europeia a dizer que é de toda a conveniência dos Estados adoptarem leis em que seja proibido atacar as figuras sagradas de qualquer religião e os pontos de fé das várias confissões religiosas. Como no caso do tabaco, salvas as devidas proporções. Fumo, daqui para diante, só o das chaminés das fábricas, dos escapes dos veículos motorizados e, evidentemente, do incenso. Já pensaste em que, se acenderes um charuto poucos minutos antes do fim do ano, vais ter que o apagar exactamente ao bater da última badalada da meia-noite? Se o mantiveres aceso, podes ter à perna a polícia, não te esqueças. Por isso, meu caro amigo, vai escrevendo livremente sobre S. José, a Virgem e o Menino, enquanto te não levarem, deveras, isso a mal.
Um cordial abraço e votos de Bom Ano.

24 dezembro 2007

 

BCP, ou a anedota do capitalismo português

O capitalismo português, ao contrário de outros mais antigos, é simplesmente anedótico.

 

O Natal na companhia de Jorge de Sena

NATAL DE 1972

Neste comércio festivo que há dois mil anos quase
perdura mal cobrindo remendadamente
o solstício do Inverno e os deuses sempre vivos
de cuja falsa morte o mundo paga em crimes,
como em vileza humana, o medo que escolheu
quando ao claror da aurora rósea e livre
de viver como os deuses e com eles
preferiu a lei e a ordem projectadas
na sombra em sombras da caverna obscura
e desejou o mal em preço de ser-se homem —
tudo o que em milhares de anos é tribal
congrega-se feliz num doce rebolar-se
da traição de que fomos contra a vida.
Tão vil que levou séculos a inventar
um deus assassinado para desculpá-la,
e fez dele o comércio das famílias
que cortam no peru as raivas de existirem,
beijando-se visguentas, comovidas,
tal como têm babado os pés dos deuses,
ah não eles mesmos mas imagens vãs
que não resplendam da grandeza humana.
Alguma vez teremos o dinheiro
para comprar de novo o Paraíso,
em vez de prendas para o sapatinho?
O Paraíso aqui — aquele que venderam
no começar do mundo. E que nos trocam
por outros no futuro ou nos aléns,
agora, aqui, aberto a todos, claro
- um sol sem fim nos bosques ou nas praias,
uma nudez sem morte nos corpos sem alma.

Jorge de Sena

 

É Natal, ninguém leva a mal

Bem vistas as coisas, o Natal, momento nuclear da nossa civilização, é arrasador para nós, pais biológicos: São José foi apenas pai afectivo (o pai biológico, se assim o poderemos chamar, terá sido o Espírito Santo); Nossa Senhora foi afinal uma mãe de aluguer, por escolha divina; o Menino Jesus, o mais incensado dos bebés, foi afinal criado por uma família afectiva, com o sucesso que sabemos.
Que podemos nós, pobres pais biológicos, alguns de nós carregados de filhos, fazer para melhorar a nossa imagem? Não será talvez melhor abandonarmos os nossos filhos biológicos, triste produto da luxúria ou mesmo do acaso, e reconvertermo-nos em pais afectivos dos filhos dos outros?

21 dezembro 2007

 

estilhaços de uma decisão

Seria importante que a decisão do Tribunal Constitucional que se pronunciou «pela inconstitucionalidade da norma do artigo 2º, n.º 3, do Decreto da Assembleia da República n.º 173/X, na parte em que se refere aos juízes dos tribunais judiciais (e, consequencialmente, das normas dos artigos 10º, n.º 2, e 68º, n.º 2), por violação do artigo 215º, n.º 1, da Constituição da República» provocasse o debate sobre a necessidade de colocar os Tribunais no lugar constitucional que lhes é devido, como órgão de soberania.

A independência e a imparcialidade dos Tribunais têm um conteúdo constitucionalmente garantido que passa necessariamente pelo Estatuto de quem exerce as funções jurisdicionais.

Porque a tutela das garantias dos cidadãos não está, nem pode estar, sujeita às contingências das maiorias.


 

Algo está podre.


Intriga-me a leviandade com se usa e abusa de certas palavras. É certo que, frequentemente, um tal abuso se mostra inócuo: umas vezes limita-se a servir a bandeira da pura retória inane; noutras, destina-se mais propriamente a ajaezar com enfeites de cultura postiça o que, por rectas contas, não é mais do que revelação de ignorância sobre este ou aquele fenómeno; noutras ainda, como não raro sucede, é sintoma do mais primário relativismo moral.

Em outras espécies, porém, o referido abuso pode esconder realidades bem mais preocupantes e substanciais. Penso, claro está, no pomposo anúncio de que os membros do assim chamado Gang da Ribeira estariam incursos no crime de terrorismo. Quando ouvi esta notícia cheirou-me de imediato a esturro. Não faço ideia do que aquela rapaziada – anos a fio “teúda” e “manteúda” nas suas malfeitorias por desgraçado desinvestimento na prevenção criminal – terá feito. Por outro lado, obtemperei, os jornalistas e mesmos os polícias tem coisas bem mais importantes que cuidar do que reflectir sobre o facto de que nem pela circunstância de um determinado comportamento ter cabimento na letra de uma norma incriminadora se deve, sem mais, concluir pela verificação substancial do crime nela previsto. Coisas como necessidade de a interpretação da lei penal se efectuar por referência aos valores ou interesses protegidos pela incriminação ou ainda a “redução teleológica” dos tipos criminais por via interpretativa, quando necessária for, são cuidados demasiado filigrânicos para serem considerados por não especialistas e, de resto, impróprios para consumo imediato do povoléu ávido de acção. Isto é tudo compreensível.

Mas, depois, já de pé mais atrás, comecei a pensar que talvez a minha primeira e abrupta impressão estivesse algo desfocada ou mesmo eivada de uma dose não despicienda de ingenuidade. Pensei nas tricas corporativo-regionalistas que vêm contumazmente infectando o bom andamento das investigações criminais. Com este pano de fundo, a coisa tornou-se ainda mais clara quando me apercebi que a busca no domicílio dos suspeitos foi levada a cabo num Domingo e acompanhada in loco por uma cadeia de televisão, que nos fez o obséquio de prodigalizar imagens as mais instrutivas. Perguntei-me pelo segredo de justiça (como é que a televisão sabia da busca?), pela consideração elementar da privacidade dos que ali viviam (não apenas os suspeitos mas muitas outras pessoas) e por quem teria autorizado ou tolerado tal desmando. Confuso ainda, concluí ao menos pela ironia de se ter censurado – e bem – aos ditos rapazes o uso de métodos próprios do far west (a extorsão, a agressão ou mesmo o homicídio) e de, ao mesmo tempo, se reagir contra esses métodos de modo que igualmente fica a dever, em muito, salvaguardadas as distâncias devidas, à lisura de actuação que se deve presumir e exigir a órgãos do Estado. As preocupações – e as certezas de que algo vai podre neste Reino – adensaram-se quando verifiquei que não só o crime de terrorismo terá ficado por terra em relação aos suspeitos presos preventivamente como alguns dos perigosos terroristas foram restituídos à liberdade sujeitos a termo de identidade e residência! Suponho e estou mesmo certo de que quem decidiu assim o fez em plena consciência e em escrupuloso respeito pela lei (e, de resto, por motivos óbvios, nunca poderia ser minha intenção apreciar um tal ponto). Não fosse por outras razões – e será, decerto – seria desconcertante que tão perigosos delinquentes (como se tem por definição de presumir, tratando-se de terroristas) fossem restituídos às ruas com alvará para espalhar o terror (não se deve olvidar que esta é, precisamente, a especialidade dos terroristas).

Ficou no ar, portanto, a ideia de que a imputação de terrorismo aos citados suspeitos, tratando-se de imputação gravíssima, partisse de onde partisse, terá ficado a dever não pouco à substanciação respectiva. O caso não é virgem, entre nós (lembram-se do caso da Guarda, com Abílio Curto?). Então que razões terá servido a citada overcharging? Sim, que razões, pois uma coisa é certa: a chamada sobre-imputação em matéria penal não é um acaso – ela serve sempre certas funções. Noutras latitudes o fenómeno está amplamente estudado, quanto à sua origem, funções e efeitos, entre os quais pontifica o relevante contributo para a perda de confiança da comunidade no Sistema Penal. Entre nós, não conheço quem lhe dedicasse atenção. O que não se deverá, certamente, à falta de matéria-prima.

19 dezembro 2007

 

Justiça e política

JULGAR, a revista da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, promove um DEBATE SOBRE JURISDIÇÃO E POLÍTICA, a transmitir em directo pela RTPN, hoje, 19 de Dezembro às 22h30m, com a presença de Paulo Castro Rangel, Professor Universitário, Carlos Pinto de Abreu, Advogado
José Mouraz Lopes, Juiz e director da Julgar e António Cluny, Procurador Geral Adjunto no Tribunal de Contas
Moderação: Cristina Esteves


14 dezembro 2007

 

Faz-se luz!


O estado norte-americano de Nova Jersey " pôs termo ao único gesto absoluto que o homem pode fazer, e não deve nunca fazer. Ao gesto que o transforma num grotesco Deus de arremedo que, quando fulmina, se fulmina." (Torga, 1967).

13 dezembro 2007

 

Tratado da União: uma nova «equipa conjunta»?

Um novo e breve pequeno apontamento para salientar dois aspectos que implicam (grandes?) alterações, nem sempre positivas, no modo de realizar a justiça na Europa, no futuro.

A CARTA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS, que não ficou incluída no novo tratado, mas antes em Protocolo anexo (com as excepções ao Reino Unido e Polónia).

A instituição, a partir da EUROJUST, da Procuradoria Europeia com competência para «investigar, processar judicialmente e levar a julgamento, eventualmente em articulação com a Europol, os autores e cúmplices das infracções lesivas dos interesses financeiros da União» - artigo 69º E.

Procuradoria Europeia e Europol? Será uma «equipa» conjunta?

Espera-se que o que era um bom princípio, desde o CORPUS IURIS, não provoque estilhaços na autonomia do Ministério Público.


10 dezembro 2007

 

O novo fardo do homem branco

Khadafi foi a estrela do evento: todas as extravagâncias lhe foram permitidas e perdoadas, agora que ele é um respeitável homem de negócios (aliás foi só disso que ele veio tratar.)
Os outros africanos foram mais ou menos encarados como pedintes ou como cafres, a quem foi lida a cartilha dos "direitos humanos", como anteriormente aos seus antepassados fora imposto o catecismo da evangelização e da civilização.
Este é o novo "fardo do homem branco": pregar os direitos humanos aos pretos, amarelos, etc., para que eles se convençam da superioridade dos nossos valores, para mais facilmente se abrirem à nossa cultura, para mais rapidamente aderirem aos valores da propriedade privada, do mercado e da livre circulação de mercadorias (que não de pessoas, essas são para ficar lá!) e assim abrirem as suas economias, as suas riquezas, à voragem e à voracidade da globalização neoliberal.
Custa tanto pregar a gente rude e incrédula!

 

Ainda a negação


Há cerca de dois meses disse aqui, a propósito da opinião expressa por um conhecido articulista sobre os, assim graficamente chamados, “crimes de ódio”, que por terras de Espanha o bloco normativo penal anti-xenófobo era susceptível de gerar, porventura mais do que em outras latitudes, algumas preocupações pelo seu desenho radicalmente anti-liberal. Uma das razões que me levou a alvitrar daquele jeito é o modo como naquele país se incriminou a negação de certos crimes contra a comunidade internacional (v. g., genocídio) em termos inclusivamente mais abertos do que sucede na Alemanha, pais onde a incriminação correspondente (mesmo a da, assim denominada, Auschwitzlüge “simples”) exige, para a respectiva relevância, que seja adequada em concreto para perturbar a paz pública. Ou seja, o legislador espanhol foi, nesta matéria (como em geral nas que respeitam ao direito penal anti-xenófobo) mais papista do que o próprio Papa. Se na Alemanha, na Áustria e mesmo em França (não esqueçamos Vichy) incriminações como aquela se mostram, ao menos, à luz da História, compreensíveis, já em Espanha, como de resto a esmagadora maioria da doutrina penal daquele país sempre sustentou, a incriminação do negacionismo nos moldes que consagrados no respectivo CP (artigo 607.º/2: “La difusion por qualquer medio de ideias o doctrinas que nieguen o justifiquem los delitos tipificados en el apartado anterior de este artículo [genocídio], o pretendan la rehabilitación de regímenes o instituiciones que amparem práticas generadoras de los mismos, se castigará com la pena de prisión de uno a dos años.”), a mais de conflituar gravemente com a liberdade de expressão e de menoscabar o princípio da legalidade penal, na vertente da determinação da matéria proibida, ela mostra-se pura e simplesmente desnecessária (a não ser, é claro, que se pretenda justificá-la à luz dos desmandos dos Reis Católicos) e, como tal, ilegítima. É, de resto, um sintoma de uma deriva de um direito penal “do facto” para um direito penal “de autor”, isto é, um direito penal que persegue as pessoas mais por aquilo que são (ainda que não raro, efectivamente, sejam coisa muito ruim, como é o caso dos cabeças-rapadas, por fora e por dentro) e não tanto pelos danos que resultam daquilo que fazem.

Dito isto, e nem por acaso, o Tribunal Constitucional de Espanha, em 7 de Novembro de 2007, no caso Varela, também conhecido como o caso da Libreria Europa, que começou com uma decisão do 3.º Juzgado Penal de Barcelona, considerou desconforme com a Constituição espanhola a norma acima transcrita na parte em que incrimina a mera negação do genocídio, concluindo que na parte em que a incriminação recai sobre a justificação de crimes daquele jaez não fere a Lei Fundamental (a constitucionalidade do segundo segmento da norma não foi questionada). Votaram pela maioria 8 juízes e de vencido 4, todos pugnando pela declaração de constitucionalidade de ambos os comportamentos (negação e justificação). Uma primeira observação é a distinta fundamentação do TC Espanhol e do TC Alemão, que chamado a pronunciar-se, em 1994, sobre um caso de negacionismo, concluiu que a negação de um facto como o Holocausto (ao contrário da tendência verificável nos demais países, na Alemanha a negação penalmente relevante é apenas a de crimes cometidos sob o regime nacional-socialista) não está protegida pela liberdade de expressão, na medida em que não contribui para a formação de opinião constitucionalmente protegida. Alguma doutrina deste país, parece, por outro lado, ao contrário do TC espanhol, mais preocupada com a incriminação de uma opinião (a justificação, do direito espanhol), em termos de ferir o direito à liberdade de expressão, do que com a negação de um facto ainda que quase (há sempre os negacionistas…) consensual.

Seja como for, vale a pena ler a decisão, embora em meu modo de ver seja algo artificial a distinção que o Tribunal faz entre a negação e a justificação do genocídio, excluindo a última da protecção do artigo 20.º da Constituição espanhola. E fá-lo, ainda assim, em termos de reinterpretar a norma (de modo a “salvá-la” do juízo de inconstitucionalidade) de modo a reconduzi-la, no fim de contas, a um crime de provocação (ainda que “indirecta”, nas palavras do acórdão) ao ódio racial, hoc sensu, xenófobo, que o próprio CP espanhol já pune no seu artigo 510.º De resto, uma lição do citado acórdão que é, para nós, portugueses, de considerar é a de que, por rectas contas, a interpretação conforme do TC espanhol (cf. ponto 9 da fundamentação) reconduz o preceito em causa, mais coisa menos coisa, à formulação que o nosso legislador deu ao artigo 240.º do nosso CP – legislador que, precisamente, prudente quanto possível, não quis desvincular a negação dos crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade do encorajamento violento à discriminação de minorias.

A Espanha – a despeito da peremptória alegação em contrário do relator do acórdão (cf. ponto 4) – caminha a passos lagos para uma "democracia militante", para uma democracia que mais do que se impor ao respeito pretende coagir os cidadãos a uma virtuosa adesão à ordem legal e constitucional. Se dúvida houvesse, cito apenas a relativamente recente lei que regula a dissolução de partidos políticos anti-democráticos e que trata, para efeitos dessa dissolução, a recusa de condenação de atentados terroristas como um apoio ao terrorismo (!). Incriminações como a do negacionismo "puro e simples" devem ser lidas, segundo creio, no contexto de uma tal forma de ver a democracia. Para mim, julgo que incriminações como a do nosso artigo 240.º, postando-se no limite do criminalmente legítimo, são um modo razoável de encontrar uma via per mezzo entre a fé inabalável de Thomas Jefferson na Razão para combater os inimigos da Constituição e a denegação da liberdade aos inimigos da liberdade de Saint-Just. Entre a ingenuidade e o autoritarismo há sempre um caminho.
Com correcções em 11.12.2007

07 dezembro 2007

 

Privatização da justiça?

Numa coisa me parece ter Marinho razão: a política de desjudicialização que o Governo pretende seguir.
Porque uma coisa é desjudicializar todas as causas onde não existam litígios. Isso está correcto e já não é novo, começou com a desjudicialização dos divórcios por mútuo consentimento, etc. O Conselho da Europa tinha aliás aprovados recomendações nesse sentido.
Mas o que o Governo pretende e expõe na Resolução nº 172/2007, publicada no DR de 6.11.2007, é desjudicializar conflitos, abrindo a possibilidade da sua resolução pela mediação, pela via arbitral ou mesmo administrativa!
É evidente a intenção de estreitar as vias de acesso à justiça verdadeira, a dos tribunais, com o que isso implica de agravamento das desigualdades, sabido como é que o processo judicial é o que melhor assegura a igualdade das partes. Por alguma razão o art. 20º assegura a todos (a TODOS!) o acesso aos tribunais!
Desjudicializar está afinal em convergência com as demais políticas governativas de privatização, de secundarização e recuo do papel de intervenção do Estado na sociedade.

 

A luta de classes na Ordem dos Advogados

Marinho tem um esilo inconfundível, misto de Jardim e Hugo Chávez, e assim ganhou as eleições para uma Ordem até agora sempre nas mãos da "aristocracia". Ele representa o oposto de Júdice: não tem verniz (agora anda à pressa a envernizar-se, mas é pior a emenda que o soneto), tem um escritório individual, na província, tem uma advocacia generalista, tem de apoveitar tudo o que lhe bate à porta; Júdice é um dos grandes barões da advocacia, cabeça de cartaz de uma sociedade de advogados que é porventura a mais rica, a mais aristocrática da advocacia actual.
A profissão de advogado mudou muito nos últimos anos, como se sabe, agora há advogados patrões de outros advogados, há claramente interesses distintos numa classe profissional que ainda há poucos anos era bastante homogénea.
Marinho representa os "sans-cullotes", que pela primeira vez, aproveitando a sua maioria numérica na Ordem, elegeram um deles para lutar pelos seus interesses e contra os dos grandes. Enfim: a luta de classes na Ordem dos Advogados!

03 dezembro 2007

 

A greve

Fez-se a greve geral da função pública, convocada pelas duas centrais sindicais, incluindo, portanto, a UGT, criada, em tempos que já lá vão, na esfera ideológica do partido do governo. Deu-se por ela, pela greve que foi orquestrada pelas duas centrais sindicais? Ora, aí é que está o problema, saber se a greve existiu ou não. Para o governo, não houve greve nenhuma, ou praticamente não houve. Para os sindicatos, sim; a greve foi um êxito.
Vejamos os números: segundo o governo, a greve só teve 20% de aderentes, um número tão ridículo, tão marginal, que não se deu por ela. Quem ouviu o representante do governo falar nos meios de comunicação social (pelo menos, na Antena 1), todas as escolas, todos os hospitais, todos os serviços de saúde, todas as repartições públicas trabalharam em pleno. Quer dizer: trabalharam praticamente em pleno, visto que os trabalhadores que aderiram à greve foram tão escassos, que não se deu minimamente pela sua greve. A greve foi, portanto, um fracasso. Já segundo os sindicatos, a greve andou pelos 80%. Ou seja, foi uma greve robusta, que mostrou a pujança dos sindicatos e o grande descontentamento dos trabalhadores da função pública.
Deu-se pela greve? É, evidentemente, uma questão de ponto de vista. As greves não são factos; são apenas questões de números, e os números são, presentemente, apenas questões de guerra ideológica entre o governo e os sindicatos.
Alguns jornalistas parece que quiseram asseverar-se com os seus próprios olhos e mostrar através das câmaras da TV, que são os olhos do público, alguns dos serviços onde supostamente se teria feito greve, mas não puderam entrar e, assim, não puderam mostrar os pressupostos efeitos da greve. Tiveram que socorrer-se de vias indirectas, como cafés frequentados pelos trabalhadores em tempo de serviço. Se cheios, seriam indicativos do inêxito da greve; se vazios ou meio cheios, seriam indicativos do êxito semi-êxito da mesma.
Mas para quê a teimosia em mostrar os locais de trabalho? A questão da greve, porque não é um facto, não carece de acesso à fonte de informação. Sendo uma guerra ideológica, basta que se tenha acesso ao belicoso confronto dos números.

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