31 julho 2019

 

As maiorias absolutas


Na verdade, é flagrante o desejo dos dirigentes máximos do PS de se desembaraçarem dos partidos de esquerda que têm dado suporte ao governo. A fórmula da “geringonça” era, evidentemente, para ser transitória, obedecendo a imperativos de táctica na conjuntura em que surgiu. Porém, foi, na minha opinião, um dos melhores governos que tivemos em Portugal. É incómodo partilhar o poder e ter de negociar com outros partidos? Pois é, mas a verdadeira democracia exige esse esforço permanente. O PS com maioria absoluta ganha em arrogância o que perde em capacidade democrática. As maiorias absolutas têm sempre um défice de democracia.

 

Sérgio Moro




Sérgio Moro está a mostrar a sua verdadeira face, servindo-se do cargo de ministro da Justiça para fazer sumir as provas que têm sido dadas a lume pelo site Intercept e que põem em causa a sua conduta no processo de Lula da Silva, nomeadamente por colaborar com o Ministério Público, fazendo-lhe sugestões, fornecendo-lhe pistas, dando-lhe indicações e mesmo instruções, revelando assim um comportamento parcial, interessado e a todos os títulos reprovável. Outras revelações têm sido feitas que denotam, para além de parcialidade, uma instrumentalização do processo no sentido de conseguir determinados objectivos políticos.
Ora, a destruição dessas provas que têm sido dadas a lume (porque se trata de uma verdadeira destruição) parece que vai ser operada por meio da emissão de uma medida legal adequada que as faria desaparecer com o fundamento de as mesmas terem sido obtidas ilegalmente. Curiosa interpretação esta, que com fundamento na ilegalidade do comportamento do jornalista, por invasão da esfera da privacidade de autoridades públicas em funções, vai fazer desaparecer a ilegalidade muito mais grave e de inegável relevância pública, porque ofensiva, desde logo, do princípio estruturante do Estado de Direito democrático, do comportamento do juiz do processo e actualmente ministro da Justiça, que assim, também, incorre num abuso de poder com a agravante de ser para resolver um caso que lhe diz respeito.
Este comportamento revela o vezo totalitário do actual ministro da Justiça do Brasil e põe seriamente em causa a sua verticalidade ética.

26 julho 2019

 

Retificação parcial

Tenho que penitenciar-me por um erro evidente que cometi no último texto aqui publicado. Na verdade, defendendo a não punibilidade das opiniões emitidas por Fátima Bonifácio, e a não integração das mesmas no art. 240º, nº 2, b), do CP, citei uma versão do preceito anterior à atual, introduzida pela Lei nº 94/2017, de 23-8, que eliminou o elemento típico "com a intenção de incitar à discriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar".
É óbvia a intenção da citada lei de alargar o âmbito da punibilidade, inserindo-se numa onda criminalizadora a nível global para combater o "negacionismo" e sobretudo o proselitismo muçulmano, inimigo figadal da "Cristandade".
Contudo, a criminalização de condutas não é arbitrária, tem de visar a proteção de bens jurídicos, como dispõe o art. 40º, nº 1, do CP, e indiretamente impõe o nº 2 do art. 18º da Constituição.
E não constitui bem jurídico a mera enunciação ou divulgação de posições ideológicas, ainda que censuráveis, por serem contrárias aos princípios constitucionais.
Não havendo apelo expresso à ação nem perigo concreto de que algum ato contrário ao direito se siga à assunção ideológica, esta não pode subsumir-se ao art, 240º do CP, mesmo na versão atual.
Os adeptos de um direito penal ao serviço de "causas" desconhecem a natureza residual do direito penal num Estado de Direito democrático.
Sobre esta matéria vale a pena reler Figueiredo Dias, "Direito Penal", vol. I, 2ª ed., especialmente pp. 125.

15 julho 2019

 

Criminalizar as opiniões?

Há aí uma certa esquerda que nutre uma paixão intensa pelo direito penal e uma confiança ilimitada na eficácia da sua ação nos comportamentos. A violência doméstica e os abusos sexuais são o terreno mais frequente de manifestação desse sentimento.
Agora, é a propósito do desgraçado artigo de MFB que se exorta à intervenção penal (ver artigo "Contra a banalização do racismo", "Público" de 13.7, p. 4), citando-se inclusivamente a al. b) do nº 2 do art. 240º do CP, quando pune "difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional". Omitiu-se, porém, a parte final do texto, que é a seguinte:
"com a intenção de incitar à descriminação racial, religiosa ou sexual, ou de a encorajar"...
A criminalização das meras opiniões, mesmo marginais e reprováveis segundo o sentimento da maioria, ou mesmo contra o sentido do texto constitucional, sem apelo a comportamentos ilegais, seria um ato claramente contrário ao princípio do Estado de Direito democrático.

14 julho 2019

 

O racismoo de FB

Batam na Fátima Bonifácio, que ela merece, mas não a levem para o tribunal, que é uma tontice. Aquilo que ela escreveu, por muito abjecto que seja, releva da opinião, como o reconheceu o próprio Louçã, na SIC Notícias. A liberdade de opinião pára onde começa a prática de crime e o que ela escreveu, informado por um racismo descarado, não chega para preencher o tipo legal de crime de incitamento ao ódio ou violência racial.

12 julho 2019

 

"Ainda cara, ainda lenta": ainda o mesmo discurso?

Fui ler com interesse o relatório "Menos reformas, melhores políticas" do ISCTE, iniciativa muito de louvar. Infelizmente deparei, no referente à Justiça, com o discurso estereotipado e monocórdico que a dra. Conceição Gomes vem produzindo há anos. Ela ainda não percebeu que para a justiça deixar de ser cara e lenta são precisas reformas que não estão nas mãos do "sistema judicial", mas sim do poder  político (AR e Governo)? E que o aprofundamento da eficiência dos tribunais e da qualidade da justiça não depende apenas da melhoria da formação dos "atores judiciais", como ela propõe? Ainda não compreendeu que esta desresponsabilização do poder político a faz passar ao lado das verdadeiras soluções para os problemas que "denuncia"?


09 julho 2019

 

Retomando um tema antigo






A questão da composição dos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público é recorrente. Volta de tempos a tempos. Há vinte, vinte e poucos anos, debateu-se o assunto a propósito da alteração da Constituição que acabou com a obrigatoriedade de um dos dois membros designados pelo presidente da República ser um juiz, o que possibilitou a existência no Conselho Superior da Magistratura de uma maioria de membros não oriundos da judicatura.
Sempre me preocupei muito com a questão da legitimação democrática do poder judicial, o único poder do Estado que, na tradição europeia continental, não é legitimado pelo sufrágio popular, sendo, todavia, um poder de grandíssima incidência na vida e no património dos cidadãos. Por isso, sempre vi com bons olhos medidas que reforçassem a referida legitimação democrática. É que não é um curso de direito e uma formação específica numa escola de magistratura, aliadas a uma pressuposta seriedade de base, que conferem essa legitimidade. Deste modo, defendi acaloradamente a solução encontrada para os juízes e, de caminho, toquei também no Conselho Superior do Ministério Público. Na altura, eu era Procurador-Geral Adjunto. Ninguém me fez a mais pequena referência. E se fosse hoje? Fiquei espantado quando soube que a MEDEL, associação europeia de magistrados para a democracia e as liberdades, em cujos prolegómenos, em Março de 1985, participei em Bruxelas, defende uma maioria de membros do interior das próprias magistraturas na composição dos conselhos. Mas será que as coisas evoluíram de tal modo, que se imponha uma revisão da posição que então defendi? Ou eu já via mal na altura?
Coloco aqui o artigo que, há duas dezenas de anos, escrevi na minha coluna do Jornal de Notícias e que deveria fazer parte de uma colectânea de textos sobre justiça e comunicação social que eu teria publicado, se tivesse encontrado uma editora.


O poder dos juízes
Nunca como agora a batalha dos juízes pelo que consideram ser o seu estatuto indeclinável adquiriu tanta ressonância pública. Tal não significa, porém, que esse extra­vasamento voluntário e tão enquis­tado, por força de uma reacção de grupo que vai quase ao ponto de pôr em crise as instituições, corres­ponda a um acolhimento favorável por parte dos cidadãos em geral e, muito menos, a posições solidárias fora do estrito âmbito profissional em que a luta tem sido travada. Pro­vavelmente, os efeitos serão exacta­mente ao contrário dos pretendidos, se é que se pensou neles de cabeça fria, e não obedecendo pura e sim­plesmente ao instinto de autodefesa.
O que motivou esta guerra (se re­corro a esta linguagem bélica é tra­duzindo a interpretação dos me­dia, que muito têm falado do "fogo dos juízes sobre a classe política") foi a alteração, em sede de revisão da Constituição, da norma da Lei Fun­damentai que versa a composição do Conselho Superior da Magistratura. Essa alteração veio a traduzir-se no quase imperceptível apagamento de duas ou três palavras: podendo o presidente da República designar ao Conselho dois vogais, um deles tinha que ser obrigatoriamente juiz. Ago­ra, não se diz nada sobre essa obriga­toriedade, pelo que os tais dois vo­gais são livremente designados pelo presidente da República, podendo ser dois membros estranhos à magistratura judicial.
O barulho que a dita alteração está a provocar tem uma significa­ção que é o verdadeiro pomo da dis­córdia: o Conselho pode vir a ser constituído por uma maioria (mais um) de membros não juízes. Se o presidente da República designar dois membros não juízes, a juntar aos sete eleitos pela Assembleia da República, serão nove não juízes para oito oriundos da judicatura.
Ora, os juízes, na sua maioria, en­quadrados pela sua associação sindi­cal, têm vindo a repudiar a falada alteração com o argumento de que está em causa a sua independência e o princípio da separação de pode­res, abrindo-se a via para o controlo político do poder judicial.
A meu ver, nada disto ocorre e, aliás, não serei o único magistrado a entender desse modo: veja-se, por exemplo, a opinião do Dr. Mário Belo Morgado, juiz de círculo do Tribunal de Vila Franca de Xira, em artigo muito contundente publicado no "Público" do passado dia 10 - «A "teoria do granizo" adaptada aos tribunais» - e a opinião do procura­dor-geral da República, em entre­vista dada ao mesmo jornal no pas­sado dia 16, apesar de se confessar solidário com a posição dos juízes.
Vejamos: a independência do po­der judicial vem a traduzir-se em os juízes decidirem livremente, obede­cendo apenas aos ditames da sua consciência e aos imperativos da lei, sem obediência a qualquer hierar­quia, mesmo de juízes, ressalvado o caso de recurso para tribunal superi­or e sem qualquer interferência, no­meadamente do poder político.
Ora, o Conselho Superior da Ma­gistratura é um órgão de gestão e disciplina, competindo-lhe, funda­mentalmente, nomear, transferir, exonerar, inspeccionar os magistra­dos judiciais e exercer a acção disci­plinar. A nomeação, transferência e exoneração dependem de critérios clara e precisamente estabelecidos na lei, podendo, em caso de viola­ção, o acto ser impugnado, inclusive por recurso para o Supremo Tribu­nal de Justiça: a inspecção, destinan­do-se a apurar a qualidade técnica e o nível de cumprimento da função pelo magistrado, é atribuída a juízes de grau superior, nomeados pelo Conselho em comissão de serviço, e só funciona em relação aos juízes co­locados na 1.ª instância, não obstante o Conselho, na sequência de re­clamações, poder mandar verificar o trabalho de juízes colocados nos tri­bunais superiores, o que releva mais da acção disciplinar do que do mérito do magistrado: quanto à acção disciplinar, ela só se exerce, obvia­mente, em relação a faltas disciplina­res cometidas pelos juízes e não no que toca ao exercício concreto da função de decidir. A independência desta permanece intangível.
Por outro lado, a maior parte das funções assinaladas é exercida pelo conselho permanente (restrito), asse­gurado sempre por uma maioria dos juízes, reservando-se para o plenário a decisão dos recursos hierárquicos interpostos das decisões daquele.
Acresce que os membros não juízes - os eleitos pela Assembleia da Re­pública e os indicados pelo presidente da República - não ficam vincula­dos ao órgão político que os elegeu ou nomeou, nem, muito menos, aos partidos políticos, agindo com um es­tatuto legalmente assegurado de in­dependência e não de comissários políticos. A isto se junta o facto de as individualidades indicadas pelo presi­dente da República não serem neces­sariamente políticos, mas, fundamen­talmente, cidadãos de reconhecido mérito. E, em última instância, a As­sembleia da República e o presidente da República são órgãos políticos de soberania, mas de uma natureza mui­to diferente do Executivo, quer pelas funções, quer pela base plural mais diversificada formada pelas maiorias que os elegeram.
Neste contexto complexo, onde se vislumbra, ainda que por arremedo, a subordinação do poder judicial ao po­der político? O que é que justifica a vi­são catastrofista de uma iminência de controlo político do poder judicial?
Punhamos os olhos no Tribunal Constitucional: os seus juízes são praticamente todos eleitos, por mai­oria qualificada, pela Assembleia da República. Diz-se, por vezes, que são juízes políticos, para os menori­zar. No entanto, é patente o grau de independência, de elevada qualifica­ção técnica e de seriedade com que, de modo geral, exercem a função. Cavaco Silva, quando primeiro-mi­nistro, não os poupou ao seu famoso qualificativo de “forças de blo­queio”. O carácter ideológico que, por vezes, se manifesta nas suas de­cisões acontece em certos casos mais extremados, em que é patente a divisão em blocos. Mas o Tribunal Constitucional é um tribunal com uma jurisdição de vertente predomi­nantemente política e, de qualquer modo, nada de semelhante se passa com os chamados tribunais comuns.
A separação de poderes, que tam­bém se aponta como estando em ris­co com a referida alteração constitu­cional, não tem ponta por onde se lhe pegue. O cerne do poder judicial, como se viu, não é minimamente be­liscado na sua independência relati­vamente aos outros poderes com a referida alteração constitucional, que, como referiu Miguel de Sousa Tavares, é mais simbólica do que real e, provavelmente, para não ser exercida nunca. Mas, já agora, vem a propósito perguntar por que é que a separação de poderes deve ser tão exacerbadamente defendida, quando se trata de pretensas imiscuições no poder judicial e não se observa o mesmo princípio relativamente a in­tromissões dos juízes no poder legislativo; como tantas vezes acontece, a propó­sito de leis cujo figurino não compete aos magistrados traçar.
Vejamos o autogoverno. O autogoverno das magistraturas pode ser en­tendido (nem todos os autores assim o entendem) como condição para se garantir a independência do poder judicial. Mas será que o autogoverno significa uma autogestão completa, uma supremacia de magistrados so­bre membros não magistrados, sobre­tudo nas matérias atrás referidas e com o estatuto que é assinalado a to­dos os membros do Conselho?
O prof. Figueiredo Dias, que não é suspeito de atraiçoar o espírito de in­dependência que deve nortear o po­der judicial, há dois anos (Revista de Legislação e Jurisprudência, n.ºs 3849,3850 e 3851), defendeu sem re­buço que os Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público nem membros eleitos corporativa­mente deviam ter. Fossem eles ma­gistrados ou não magistrados, deveri­am ser eleitos por maioria qualificada pela Assembleia da República, tal como sucede em Espanha, e, mesmo assim, os magistrados em posição de minoria. Ora, se se fosse para uma solução dessas, a independência dos tribunais iria por água abaixo?
Por tudo isto, entendo que a reac­ção a que temos vindo a assistir é desproporcionada e injustificável. Mesmo com o pretexto suplementar do discurso do dr. Almeida Santos, cujas palavras não me parecem as­sim desassisadas, nem proferidas fora de um direito de crítica, nem desgarradas de um certo sentimento dominante em determinados meios.
Ora, isto não ajuda a luta dos juízes, que, de resto, não pode aspirar a mais do que à negociação, na impossibili­dade de fazer uma nova e extraordi­nária revisão constitucional. Como, também, o seu discurso, por vezes de pendor maniqueísta e redutor, não encontrando eco favorável na opini­ão pública, divorciada dos aconteci­mentos ou dominantemente hostil em certas camadas cultas (basta ler a imprensa e a autêntica onda de arti­gos que o caso fez surgir), só pode conduzir ao isolamento um tanto sui­cida. Mas o crescente interesse dos media pela temática em causa e, sobretudo, o alargamento de toma­das de posição no campo opinativo, alargamento esse também propiciado pela mediática auto-exposição dos magistrados, significa inevitavelmen­te que algo está a mudar, mas não no sentido dominante e fechado que aqueles veiculam.

(JN de 20/11/97)
des, em cujos prolegómenos, em Março de 1985, participei em Bruxelas, defende uma maioria de membros do interior das próprias magistraturas na composição dos conselhos. Mas será que as coisas evoluíram de tal modo, que se imponha uma revisão da posição que então defendi? Ou eu já via mal na altura?
Coloco aqui o artigo que, há duas dezenas de anos, escrevi na minha coluna do Jornal de Notícias e que deveria fazer parte de uma colectânea de textos sobre justiça e comunicação social que eu teria publicado, se tivesse encontrado uma editora.




 

Chega, senhora doutora!

O artigo de M. Fátima Bonifácio do passado sábado no "Público" suscitou alguma repulsa, com a qual me solidarizo completamente. Na verdade, e tirando as diatribes eleitorais do "Chega", que não chegaram a incomodar, não conheço no espaço público "respeitável" uma afirmação tão crua de racismo e xenofobia por parte de uma pessoa com estatuto universitário. Descaradamente, a dita senhora exclui da "civilização" as "tribos" bárbaras dos ciganos, africanos e muçulmanos, todos eles "inassimiláveis" pela nossa sociedade. Como é possível que o "Público", sempre orgulhoso dos seus créditos liberais, tenha aceitado divulgar teses tão tacanhas, tão incultas, tão despudoradamente contrárias aos princípios constitucionais que nos regem?

 

O acórdão do Tribunal de Justiça sobre o ST da Polónia (leitura aconselhável a Rui Rio)

No passado dia 24.6.2019, o TJ europeu publicou a decisão sobre a lei aprovada na Polónia que permitia ao PR daquele país escolher habilidosamente os juízes do ST: por um lado, estabelecendo a reforma antecipada dos juízes nomeados antes de 3.4.2018 (em que o poder estabelecido não tinha "confiança"), por outro lado, permitindo ao PR prorrogar a função judicial dos juízes para além da nova idade de reforma. Esta intervenção direta do PR na composição do ST, à margem do CSM, foi considerada contrária ao art. 19º, nº 1, 2º §, do TUE, que estabelece o princípio da tutela jurisdicional efetiva, que impõe por sua vez a independência dos órgãos jurisdicionais.
Uma decisão importante e de leitura aconselhável aos "reformistas" portugueses.

03 julho 2019

 

Salgueiro Maia



Salgueiro Maia faria ontem 75 anos, se fosse vivo. Para comemorar a passagem desse aniversário do seu nascimento, o canal 1 da TV transmitiu um documentário sobre a sua vida. Vi-o com todo o interesse. Foram 45 minutos bem passados, e mais que fossem, não choraria o tempo perdido, eu que raramente vejo televisão, para não me sentir pesaroso pela perda de tempo.
Salgueiro Maia é bem o símbolo da Revolução que, na época contemporânea, mudou o nosso destino. Uma revolução que se popularizou com a imagem de uma flor, de miríades de cravos espetados no cano das espingardas, mas que deveu a sua sorte à coragem, ao espírito intrépido, à vontade persistente e à disposição de sacrificar a própria vida de muitos jovens oficiais das Forças Armadas, em prol da libertação de todo um povo, sendo Salgueiro Maia uma encarnação perfeita daquelas qualidades.
Mais: Salgueiro Maia representa a pureza e a gratuitidade e até um certo sentido trágico do verdadeiro herói. Não quis honras nem privilégios, não quis distinções especiais nem cargos honoríficos, rejeitou protagonismos, regressou à singeleza da sua vida profissional e familiar, valorizou-se academicamente e, ao contrário de muito falso herói, foi remetido para funções pouco consentâneas com as suas brilhantes qualidades, a ponto de parecerem ou serem mesmo a expressão de má vontade ou perseguição por ter tido o papel que teve no “25 de Abril”. Por fim, teve a desdita de ter uma doença cancerosa que o levou à morte ainda muito jovem. No seu testamento especificou que queria ser sepultado em campa rasa.
Dele bem se poderia dizer com toda a propriedade que “morrem cedo os que os deuses amam”.

 

António Hespanha






Faleceu António Manuel Hespanha. Era um tipo bem disposto, cheiinho, alegre, inteligente, a estuar de vida, de olhos bem espetados no interlocutor e, sobretudo, um académico reputado. Lembro-me dele, recém-formado e já assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, de passo apressado pela Via Latina, a pasta na mão. Mas onde eu tive oportunidade de o conhecer não foi em Coimbra; foi em Lisboa, no pós-25 de Abril. Ele tinha sido nomeado Director-Geral do Ensino Superior, sendo ministro da Educação Eduardo Correia e Secretário de Estado Avelãs Nunes. Eu tinha acabado o 2.º ciclo de instrução em Mafra (atirador de Infantaria) e estava de licença à espera de colocação no Lumiar, já aspirante, na sequência de reclassificação para a especialidade que me era devida – a de Licenciado em Direito.
Alguém, sabendo da minha situação de licença, indicou o meu nome ao Secretário de Estado para fazer um inquérito aos Serviços Médico-Sociais Universitários de Lisboa, e o Secretário de Estado, após uma entrevista, nomeou-me. Esses serviços eram uma amostra de como funcionava a Administração no tempo da ditadura: um director todo-poderoso (um tal Bruto da Costa, que tinha sido professor da Faculdade de Medicina) e sua mulher, enfermeira, superintendo ambos com mão-de-ferro e total arbítrio em médicos e enfermeiras, como se fossem patrão e patroa a superintender em casa própria, viajando ambos em carro oficial com motorista às ordens; um ambiente de medo e de submissão, de intriga e de maledicência; total ausência de regras na admissão e despedimento do pessoal, em suma, um microcosmo do nosso fascismo caseiro.
Foi no curso da realização desse inquérito que tive oportunidade de privar com o Hespanha, dirigindo-me frequentemente ao Ministério e conferenciando com ele. Três meses de convívio, que foi o tempo que durou a licença militar, até ser chamado para o Lumiar, e mais umas fugas para acabar o inquérito, entre Outubro e Fevereiro, que foi quando fui mobilizado para Luanda, em plena efervescência de 1975, já como licenciado em Direito (isto é, com a especialidade militar de licenciatura em Direito), onde fui servir na Chefia de Justiça, dependente do Quartel General, até às vésperas da independência. Um convívio frutífero e de que conservo gratas recordações. Só tenho pena é de não conhecer muito bem a obra dele, que sei ser de grande importância, mas não directamente relacionada com o trabalho que sempre foi o meu, pois mais ligada à história das instituições (jurídicas e não só). Apesar disso, li com prazer partes de alguns escritos seus, nomeadamente da História das Instituições – Épocas Medieval e Moderna.
A sua morte provocou-me tristeza e uma recordação melancólica desses tempos passados.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)