31 janeiro 2006

 

«Influências que se movem, sectarismo, medievalismo», «amiguismo» - problemas da cultura

“Influências que se movem, sectarismo, medievalismo. Textos que se escrevem em função dos favores, críticas que se cozinham como benesses e mesuras a amigos e colegas de trabalho (é assim que se formam as clientelas, alguma dúvida?).”

Esta é uma das frases mais marcantes na polémica levantada pelo, para mim, indispensável (pelo menos desde que aí li uma entrevista inolvidável a Luis Pacheco) Esplanar, e, com o sentido de oportunidade de JPP, retomada no Abrupto. O subscrever de tais considerações não implica que se considere que essa é uma pequena ponta de um véu nacional (embora muitas vezes a mais hilariante, vejam-se algumas críticas literárias do Jornal das Letras), já que tal frase tem apenas a ver com a crítica literária ou de uma forma geral com a produção cultural.
Não tem qualquer relação com o que se passa no nosso país noutras áreas, e muito menos com o funcionamento de quaisquer órgãos de soberania... aí as coisas são a sério num país que já é pós-moderno, pós-industrial e certamente absorveu ao nível dos elementos basilares do Estado de direito um dos fundamentos que distingue as sociedades modernas das pré-modernas, a diferenciação social, pelo que as questões constitucionais não são em caso algum confundíveis com «coisas de amigos».
Até por que, de certo, está interiorizada a importância da diferenciação social enquanto factor de liberdade individual, pois numa sociedade indiferenciada as pessoas relacionam-se entre si transportando todas as suas posições na vida (por exemplo pai de família, membro de um corpo profissional, simpatizante ou militante de um partido, elemento daquela asssociação, etc, etc) com a consequência de que cada um sabe do outro e pode aplicar esse conhecimento para influenciá-lo.

PS- Este postal também não tem qualquer relação com o postal anterior nem com o PS do mesmo.

 

Política criminal: uma dita lei-quadro foi aprovada, e agora?

Depois da aprovação em plenário da «Lei-Quadro da Política Criminal», apresentada como matricial, impõe-se uma mais aguda atenção crítica sobre as diversas vertentes da definição e execução da política criminal e responsabilidades envolvidas mesmo que relativas a «minudências» como as aqui tratadas...
Para rematar a chaga dos meus postais anteriores à aprovação, algumas notas finais sobre o cenário (jurídico) pós lei-quadro:

- Como já se destacou aqui, no plano jurídico-constitucional e funcional-institucional na nossa ordem jurídica não existe (não pode existir) autonomia dos órgãos de polícia criminal, o que é preciso determinar é a medida e âmbito da sua dependência relativamente ao Governo, por um lado, e relativamente às autoridades judiciárias (em particular ao Ministério Público), por outro.
Um modelo em que quem tem de vir prestar contas sobre a investigação criminal é o Ministério Público, reservando-se os relatórios governamentais «à prevenção criminal e à execução de penas», exige que se acentue e efective a dependência funcional dos órgãos de polícia criminal relativamente ao órgão constitucional que vai ter de assumir no parlamento e perante a comunidade a responsabilidade pela investigação criminal - e, por seu turno, esta entidade tem a obrigação de assumir (e dar notícia de) todos os entorses sofridos na tripla vertente da acção penal, sua preparação, exercício e sustentação.

- A dimensão política da acção penal e o alargamento da sua fronteira tem tudo a ver com a competência dos tribunais judiciais, com o quadro da sua intervenção, mesmo que se reconheça que «Não assumindo força obrigatória geral, a resolução sobre objectivos, prioridades e orientações de política criminal não põe em causa, de forma directa ou indirecta, a independência dos tribunais, decorrente do princípio da separação e interdependência de poderes, e a sua exclusiva subordinação à lei». Pois como também aí se refere os institutos de diversão «dependem sempre da iniciativa das autoridades judiciárias e requerem uma avaliação casuística, embora sujeita a critérios gerais (para respeitar o princípio da igualdade), sobre o exercício do poder punitivo».
Agora é insofismável que por esta via, ainda que de forma indirecta (se se preferir essa formulação retórica), fixa-se um quadro competência ou legítima intervenção judicial, já que o controlo das funções do Ministério Público que em termos epistemológicos não obedecem a uma matriz judiciária mas a uma motivação política (expressa nas resoluções), deverá ser efectivado por órgãos democraticamente legitimados e não por órgãos judiciais (no caso através dos relatórios à Assembleia da República).
Concretizando, se forem legítimas as resoluções parlamentares (mesmo que incorrectas nas suas opções) não é legítima a recusa judicial relativamente às iniciativas ou decisões do MP, fundada na divergência sobre a bondade das resoluções que lhes estão na base (que não podem ser sindicadas judicialmente na sua dimensão política).

- Na nota justificativa da proposta de lei-quadro da política criminal referiu-se, a dado passo, que «não há legislação a alterar ou revogar, embora se admita que a experiência resultante da aplicação das futuras resoluções da política criminal possa vir a suscitar a necessidade de adaptação do Estatuto do Ministério Público [...]». Este é um tema que urge reavaliar em face da Lei-Quadro, em momento prévio à «experiência» da sua aplicação, e muito para além da lei-quadro pois o estatuto constitucional do Ministério Público (que logicamente não se deve por alterar d euma lei que diz ser a melhor via para a respectiva concretização) adequa-se a outros modelos normativos de funcionamento e organização (aliás a lei de 1998 introduziu alterações irrelevantes em termos em termos de gestão de recursos humanos que são o núcleo da magistratura do MP).
Quanto à lei-quadro, é importante ter presente (o que não parece acontecer) a distinção das responsabilidades políticas do procurador-geral da República (enquanto elemento cimeiro da estrutura funcional) e do Conselho Superior do Ministério Público (órgão colegial que tem as competências de gestão e organização), pelo que o primeiro apenas tem de prestar contas na medida dos seus poderes não tem de prestar contas por aquilo que o Conselho decide, em processos em que, eventualmente, até foi vencido (para não falar da indispensável autonomia funcional dos magistrados que decidem nos processos).


PS- Este comentário é ainda de ordem jurídica, o que não obsta a que se considere que existem sinais muito mais importantes do que as leis produzidas, ou dito de outra forma expressões reveladoras (pela pessoa dos seus autores ou pela recepção que têm em certos meios) de uma determinada cultura, relativamente à política criminal ou, pelo menos, às relações entre política e crime. Vejam-se as recentes iniciativas de Jorge Coelho, e do agora popular Duarte Lima, sendo certo que os aplausos a este último não são beliscados por aqueles que se preocupam com minudências como o José da GLQL e o Eduardo Dâmaso - aliás será certamente uma coincidência que dois dos deputados que se destacaram no júbilo tumultuoso, Ana Drago e Ricardo Rodrigues, tivessem na sexta-feira anterior o seu momento de maior destaque jurídico, numa audição parlamentar a um sr. procurador-geral da República sobre um processo judicial que anteriormente tinha gerado outro júbilo não menos tumultuoso, na mesma Casa (então de satisfação com uma decisão judicial... concreta).

Aditamento a PS- o deputado Ricardo Rodrigues teve no mesmo curto período de tempo um outro momento de grande destaque jurídico, na Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso Eurominas (embora aqui com uma preocupação maior na celeridade processual do que a revelada no procedimento de audição que decorreu na Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias).

 

Direito penal v. clientela da prostituição

O “pecado” e a “imoralidade”, dois aliados inseparáveis, sempre foram associados à sexualidade exercida fora das regras socialmente permitidas, tendo justificado ao longo de séculos uma sagrada, rigorosa e máxima (hoje podemos dizer «irracional») tutela penal.

Porém, como se reconhece hoje em dia, a missão do direito penal é proteger, de forma fragmentária, o bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual, isto é, proteger este específico bem jurídico pessoal apenas dos ataques mais graves, intoleráveis e perigosos.

Estando em causa o «desenvolvimento da vida sexual» do menor, compreende-se a criação de um tipo legal que puna o cliente da prostituição de menores, tal como sucede, por exemplo, em Espanha, Dinamarca, Itália ou França (ver, aliás, artigo 2-c) ii) da Decisão-Quadro 2004/68/JAI do Conselho, de 22/12/2003, JO L 13 de 20/1/2004, pp. 0044-0048).

Mas, no que toca à sexualidade dos adultos (no pleno gozo de todas as suas capacidades), a intervenção do direito penal só se justifica quando, de forma grave e intolerável (v.g. situações de coacção), for posta em causa a liberdade sexual, enquanto valor eminentemente pessoal e não enquanto valor transpessoal (o que se protege é o indivíduo e não a sociedade e as suas valorações).

Ou seja, a opção pela criação de um tipo legal que puna o cliente da prostituição de maiores é incompatível com a moderna concepção do direito penal num Estado de direito material, democrático e laico, orientado pelo pluralismo, pela tolerância e pelo seu carácter liberal.
Terá de ser através de meios não penais (v.g. políticas educativas, económicas, sociais e de emprego que permitam reduzir a pobreza e a exclusão social, promovendo os direitos humanos) que o Estado deverá combater dramas sociais que a todos preocupam.

O Estado não pode, na falta de execução de políticas sociais, enveredar pela via da criminalização excessiva.

Como diz Lüttger (cit. por Costa Andrade, “Direito Penal e modernas técnicas biomédicas”, RDE, XII, 1986, p. 102), «o direito penal tem de deixar de valer como instância moral do cidadão ou de representar qualquer mínimo ético».


30 janeiro 2006

 

Pinochet e Al Capone: almas gémeas

Muitas são de facto as afinidades entre estas duas personalidades. Vejamos. Ambas mataram muita gente (Pinochet matou mais). Ambas ganharam fortunas ilicitamente (Pinochet ganhou mais). Ambas beneficiaram de impunidade relativamente aos crimes de sangue. Al Capone acabou por ser condenado por crime fiscal; Pinochet arrisca-se a ter o mesmo destino.
Há uma diferença: não consta que Al Capone tenha posto a família a "sacar".

 

Simetrias

O Hamás ganhou as eleições com maioria absolut(íssim)a. São legítimos representantes do povo palestiniano.
No entanto, os EUA e Israel recusam-no como "interlocutor".
Algumas dúvidas: Quem tem legitimidade para escolher os representantes palestinianos - o "interlocutor" ou o povo palestiniano? Devem os palestinianos votar tantas vezes até que "acertem" nos representantes "certos" do ponto de vista dos outros? Poderão os palestinianos recusar como interlocutor o governo que vier a ser escolhido pelos israelitas nas próximas eleições? Poderiam ter recusado Sharon quando foi eleito e trazia as credenciais dos massacres de Beirute e outros actos de idêntico calibre?
Não há aqui um problema de simetria?

29 janeiro 2006

 

As últimas eleições presidenciais

Das eleições do passado Domingo, retiro pessoalmente estas conclusões:
1 - A necessidade sentida, muitas vezes de modo difuso, pelo eleitorado (inclusive de esquerda) de criar um contrapeso à dominância de um partido que obteve uma maioria absoluta e cujos perigos de descambar para o autoritarismo se têm feito sentir em diversos sectores. Cavaco apareceu como o homem capaz de estabelecer esse equilíbrio, para além do seu perfil de homem austero, sério, rigoroso, exemplarmente cultivado durante a campanha, em que contrastou de quase todos os outros candidatos, que fizeram uma campanha pela negativa e frequentemente agressiva. Soares, nisso, ultrapassou todas as marcas, perdendo o seu autoproclamado “fair play”. Acresce o perfil técnico do candidato, a sobrelevar em termos de importância as questões ideológicas, num tempo em que os problemas a resolver são de ordem tão imperativamente material e imediata, que não parecem ter coloração ideológica. Assim é que, confrontado com a designada «política de direita» do governo no próprio dia das eleições, o ministro Correia de Campos respondeu que a política do governo não era de direita nem de esquerda, mas nacional.
2 - O fim de um ciclo político na vida portuguesa, ainda muito marcado por uma geração que vinha das profundidades espessas da ditadura, que transportava consigo a memória das lutas antifascistas, dos terríveis anos da Segunda Guerra Mundial, das experiências do MUD e das querelas entre o socialismo real e o socialismo democrático e que se impôs a seguir ao «25 de Abril» através de um árduo combate, quase degenerando numa guerra civil, com o triunfo e a institucionalização daquele modelo de democracia que, se meteu o socialismo «na gaveta», veio a revelar-se historicamente como inafastável nos seus fundamentos e princípios estruturantes. Soares era (e é) a encarnação dessa memória e desse combate vitorioso que os textos recentemente publicados por Eduardo Lourenço evocam com um misto de nostalgia e de exaltação heróica, porventura deixando transparecer essa ideia de fim de um ciclo. Sendo simultaneamente protagonista e símbolo desses tempos, Soares sempre se apresentou em público com os direitos que esse estatuto reclamava, como se lhe bastasse fazer um sinal para toda a gente se render à majestade do gesto e curvar-se perante a carga simbólica que ele transportava e o património vivo que ele era e é ainda.
Porém, desta vez, nenhuma vaga de fundo correspondeu à majestade do gesto, assim como não lhe valeram outros brasões, como o de ser ele o homem da cultura que se contrapunha ao homem da economia, desamparado este de todos os valores culturais. Mas esse homem tinha, por sinal, como mandatário nacional, uma das figuras mais relevantes da ciência médica e dessa mesma cultura que Soares queria reclamar para si em exclusivo. E Alegre, vindo também da ditadura e da resistência antifascista, mas pertencente a outra geração, mais próxima das crises académicas dos anos 60, poeta, com a musicalidade da sua poesia de resistência a vibrar ainda na memória afectiva de muitos dos que engrossaram as fileiras da sua rebeldia, palmou-lhe uma grossa fatia dos artistas e intelectuais que ele gostaria de ter, como noutros tempos, a seu lado. Habituado a ser rei (embora republicano, socialista e laico), o reino fugiu-lhe, inclusive o do partido de que foi o pai fundador, e com isso, a rebeldia manifestada não foi só a de Alegre, mas a de muitos militantes e simpatizantes desse partido e, de um modo geral, do eleitorado de Esquerda. A realidade mudou.
3 - O começo do declínio do monopólio dos partidos no exercício da actividade política, ao menos no que diz respeito à eleição do presidente da República, cuja matriz constitucional não assenta nos partidos, mas de que estes nunca abriram mão. Um dos erros crassos de Soares foi ter pensado que os aparelhos partidários eram indispensáveis, quer para o lançamento do candidato, quer para o êxito da candidatura, menosprezando sobranceiramente a candidatura de Alegre exactamente por não ter apoio partidário e colando-se excessivamente ao directório do PS. O resultado viu-se. Não só Alegre o bateu por largos pontos, como Cavaco, distanciando-se prudentemente dos partidos, se alçou ao primeiro lugar. Até nisso se manifestou o desejo do eleitorado de ver na presidência alguém que representasse ou pelo menos aparentasse uma atitude de equidistância e de equilíbrio em relação ao excessivo poder que os partidos, também eles tomados de descrédito e em crise, têm na vida política portuguesa.

28 janeiro 2006

 

Um discurso do PR para ler e meditar

O discurso do PR na cerimónia de abertura do ano judicial, presumivelmente a última intervenção de Jorge Sampaio sobre a justiça, merece, pela sua inegável importância, sublinhada logo pela adesão que suscitou nos presentes, uma reflexão. E uma primeira reflexão aqui quero deixar.
Tirando a questão do "mapa judiciário", que não é uma questão menor, e em que me parece que o discurso erradamente sobrepõe uma lógica de racionalidade de gestão a uma perspectiva de proximidade da justiça aos cidadãos (que é um valor essencial!), creio que o PR alinhou uma série de considerações não só pertinentes, como lapidares, e a merecerem meditação pelos diversos destinatários (porque eles são efectivamente diversos: Governo, grupos parlamentares, magistrados, advogados, funcionários judiciais, jornalistas...).
Dentre a multiplicidade de questões por ele abordadas, quero salientar as que se seguem. A começar pela questão responsabilidade/independência dos juízes. Muito claro ficou a necessidade de respeito da parte dos juízes, e magistrados em geral, pelos direitos fundamentais, pela protecção dos direitos de todos os intervenientes no processo. Mas simultaneamente o PR frisou que a responsabilidade dos juízes assenta necessariamente no dolo, sob pena de lesão da sua independência de julgar. Uma clarificação muito importante esta!
Quanto às escutas telefónicas, insistiu na conveniência em que só sejam admissíveis num catálogo restrito de crimes, estejam sempre sob controlo efectivo do juiz de instrução e que seja proibido recorrer a elas fora de um inquérito criminal. E advertiu ainda contra a «tentação» de criar uma instituição exterior ao sistema judicial para controlar a legalidade das escutas. Estamos aqui no âmago desta questão central para o processo penal e para a democracia. As escutas telefónicas são necessárias, mas o princípio da proporcionalidade impõe que elas sejam limitadas ao mínimo essencial para salvaguarda de valores fundamentais. Daí que se imponha o tal "catálogo restrito de crimes". Mas sempre se dirá aqui que não podem ficar excluídos desse catálogo precisamente aqueles crimes altamente danosos para o Estado e para a comunidade que assentam no acordo entre sujeitos activo e passivo, dissimulando e dificultando ao máximo a descoberta do facto criminoso (caso da corrupção, obviamente!).
O controlo efectivo do juiz de instrução é também absolutamente essencial, embora aqui deva eu acrescentar que esse controlo se deve limitar ao controlo da legalidade e não ao controolo do material a seleccionar para o inquérito, tarefa que deve caber ao MP, enquanto dominus do inquérito.
A defesa da proibição de escutas fora de um inquérito, agora que há quem proponha publicamente a sua extensão às actividades de "informação" (SIS), é também muito oportuna.
E também de evidente oportunidade é a contestação da eventual entrega do controlo da legalidade das escutas a uma entidade externa (solução que parece ter largas "simpatias" na AR!). Criar um tal mecanismo seria, sem qualquer dúvida, um atentado ao princípio da separação de poderes e consequentemente uma rotunda inconstitucionalidade!
O PR terminou preconizando, para a resolução dos problemas da justiça, um acordo entre todos os responsáveis, políticos e judiciários, o que não pode deixar de ser visto como uma "recomendação" ao Governo... E, mesmo a terminar, indicou como itens obrtigatórios desse acordo a independência dos juízes, a autonomia do MP («elementos essenciais da nossa democracia», sic) e o «adequado controlo das polícias de investigação criminal».
Muitos, muitos "recados" para o legislador! E também para os magistrados e os outros destinatários, que o devem meditar. É um discurso a revisitar com vagar.

 

A verdade é a verdade da maioria?

O caso Eurominas (um caso que se antevia muito minado) parece confirmar que os inquéritos parlamentares continuam norteados por um critério de verdade assaz volátil. Aguardemos o relatório final para ver quantas verdades ficam estabelecidas.

27 janeiro 2006

 

Caça ao homem

Os homens caçam-se?
Quem poderá duvidar? Sempre que a polícia procura ou persegue um criminoso de maneira mais espectacular, logo salta para as letras gordas dos jornais (e para as legendas dos telejornais) a expressão «caça ao homem».
Tão vulgarizada está a expressão que já (quase) nem estranhamos, já (quase) não nos indignamos perante uma tal monstruosidade, denunciadora do valor que tem actualmente na nossa sociedade a dignidade humana.

 

Mais uma vitória de Bush

Bush acumula êxitos no Médio Oriente: no Iraque é o que se sabe, no Irão foi eleito recentemente um presidente ultra-ultra-ultra- nacionalista/fundamentalista, na Palestina ganhou agora o Hamás.
Brilhante, não é verdade? Confirmação de uma estratégia notável, de uma sagacidade impressionante de toda uma equipa de trabalho!
Até onde os (nos) levará uma tal capacidade de compreensão do sentimento profundo dos povos, das subtilezas da diversidade cultural, de análise da realidade, em suma?
Quanto tempo levarão os norte-americanos a compreender o abismo para que os (nos) encaminham?

25 janeiro 2006

 

Política criminal: só mais duas notas

No seguimento de vários textos de reflexão aqui publicados referentes ao projecto governamental de lei-quadro de política criminal, gostaria de encerrar provisoriamente esse tema com duas breves notas.
A primeira é para reafirmar aquilo que parece evidente e consensual, mas sempre valerá a pena realçar (dentro do princípio quod abundat non nocet): a nova legislação é de todo incompatível com qualquer autonomia dos órgãos de polícia criminal, devendo ser revogado o nº 6 do art. 2º da Lei de Investigação Criminal (Lei nº 21/2000, de 10-8); a não ser expressamente revogado, deverá entender-se como tacitamente revogado.
A segunda nota é a seguinte: o PGR afirmou ontem na AR, com todas as letras, que o projecto legislativo não é uma lei de política criminal, mas sim uma lei para circunscrever a actuação do MP. À noite, no noticiário da TVI veio a confirmação, pela boca de M. Sousa Tavares, conhecido adversário da autonomia do MP. Este bem informado comentador explicou o verdadeiro sentido do projecto: é um primeiro passo para acabar com a autonomia do MP. (Outros passos se seguirão, portanto.) Por que é que não explicaram logo assim e andam com tantos rodeios?

24 janeiro 2006

 

Legalizar a prostituição?

O Pedro Vaz Patto volta a participar na discussão de um tema que já foi aqui tratado, com o envio de um texto que tenho o maior gosto em publicar:

A questão da legalização da prostituição está «em cima da mesa». Sem querer, de modo algum, pôr em causa a boa fé de quem pensa o contrário, a primeira observação que me ocorre é que uma proposta como esta nada tem de “progressista”. A prostituição é uma prática velha como o mundo. A sua legalização não representa qualquer progresso, mas antes a capitulação conformista diante de uma realidade que se tem por inevitável, como se fosse uma fatalidade classificar as pessoas (e as mulheres em particular) como de primeira e segunda categoria quanto à tutela da sua dignidade. Quando se fala na prostituição como algo de inevitável ou um “mal necessário”, pensa-se sempre nas filhas dos outros, que serão as filhas dos outros, e não as nossas, a fornecer a “matéria-prima” de uma actividade “empresarial” que se pretende equiparar a qualquer outra. Parece que se desistiu, definitivamente, de mudar o mundo…
Diz-se que a legalização da prostituição é a melhor forma de combater a prostituição forçada, a prostituição infantil e a violência exercida sobre quem exerce tal actividade, e também de tutelar a saúde e os direitos dessas pessoas (menos merecedoras de atenção são as razões de quem invoca, a este propósito, os interesses fiscais do Estado).
Opinião completamente diferente têm associações que trabalham “no terreno” e se dedicam ao apoio e reinserção social das vítimas da prostituição, como, por exemplo, a associação internacional Coalition Against Trafficking in Women (
www.catwinternational.org), as associações italianas IROKO, presidida pela investigadora nigeriana Esohe Aghatise, e Comunidade João XXIII, presidida pelo Pe. Oreste Benzi (www.apg23.org) e a associação portuguesa “O Ninho” (ver a entrevista da sua presidente, Inês Fontinha, no Público de 10 de Janeiro de 2006).
Em alternativa a essa opção, essas e outras associações aplaudem a política do Governo sueco, que se baseia em pressupostos radicalmente diferentes. Para este, a prostituição é sempre uma forma de violência sobre as mulheres e não é uma fatalidade. Desde 1999, a legislação sueca pune quem explora a actividade de prostituição de outrem e (o que é inovador) também o cliente, ao mesmo tempo que prevê formas de incentivo à reinserção social das pessoas que se prostituem, estas descriminalizadas e encaradas como vítimas. De acordo com o balanço efectuado pela ministra responsável pelo sector (ver
www.prostitutionresearch.com), nos primeiros três anos posteriores à entrada em vigor da lei, o número de mulheres que se dedicam à prostituição reduziu-se em mais de um terço e a procura dessa actividade reduziu-se em cerca de três quartos. Em comparação, a actividade cresceu nos outros países escandinavos, que seguem políticas diferentes. As investigações policiais revelam que os traficantes, porque vêm diminuídos os seus lucros em resultado da diminuição da procura, preferem ter outros países como destino. A lei recolhe o apoio da maioria (cerca de oitenta por cento) da população e, em particular, de associações de apoio às mulheres vítimas da prostituição e de mulheres que abandonaram a prostituição.
Esta experiência revela que não há apenas a alternativa entre a prostituição clandestina e a legal. Não são apenas estas (não podem ser) as alternativas que o Estado deve oferecer às vítimas da prostituição.
Há razões lógicas, confirmadas por estudos (ver
www.prostitutionresearch.com e www.catwinternational.org), que demonstram que a legalização da prostituição não é um caminho para resolver nenhum dos problemas normalmente invocados para a justificar.
Não é uma forma de combater ou limitar a prostituição forçada. É óbvio que esta se combate mais facilmente quando qualquer forma de exploração da prostituição é perseguida criminalmente do que quando, a coberto de uma pretensa mas frequentemente simulada (o que se compreende num contexto de grande carência socio-económica) voluntariedade, dessa perseguição podem ser excluídas algumas formas dessa exploração. A legalização, como é óbvio, dá aos “empresários” que exploram pessoas nessa situação de carência (e que são a grande maioria) uma outra segurança e protecção. E nessas situações de carência não é de esperar que sejam as mulheres a denunciar as pressões de que são vítimas ou a desmascarar a pretensa voluntariedade. Também esta pretensa (e frequentemente simulada) voluntariedade pode levar a que as instituições oficiais considerem desnecessária a protecção dessas mulheres. Nos países onde a prostituição foi legalizada, a esmagadora maioria das mulheres que se prostituem continua a ser proveniente dos países pobres do Terceiro Mundo ou da Europa de Leste, que facilmente poderão ser consideradas vítimas do tráfico.
Com a legalização, a prostituição aumenta significativamente. Na Holanda, os rendimentos respectivos correspondem a cinco por cento do rendimento nacional. Esse aumento também se dá na prostituição clandestina. Uma das razões para tal tem a ver com a vontade de evitar o controlo e a perda do anonimato que a legalização acarreta (as mulheres prostitutas não querem perder o anonimato, porque esperam poder um dia mudar de vida, sem que permaneçam quaisquer vestígios do seu passado).
Como também tem sido demonstrado por vários estudos, a violência física e psicológica é algo de intrínseco à prostituição, seja ela legal ou clandestina.
Os perigos para a saúde pública (em particular, no que se refere à difusão da sida) que decorrem da prática da prostituição só desaparecem verdadeiramente quando se abandona a sua prática, não quando esta é legalizada ou promovida. Os controlos sanitários que se efectuam quando a prostituição é legalizada incidem sobre a mulher que se prostitui, não sobre o cliente, visam mais a protecção deste do que a daquela, visam impedir o contágio deste por aquela, e não o contrário. Por outro lado, as pressões do “mercado” (legal ou ilegal) levam muitas vezes a mulher a aceitar a prática de relações sexuais sem o uso do preservativo (que, de qualquer modo, nunca é eficaz a cem por cento) a troco de uma maior remuneração, ou sob a ameaça de violência.
A favor da legalização da prostituição, invoca-se a autonomia pessoal e a liberdade de escolha. No entanto, é na dignidade da pessoa (em que, de acordo com o artigo 1º da Constituição, se funda a República Portuguesa) que assenta a tutela da sua liberdade e, por isso, o consentimento do próprio nunca pode servir para legitimar atentados a essa dignidade. Não é admissível a escravatura, mesmo que consentida, como nunca o é o trabalho em condições desumanas. A dignidade da pessoa humana, na célebre visão kantiana, impede que esta seja tratada (pelos outros ou por ela mesma) como meio e não como fim em si própria. A prostituição é certamente dos exemplos mais nítidos de redução da pessoa a objecto ou instrumento.
Por outro lado, é uma ilusão pensar que a prostituição pode ser, excluindo talvez poucos casos excepcionais, fruto de uma escolha autenticamente voluntária. Não se escolhe essa actividade em alternativa a estudar Direito ou Medicina. A alternativa é, muitas vezes, a fome. Quando é a sobrevivência económica que está em risco, até a escravatura (que garantisse essa sobrevivência) poderia ser consentida. Há inquéritos que revelam que cerca de noventa por cento das mulheres que se prostituem escolheriam outras alternativas se estas lhes fossem proporcionadas. Ao Estado deve ser pedido que proporcione essas alternativas, e não que se demita de o fazer através da legalização da prostituição.

Pedro Vaz Patto

23 janeiro 2006

 

O julgamento dos portugueses

Para quem gosta dos rótulos políticos “direita/esquerda”, ficou a saber (se ainda tinha dúvidas) que o pulsar dos portugueses votantes (descontada a abstenção, arredondada para 37,4%, o que tem muita força) está quase ela por ela, embora com leve vantagem para a chamada “direita”.

Na assumida derrota da dita “esquerda”, procedendo aos respectivos agrupamentos, a divisão clássica é entre os conservadores, os alinhados e os desalinhados.
Claro que, nos tempos que correm, os conservadores da “esquerda” dificilmente chegarão ao poder mais apetecido.
As forças foram medidas entre os alinhados e os desalinhados.
Boas apostas, más apostas, apostas calculadas…

Colocando entre parênteses o vencedor (50,6%),
olhando apenas para o partido da governação (desde há quase um ano),
pesando votos na balança e continuando a arredondar: o que significa a divisão “oficial” dos 20,7% contra 14,3%?
Serão os “esclarecidos” ou os “cegos” protestos burgueses?
Será o fastio, o cansaço, a revolta dos invencíveis descontentes?
Não significará nada? Ou será melhor que não signifique nada?

Nestas presidenciais, os 1º e 2º lugares não alinharam na visível vontade da governação.
E, a abstenção vale mais do que a soma dos 2º e 3º lugares mais votados.

Assim, feitas as contas, poupados os custos da 2ª volta, segue-se o ambicionado namoro…
Cansados ou não com os atropelados e infindáveis discursos políticos (nada inovadores), há que esperar, sem surpresas, o futuro… e que sobre algum “piscar de olhos” para os portugueses!

 

Uma colherada endiabrada…

Pois é século XXI, nem sei que te diga, com tanta falta de surpresas: mas, enfim, ainda ontem, no jornal público, era realçada a possibilidade… longínqua… do «chefe espiritual dos anglicanos poder vir a ser uma mulher, mas nunca antes de 2012»!!!

Essa tão acarinhada visão “conciliadora” da religião com os princípios subjacentes às sociedades democráticas (sintetizados, por economia, no respeito da dignidade humana e na defesa da pluralidade e da tolerância), independentemente de crenças ou da fé de quem acredita, não deixa de alimentar … mais uma ilusão humana.

O fenómeno é mundial: as diversas religiões continuam, hoje em dia, a colocar a mulher em lugar subalterno e a ver, no masculino, a almejada dignidade humana.

E, pior do que isso: mulheres existem que aceitaram o estigma da impureza e da maldade, catalizando o sinal de inferioridade… há até quem acredite, nos nossos dias (pasme-se ou admire-se), que nascer mulher significa um castigo superior, pelas maldades feitas em vida anterior…

Símbolos, imagens, significados que passam de geração em geração por esse mundo fora, representando o domínio do poder da religião sobre a humanidade não agnóstica mas, com repercussão na que é agnóstica ou ateia…

Na religião católica, mesmo às freiras são vedadas determinadas funções ou actividades reservadas (de forma absoluta) aos padres. Porquê?

Noutras religiões, só para dar alguns exemplos, existem locais de oração separados em função do sexo da pessoa. Até há locais, considerados sagrados, a que as mulheres não podem aceder, nem sequer aproximar-se de figuras que se veneram.

Tal como a visão do crucifixo no catolicismo romano, em qualquer religião, a imagem de Deus ou do “Chefe Supremo” ou até dos seus representantes directos na terra é, em geral, sempre masculina…e habitualmente de raça branca ou amarela.

E, as mulheres (que até são em maior número) continuam subjugadas … e quem se interessa? Muitos dirão: problema delas! E pensam: ainda bem que é assim…

Olhando para os princípios e valores inerentes a cada religião (apesar das diferenças, em geral assemelham-se nas linhas de força e nas conclusões), até que ponto são compatíveis com as exigências das “revoluções” ou mesmo com as da vida (e cultura) moderna?
Aqui não vale confundir a prática de cada crente (mais ou menos aberta e tolerante, admitindo aquele «espaço de transgressão razoável») com o que está “escrito” e continua a ser interpretado ou veiculado…

A neutralidade e a não imposição de regras de conduta, nem de privilégios, não obstante as contradições existentes, deve ser o caminho a divulgar e a interiorizar.

O Estado, quando se quer libertar, diz (com mais ou menos coragem) que é laico.
Claro que a vida comunitária e a inerente cultura não deverão ser “programadas”, nem “orientadas”: a solução é ensinar, praticando a tolerância e a pluralidade.
Também a religião, seja ela qual for, deverá ocupar apenas o seu próprio lugar.

É importante saber identificar e reconhecer as fronteiras e limites de cada espaço: seja o político, o religioso, o cultural etc., sempre combinando a forma como cada sociedade está organizada com a necessária evolução e progressão, que nunca poderá ser contida.

O mal é que há sempre essa vontade de dominar ou de ser dominado…e as contradições aparecem quando se quer impor e perpetuar uma só visão… tantas vezes à custa da exploração da ignorância aliada à conveniente conservação do atraso…basta caminhar um pouco (como agora se diz) por esse Portugal profundo…

21 janeiro 2006

 

UBU ROI

Acte III, Scène II

(…)
Père Ubu
Je vais d’abord réformer la justice, après quoi nous procéderons aux finances.

Plusieurs Magistrats
Nous nous opposons à tout changement.

Père Ubu
Merde. D’abord les magistrats ne seront plus payés.

Magistrats
Et de quoi vivrons nous ? Nous sommes pauvres.

Père Ubu
Vous aurez les amendes que vous prononcerez et les biens des condamnés à mort.

Un Magistrat
Horreur.

Deuxième
Infamie.

Troisième
Scandale.

Quatrième
Indignité.

Tous
Nous nous refusons à juger dans des conditions pareilles.

Père Ubu
À la trappe les magistrats ! (Ils se débattent en vain.)

Mère Ubu
Eh! que fais-tu , Père Ubu ? Qui rendra maintenant la justice ?

Père Ubu
Tiens! moi. Tu verras comme ça marchera bien.
(...)

20 janeiro 2006

 

Laicidade e Crucifixos

Tenho o prazer de publicar um texto que o meu amigo Pedro Vaz Patto simpaticamente me enviou e que vai enriquecer um debate que no Sine Die tem sido «produtivo», desde a altura em que o Eduardo Maia Costa o lançou (crucifixos) e o João Paulo o retomou em três postais com compromisso de continuação (1, 2 e 3):

A polémica em torno da presença de crucifixos em escolas públicas tem-me feito recordar o quadro sob o qual exerci funções de juiz no início da minha carreira, na sala de audiências do Tribunal da Comarca de Gouveia. Espero que esta referência não sirva de denúncia para suscitar a intervenção “saneadora” de alguns mais zelosos guardiões da laicidade (situações semelhantes têm sido discutidas em tribunais norte-americanos). Representa tal quadro Moisés e as Tábuas da Lei. Sempre me pareceu adequada tal representação numa sala de audiências, não menos do que a representação de figuras da mitologia grega. Não está o Decálogo bem presente na cultura em que, crentes e não crentes, estamos imersos (non possiamo non dirci cristiani- é celebre a afirmação do filósofo agnóstico Benedetto Croce) e que serve de substracto ao nosso ordenamento jurídico, o penal em particular?. O “Não matarás” das Tábuas da Lei nada terá a ver, no plano histórico e cultural, com a punição do homicídio nas nossas sociedades?
O Estado deve ser laico, mas não o são a sociedade e a cultura. A laicidade do Estado traduz-se em neutralidade para com as religiões, não em indiferença ou hostilidade para com elas.
Aceito a linha de princípio indicada por Vital Moreira quando distingue entre espaço público (a sociedade e a cultura), onde as religiões não podem deixar de estar presentes, e o espaço estadual. Mas entre Estado e sociedade os espaços de interpenetração não podem deixar de existir. Um Estado insere-se numa sociedade e numa cultura determinadas e, tanto mais se for um Estado democrático, deve estar aberto a elas, não as pode ignorar ou menosprezar. Por isso, é natural que dignitários eclesiásticos, como representantes de uma instituição de relevo na sociedade civil, possam estar presentes em cerimónias oficiais. Ou que o Presidente da República possa estar presente em cerimónias religiosas particularmente significativas para largos extractos da população (não menos significativas do que são jogos de futebol onde participam clubes de que nem todos os portugueses são adeptos, e onde ninguém questiona que ele possa estar presente).
Esta interpenetração entre Estado e sociedade é particularmente evidente no que à escola se refere. A escola estadual é, mais do que estadual, escola pública. Não pode ignorar a cultura onde se insere, sob pena de se negar a si própria. Nada há de abusivo, por exemplo, em que nela se festeje o Natal respeitando o seu sentido mais autêntico (questão que também vem sendo discutida em tribunais norte-americanos), sem o desvirtuar reduzindo-o a uma bizarra “festa de Inverno” (isso sim , seria culturalmente agressivo e anti-democrático).
É a esta luz que vejo a questão da eventual presença de crucifixos em escolas públicas. Essa presença não pode ser imposta, mas também não vejo que deva ser proibida quando assim o reclama a comunidade escolar sem que alguém com isso se sinta discriminado. Foi a uma solução similar que se chegou na Baviera (onde a tradição é, como em Itália, neste aspecto, mais forte do que a nossa), depois de sobre a questão se ter pronunciado o Tribunal Constitucional Federal. Também em Itália se tem entendido que o crucifixo é um símbolo de identidade cultural, não incompatível com a laicidade do Estado. Este princípio sempre foi pacificamente aceite em regime democrático e pluralista, mesmo nas regiões onde mais se sentia a influência histórica do Partido Comunista. Só deixou de o ser por iniciativa de um recém-convertido ao islamismo que não tem tido qualquer apoio entre as associações muçulmanas mais representativas.
Quanto ao alcance do crucifixo como símbolo cultural, direi que muito lamentaria se o mesmo servisse de instrumento de divisão ou “arma de arremesso”. Com esse símbolo podem identificar-se muitos não crentes sensíveis às lutas pela justiça, pelos direitos humanos e pela solidariedade com os mais pobres. Na verdade, no crucifixo vemos a imagem de um Deus que se solidariza com as vítimas da injustiça e da opressão e com o sofrimento humano mais atroz. Devido a esta exaltação dos humildes, também Benedetto Croce via na revolução cristã a raiz de todas as revoluções posteriores em favor da dignidade humana (que sem aquela não se compreendem). Porquê retirar um símbolo tão rico de significado das paredes, como se algo de indecoroso se tratasse?

Pedro Vaz Patto

19 janeiro 2006

 

Política criminal: a resolução é solução?

Creio que o maior problema que o projecto de política criminal enfrenta, em termos de constitucionalidade, é a escolha do acto que serve de suporte à formulação das "orientações" sobre política criminal, isto é a resolução.
Na verdade, a definição de objectivos, prioridades e orientações constitui, pelo menos aparentemente um acto normativo. Ñão é uma pura recomendação, não é um voto de protesto ou de louvor, não é uma mera declaração de propósitos, é um acto que tem em vista desenvolver e dar execução (de alguma forma, "regulamentar") as normas jurídicas anteriormente aprovadas, e que tem eficácia externa, ao obrigar o PGR a assumir as prescrições do acto.
Mas, se é um acto normativo, não é seguramente um acto legislativo, pois não consta da enumeração exaustiva do nº 1 do art. 112º da Constituição, e, não o sendo, viola o disposto no nº 5 do mesmo artigo, que veda a criação por lei de outras categorias de actos legislativos ou a atribuição a actos de outra natureza (por exemplo, resoluções) do poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, etc., preceitos legais.
Mas, poderá a resolução sobre política criminal ser considerada um acto político? Não parece que assim possa ser entendido: um acto político rege-se essencialmente por interesses de oportunidade ou conveniência. No caso em análise, o que se pretende é conferir eficácia, dar execução a um quadro legislativo já definido, a cujas "valorações" tem de ser fiel («princípio da congruência» - art. 3º). Quando muito, poderíamos aceitar que a resolução em referência constituiria um acto atípico, híbrido, mas a conclusão seria sempre a da sua inconstitucionalidade, nos termos do citado nº 5 do art. 112º da Constituição.
A caracterização do acto como político tem aliás um inconveniente grave: a sua subtracção à fiscalização de constitucionalidade por parte do TC. E, em qualquer caso, como resolução que é, não submetida a promulgação, escapa necessariamente ao controlo preventivo da constitucionalidade.
Enfim, problemas e mais problemas, para um diploma que pretende precisamente vir resolver problemas...

 

Política criminal e autonomia do Ministério Público

A emissão de directivas dirigidas ao MP em matéria de política criminal é típica dos sistemas em que o MP depende do executivo e simultaneamente vigora o princípio da oportunidade. Nenhum problema se suscita aí quanto à validade ou constitucionalidade das directivas, geralmente, mas não necessariamente, oriundas do governo.
Mas a questão é totalmente diferente onde, como em Portugal, o MP é autónomo, e autónomo por prescrição constitucional. Como conciliar autonomia com sujeição a directivas externas? Note-se que o projecto governamental em discussão apressa-se a proclamar que as directivas não podem «prejudicar o princípio da legalidade, a independência dos tribunais e a autonomia do MP» (al. a) do art. 2º). Mas trata-se de uma "declaração piedosa", sem alcance normativo. O que importa é indagar se o articulado comporta algum atentado à autonomia.
O projecto tenta fazer a conciliação através de duas formas: restringindo a possibilidade de intervenção da AR à emissão de directivas genéricas; fazendo intervir no processo a AR, e dando-lhe a primazia decisória, limitando o papel do Governo à formulação da proposta. Acresce que a "vinculação" do MP é de "baixa intensidade", uma vez que, como já referi em texto anterior, as directivas da AR não afectam directamente o MP, cabendo ao PGR assumir (ou seja, interpretar, desenvolver, integrar, concretizar) tais directivas através de outras, direccionadas aos membros do MP, estas sim vinculativas para estes últimos, nos termos do seu Estatuto.
Mantendo-se, por outro lado, em vigência o princípio da legalidade e a sujeição do MP, na sua actividade, a critérios de legalidade estrita e de objectividade, creio que, embora o projecto implique alguma "compressão" do princípio da autonomia. o núcleo essencial deste está salvaguardado.
Mas com uma anotação importante: esta compressão constitui uma linha infranqueável, sob pena de lesão efectiva da autonomia. Seriam inconstitucionais quaisquer eventuais desenvolvimentos futuros no sentido de uma ampliação dos poderes de direcção (da AR ou do Governo) relativamente ao MP.
(Questão diferente é a de saber se se justifica, se é necessário, criar um instrumento como este. A essa questão já respondi, negativamente, em texto anterior.)

18 janeiro 2006

 

Cuidado, veja quem convida para jantar!

No passado fim de semana, a CIA levou a cabo um ataque aéreo contra uma aldeia do Paquistão, tendo morrido 18 civis (paquistaneses, claro), o que desencadeou largos protestos populares. A razão do ataque consistiu na suspeita de estar presente num jantar realizado na aldeia o "nº 2" da Al-Qaida. Pensava-se, contudo, que só tinham morrido civis, mas não: morreram também quatro ou cinco "terroristas". Como disse o governador da província, é lamentável que tenham perdido a vida 18 habitantes da aldeia, mas é inegável que 10 a 12 extremistas estrangeiros tinham sido convidados para jantar, sendo assim a proporção entre 18 civis mortos e 4 a 5 terroristas com o mesmo destino perfeitamente aceitável. Lamentável mas justificável. Ficou por esclarecer quantos civis valem um terrorista morto... Acresce que se suspeita agora que tenha mesmo morrido não o "nº 2", mas um "quadro" importante da mesma organização, cujo número na hierarquia não foi fornecido. Reforçada ficou assim a legitimidade da acção da CIA. Os civis mortos não eram terroristas, mas estavam sentados com eles à mesma mesa.
Sabendo-se que a guerra ao terrorismo decretada por Bush não tem limites temporais ou espaciais, que é uma guerra sem quartel, que os terroristas em parte alguma, seja em público, seja em privado, estão ao abrigo do devido e duro castigo, caro leitor, pondere, informe-se, analise o "curriculum" de quem vai convidar para jantar. Previna-se, antes que veja o seu jantar interrompido (lamentável, mas justificadamente) pelos competentes homens da CIA.

16 janeiro 2006

 

Pobretes mas nem sempre alegretes

Muito de longe em longe a pobreza é notícia. Não é para admirar, porque os pobres não são fotogénicos nem compram jornais. Eles só são notícia por via das estatísticas, que agora mais uma vez confirmam que Portugal é o país da UE onde é maior a desigualdade de rendimentos entre o grupo dos mais ricos e o dos mais pobres.
Ficaríamos talvez chocados e até com alguma incomodidade se não lêssemos de imediato a explicação oficiosa da ideologia dominante: «Sem um prévio e forte aumento da produtividade não há políticas sociais que resistam, por se tornarem financeiramente insustentáveis.» (Público, editorial de 15 de Janeiro).
A pobreza, não sendo assim propriamente uma fatalidade, não é culpa de ninguém (a não ser talvez dos próprios pobres...), não é uma preocupação actual, pois o combate à pobreza tem de esperar melhores dias. Podemos pois todos dormir dascansados.
Com o nível de riqueza actual, não há redistribuição possível, ou seja, os ricos não têm de ceder nada do que têm. Os pobres têm é de esperar (e rezar para) que os ricos se tornem mais ricos (graças ao tal aumento de produtividade) para que cedam um bocadinho do que vier a mais aos pobres ("ceder" se o Estado os obrigar, evidentemente). Conclusão: o problema não está nos ricos, mas em eles serem insuficientemente ricos.
Com algumas roupagens teóricas à mistura, é esta a ideologia que a toda a hora é destilada pela comunicação social, nos programas de economia, como nos noticiários, nos debates e em toda a programação, para proveito dos portugueses, em especial dos pobres, que infelizmente, por má vontade ou deficiência congénita, não a assimilam devidamente e por vezes têm a ousadia de mostrar a sua insatisfação perante o estado de coisas presente. Pobres e mal agradecidos!

 

Prostituição de valores “encriptada”!

Sempre achei graça que, para se falar de prostituição, mesmo para a defender dos exploradores, se tivesse de fazer de conta que ela era apenas feminina…

Pois então, a prostituição que agora comento não tem sexo apesar de, tradicionalmente, estar ligada a ele.

Também não a vou cingir ou espartilhar, centrando-a em partes específicas do corpo da pessoa. E, não a vou aliar apenas «à contrapartida económica».

O que eu sei é que a prostituição está na “cabeça” de cada um que fala dela, com mais ou menos amplitude, dependendo do seu contexto.

A prostituição, sempre associada ao mal, é (usando a tal visão tradicional) uma realidade “vendida”, por vezes “encapuçada”, com defeito, sem rosto, sem corpo, nem identidade.

E essa prostituição, que é destrutiva, está ligada a ideias e a corrupção … corrupção de valores, de ideais, de pensamento, de conceitos, enfim, corrupção do conceito da própria liberdade, em qualquer das suas vertentes.

Tantas ideias prostituídas que nos querem impingir …às vezes com bonitas “roupagens” para quem se encanta com as “embalagens”.
O certo é que, a cada passo se tropeça nessa forma prostituída de pensar e de divulgar: o grande veículo de transmissão e exibição é o quotidiano, quer nos contactos do dia a dia, quer nas notícias que se vão espalhando, ao jeito de القاعدة, sem escrúpulos, visando baralhar cabeças num país com tanta pobreza, v.g. cultural e educacional.

O problema é sempre o mesmo: gira à volta da forma de conceber o poder, a liberdade e a verdade.
Depois, esse triângulo é preenchido com factores que, para quem gosta de catalogar, pode associar a interesses económicos, a tráfico de influências, a jogos de bastidores, a irónicos superiores interesses políticos, tantas vezes disfarçados de interesses nacionais etc. … sendo a ordem desses factores arbitrária.
Quem não consegue chegar ao poder, com sorte manipula o poder vulnerável, ficando a pensar que está a exercer o poder: então vemos um país, num qualquer canto do mundo, em uníssono a falar do mesmo…desde o “escravo” cidadão até aos escravizados “deuses”… todos, sem ideias novas, de forma demagógica e populista, ao som da mesma música pimba, que entra em casa de toda a gente. E, as vítimas, transformadas em monstros, são escalpelizadas!

Aliás, nesse aspecto, podíamos dizer que a prostituição tem muita força! Quase que comanda a vida (interna e externa) de quem se deixa nela envolver. Por isso, esta particular forma de prostituição não precisa de «sindicato».

Hoje em dia nada é seguro porque todos ambicionam o poder a todo o custo.
Não se contesta a ambição mas a forma inclassificável como se quer alcançá-la.
Antigamente (e falo no passado recente) alguns chegavam ao poder encapotando os meios que, por isso, não eram visíveis ao comum dos cidadãos. Hoje vale tudo e é à descarada. A moralidade (com “cavalas” ou sem elas) agora é uma: a escalada ao poder de obscuros interesses esfomeados.

Revisitando a história no feminino, por este andar, qualquer dia só com uma Padeira de Aljubarrota é que se consegue acabar de vez com essas manipulações…

 

Política criminal: vinculações e interrogações

Saber quem e como vinculam as resoluções sobre política criminal, segundo o projecto legislativo divulgado, coloca algumas interrogações.
Nos termos do projecto do Governo, a “política criminal” é fixada pela AR através de resoluções, sob proposta do Governo. Uma vez aprovadas, as resoluções vincularão esses dois órgãos de soberania, e apenas eles. O PR não fica vinculado, porque não participa do processo de decisão: as resoluções, nos termos da própria Constituição (art. 166º, nº 6), não são promulgadas.
E quanto aos “destinatários”? Em primeiro lugar, quem são os destinatários? O nº 2 do art. 11º diz que o MP assume os objectivos e adopta as prioridades e orientações das resoluções. Mas mais adiante o art. 13º, nº 1 estabelece que compete ao PGR «emitir as directivas, ordens e instruções destinadas a fazer cumprir as resoluções sobre a política criminal». Assim, o PGR é o destinatário único das resoluções sobre política criminal. Os magistrados do MP são, por sua vez, destinatários das directivas do PGR.
Daqui resulta o seguinte: os membros do MP estão obrigados ao cumprimento das directivas, ordens e instruções do PGR nos termos do seu Estatuto, que estabelece certas restrições aos poderes directivos do PGR, concretamente o dever de recusa do cumprimento de ordens ilegais e o direito de objecção de consciência com fundamento em grave violação da consciência jurídica. Portanto, as directivas dimanadas pelo PGR nos termos da futura (?) lei de política criminal não terão “estatuto” diferente das restantes, o mesmo acontecendo com a responsabilidade face às infracções cometidas.
Quanto ao PGR, o projecto legislativo não diz que ele fica vinculado pela resolução da AR, até porque ele será o intérprete ou mediador “normativo”. Ele deverá assumir os objectivos da resolução e dar-lhes corpo e viabilidade. Daqui que a “vinculação” e a responsabilização do PGR sejam de ordem política. A recusa ou a “má assunção” da resolução de política criminal deverão ser avaliadas politicamente.
Mas surge aqui um problema: é que, nos termos constitucionais, o PGR é responsável perante o Governo, que o propõe, e o PR, que o nomeia. A AR não tem qualquer participação nesse processo; pode apenas “fiscalizar” a acção do PGR, chamando-o a uma comissão especializada para responder a perguntas, mas não pode desencadear o processo de demissão, ainda que tenha perdido a confiança nele. Isto significa que a AR, mesmo que venha futuramente a considerar que o PGR não assumiu ou não assumiu devidamente a sua política criminal, não pode responsabilizá-lo, a não ser através de uma recomendação dirigida ao Governo (parece que é isso que resulta do art. 14º, nº 4 do projecto).
Já o Governo, poderá tomar a iniciativa de propor a demissão. Mas, não tendo o PR participado no processo de aprovação da resolução de política criminal, não estando a ela vinculado, pode recusar a proposta.
Numa hipótese dessas, nada inverosímil, a execução da política criminal encontrar-se-ia num beco sem saída.

15 janeiro 2006

 

Reflexões sobre a prostituição, a política e a justiça

Desde antes das férias que ando para atirar para este blogue umas duas ou três coisas suscitadas por reflexões alheias, mas, por um lado, os afazeres profissionais e as férias sobrevindas e, por outro, a preferência dada a outras ocupações, como pôr algumas leituras em dia (essa ambição permanentemente adiada) impediram-me de o fazer. As reflexões alheias a que me refiro têm a ver com duas notas do Maia Costa e também com um extenso texto do José, publicado há já bastante tempo na Grande Loja do Queijo Limiano sobre a geração de 60 e que constitui uma das mais demolidoras diatribes que tenho lido sobre essa «ínclita geração». Esta última reflexão, exigindo maior fôlego, ficará para mais tarde, se eu ainda tiver catadura para pegar nela. Quanto às reflexões do Maia Costa vou desde já comentá-las. E começo por dizer que, ao lê-las, tive a sensação de ele mas ter «roubado», pois dá-se a circunstância de eu até ter apontado num papel (um desses recibos do Multibanco, que à falta do celebrado «moleskine», dão mesmo jeito para meter ao bolso com o objectivo de servirem de repositório de ideias meteóricas que nos vêm à mente e que poderão servir ou não para posterior desenvolvimento) as ideias que ele veio depois a tratar em duas prosas publicadas neste blogue.
Uma delas diz respeito à questão da prostituição. Tal como Maia Costa, indigno-me com certas abordagens do tema e uma das minhas últimas crónicas jornalísticas - «Desvio e doença» - tocou de raspão essa problemática, de mistura com o tabaco e o álcool. São temas recorrentes onde uma intolerância de raiz moralista, mesmo no seio da esquerda (tão libertária!), em relação a comportamentos ou opções de vida pretensamente desviantes, intenta fazer convergir os comportamentos para uma ortodoxia cada vez mais uniformizadora ou normalizadora.
No que diz especificamente respeito à prostituição, arrepio-me com aquela retórica moralista que centra a questão na «venda do corpo» (mas a prostituta – façamos de conta que a prostituição é apenas feminina - vende realmente o corpo? E que porção dele é que vende? E ainda que o vendesse?) ou na escravidão da prostituta, como se não se pudesse conceber o exercício livre e até profissional da prostituição. Cada vez mais há um amplo sector da prostituição que se exerce sem ser por estritas necessidades económicas e se estas últimas subsistem ainda (e pelos vistos também cada vez mais) como factor de prostituição, então a solução está na adopção de uma política social e económica que acabe com elas. Além de que a prostituição tem muitas formas camufladas, mais ou menos legitimadas pela hipocrisia social, de se manifestar. A via da criminalização é que só pode conceber-se para aqueles casos muito estritos em que se perfile a exploração do negócio da prostituição ou esteja em causa a liberdade de autodeterminação das pessoas.
Uma solução à sueca é particularmente revoltante (pelo menos, eu assim acho), não só por clandestinizar e, no fundo, fazer recrudescer a prostituição, como principalmente por partir do princípio idiota de que o homem é o culpado e a mulher a vítima. Passei na Suécia uma temporada, há anos, em casa de amigos e tive tempo para me aperceber que, se o povo sueco é a muitos títulos digno de admiração, noutros não constitui nenhum exemplo a seguir. Uma das suas pechas é um paternalismo institucional (com uma versão puritana proveniente do protestantismo dos países do Norte) que por vezes raia o absurdo e ao qual o cidadão comum se acomoda passivamente. A legislação sobre a prostituição será um desses casos.

*
A outra questão diz respeito às concepções que demonstram na área da justiça os candidatos à presidência da República, sobretudo os da esquerda. Na verdade, o panorama é deveras confrangedor. Mário Soares restringe todo o universo da justiça ao caso «Casa Pia». Quando lhe perguntam o que pensa sobre o sector, ele põe-se a falar inevitavelmente da «Casa Pia», das investigações mal conduzidas, do Procurador-Geral da República e, de caminho, vai tecendo comentários catastróficos sobre o Ministério Público. Agora, a propósito do recente e histericamente explorado episódio das listas de telefones pagos pelo Estado e pertencentes a uma verdadeira miscelânea de entidades públicas, lá o vimos a esbracejar num comício público contra as escutas telefónicas (o candidato confunde escutas com listas de chamadas) com que o inevitável (do ponto de vista discursivo, claro) processo «Casa Pia» enxameou o país inteiro. Um pretexto de ouro para falar das liberdades ameaçadas.
Quanto a Manuel Alegre, questionado sobre a justiça, despejou algumas ideias (se assim se lhes pode chamar) coladas à última hora antes do debate televisivo. Umas pinceladas sobre a área cível, outras pinceladas sobre a área criminal, uma laracha aqui, outra laracha acolá, e no fim o que ficou foi uma espécie de borrão atirado à parede com pincel grosso e desleixado. Não lhe era exigível que falasse do cível, do administrativo, do criminal, mas muito simplesmente que tivesse uma simples e clara ideia sobre a justiça, compatível com as funções de um presidente da República, mas foi o que faltou.
A propósito destes acontecimentos recentes, manifestou a sua incomodidade patriótica perante o que, do seu ponto de vista, seria a gota de água que fez transbordar o copo e, naquele seu jeito frontal, deixou escapar que demitiria o Procurador-Geral da República (se fosse, naturalmente, ele que mandasse). Uma demissão óbvia, pois claro!, a fazer lembrar aquele dito que ficou para a História de um outro candidato nos tempos da ditadura: «Obviamente, demito-o!» Nem uma palavra crítica (ou ao menos céptica) sobre o facto mediático que despoletou toda esta histeria manipulatória.
Garcia Pereira é o candidato assumidamente justiceiro. Esse, sim, candidata-se para pôr a justiça no seu lugar e para denunciar a perversão do sistema, a qual vem a traduzir-se no uso monstruoso dos poderes investigatórios do Ministério Público para fins de assassinato político. Acho que já tínhamos ouvido a formulação desse juízo, por assim dizer, cabalístico noutros sectores da esquerda não totalitária, o que prova que «les bons esprits se rencontrent». Garcia Pereira, agora com a auréola de professor doutor, lá vai difundindo a sua mensagem, tão poderosa quanto invariável, pelos vários sítios, esses sim, diferentes, por onde passa, e com isso vai dando o seu valioso contributo político, à esquerda, para a futura reforma da justiça, provavelmente no sentido de o Ministério Público deixar de instrumentalizar politicamente os processos para ser processualmente instrumentalizado pela política.
Na área da esquerda, só Jerónimo de Sousa apontou claramente a autonomia do Ministério Público como um objectivo impostergável e é dos candidatos que se tem revelado mais contido e menos asnático na área da justiça. Aí a sua posição é contrastante com aquela, manifestamente conservadora e moralista, que revela relativamente à prostituição.
E já repararam como, falando de justiça a propósito das presidenciais, a questão se resume praticamente ao processo Casa Pia, com este a reger as discussões de forma implícita ou explícita? Por que será? O processo Casa Pia é a metáfora ou a metonímia da justiça à portuguesa? A ruína da nossa justiça ou a ruína da nossa política? Ou ainda o reino do maquiavelismo de quem?

 

O «Que é a verdade?» (*)

Depois das indignações, no pós 24 horas, independentemente dos esforços de alguns lerem os factos (por exemplo aqui, aqui e aqui), parece que afinal o que mais importa não é identificar o causador, e os propagadores, da devassa (inequívoca e muito grave, mesmo que não confundível com escutas telefónicas, apesar do que dizem, nos seus habituais contributos cívicos, alguns dos ilustres juristas da nossa «praça»).
De qualquer modo, as perguntas / respostas de J. M. Fernandes no seu editorial de sábado são (uma vez mais) de antologia, pelo que merecem ser destacadas neste modesto canto, por particularmente esclarecedoras:
a) Sobre a ética pessoal de quem não «espreita através de fechaduras»: «O Público também acedeu ontem aos ficheiros informáticos onde, para além das chamadas realizadas a partir de dezenas de outros telefones. Eu próprio tenho, no meu computador, uma cópia desses ficheiros»;
b) Sobre as regras de direito probatório, para evitar um «non liquet» na falta de provas há sempre convenientes presunções «Foi então um erro involuntário da operadora de telecomunicações? Ou correspondeu a um pedido informal e ilegal da investigação?»;
c) Sobre a congruência lógica, à maneira dos velhos tempos da «Voz do Povo», primeiro diz-se: «O que ali está é pior do que ter espreitado a uma fechadura: é tê-lo feito e, depois, ter deixado “distraidamente” as fotografias ao alcance de todos» (parece que há quem para não ter de espreitar opte por copiar para o computador pessoal); mas depois pergunta-se: «os investigadores olharam para todas essas chamadas, ou eram tão analfabetos do ponto de vista informático que nem reparam que estavam lá registadas?» (então espreitaram ou não? Se leram apenas a informação imediatamente visível, a única que terá sido pedida, é porque são analfabetos... informáticos! E então como catalogar quem para ler um ficheiro de um programa corrente necessita de recorrer a um técnico informático?).

PS- Na abordagem de elevadas considerações sobre a devassa e preservação dos direitos individuais há quem faça questão de através de ratos, ratazanas, deneuves, e quejandos, não perder nenhuma oportunidade para revelar racionalidade e ética na comunicação, até porque é necessário reiterar manifestações inequívocas de elegância (felizmente tento não confundir certos personagens da blogosfera com grupos profissionais, políticos ou outras congregações, pois caso contrário teria muita dificuldade em dormir descansado).


(*)«Pilatos replicou-lhe: “Que é a verdade?”» (Jo 18: 38)

13 janeiro 2006

 

Envelopes

A notícia do "envelope 9" sacudiu o país, pelo menos o país mediático, de tal forma que a campanha presidencial parece ter chegado ao fim, quando ia a meio. Poderosa deverá ser a notícia para assim quase paralisar o país. O processo Casa Pia revela-se mais uma vez fonte inesgotável de matéria-prima noticiosa. Certamente que não ficaremos por aqui; outros episódios se seguirão, pois é dos livros da estratégia de vendas manter os consumidores amarrados. (Mas a estratégia será só comercial?)
Não deixa no entanto de espantar que a notícia tenha sido universalmente recebida como verdade incontestável, provinda ela de um órgão de imprensa conhecido pelo seu carácter especulativo e sensacionalista. Se o inquérito anunciado vier a provar que a notícia é falsa, o que têm a dizer os indignados de hoje?
Aliás, o comunicado da PT lançou já um pelo menos parcial desmentido (ao dizer que mandou toda a informação referente ao cliente, sendo o cliente o Estado, portanto mandou a informação sobre todos os telefones pagos pelo Estado às «personalidades» que a isso têm direito, apesar de ter sido pedida a de uma determinada dessas personalidades) mas aguardemos os resultados do inquérito, não é assim? Pelo menos o PR vai esperar para decidir (o PM parece que já decidiu, mesmo sem ver; influência da "alta velocidade" do TGV?). Enfim, aguardemos o "regular funcionamento das instituições".
Entretanto, ouvi uma afirmação inacreditável: a de que um tribunal ordenar escutas ou pedir informação sobre telefonemas de responsáveis políticos, em inquérito criminal, é um atentado ao princípio da separação de poderes... Berlusconi não diria melhor!
Enquanto os gulosos do lugar de Souto de Moura de que falei há dias se vão chegando mais à frente, a campanha eleitoral findou. O vencedor das sondagens agradece. Os adversários estão a fazer oposição ao PGR. Ele está já a fazer o discurso de posse.

11 janeiro 2006

 

Aborto clandestino: resolver o problema ou escondê-lo?

Mereceu honras de cobertura jornalística a proposta de Rui Pereira ao Conselho Superior do Ministério Público para que este sugerisse ao PGR a emissão de uma directiva ou recomendação genérica no sentido de o MP passar a aplicar sistematicamente às mulheres acusadas da prática de aborto a suspensão provisória do processo, proposta que acabou por ser rejeitada. Na sua coluna no Público, Francisco Teixeira da Mota comentou o facto e insurgiu-se contra a reacção "corporativa" da "corporação".
Para lá dos "corporativismos", imputação que sempre envenena qualquer tentativa de discussão em matéria de justiça, gostaria de dizer o que se segue. Há dois aspectos a considerar: o primeiro é o objectivo da proposta, a sua bondade (aplicação sistemática da suspensão provisória do processo às mulheres que abortam); o segundo é o meio encontrado (proposta ao CSMP para recomendação ao PGR para emissão de directiva ao MP).
Começando pelo segundo aspecto, direi que já por diversas vezes defendi, em textos publicados, que, mau grado caber ao PGR a direcção funcional do MP, o CSMP deverá ter um papel activo, como fórum interinstitucional, na discussão permanente da actuação do MP, seus problemas e resultados, propondo eventualmente ao PGR, ao abrigo da al. d) do art. 27º do EMP, a emanação de directivas sempre que necessário para a melhoria dos resultados. Não quero afirmá-lo perentoriamente, mas creio bem que aquela alínea nunca foi utilizada. Por isso, em princípio, o aparecimento de iniciativas que dêem vida ao preceito são bem vindas.
Só que me parece algo duvidosa a oportunidade da iniciativa citada precisamente na altura em que vai ser discutida na AR a proposta de Lei-Quadro de Política Criminal, elaborada precisamente pelo autor da proposta ao CSMP! Coincidências que suscitam dúvidas sobre o objectivo autêntico da iniciativa.
Quanto ao mérito da proposta, não tenho dúvidas em rejeitá-la liminarmente. Uma proposta como esta não resolve o problema do aborto - esconde-o (aliás, maneira muito utilizada em Portugal de "resolver" os problemas). As mulheres deixariam de ser condenadas, ficariam "suspensas". Mas o aborto clandestino continuaria! É esta a "humanista" proposta das deputadas "humanistas" do PS, que o próprio PS recusou levar a discussão na AR, mas que agora Rui Pereira, por oblíqua via, queria que triunfasse!

 

Dollar-diplomacy

Os EUA dispõem de um leque muito diversificado de meios diplomáticos, desde os que privilegiam a sedução aos que preferem a agressão, passando pelos que utilizam como "arma" o dólar. Entre estes existe também diversidade: desde o acenar de algumas "vantagens" financeiras à mais pura corrupção de governantes e diplomatas. Um meio intermédio mas muito utilizado, e perfeitamente às claras (tal é a pouca vergonha que rege as relações internacionais), é a negociação de "ajudas" militares e económicas (por vezes precedida de "negociações" muito privadas com os dirigentes).
Um exemplo recentíssimo: a Jordânia aprovou a imunidade dos cidadãos americanos relativamente a acusações por crimes da competência do Tribunal Penal Internacional. Em troca, vai receber "ajuda" militar e económica. Agitando um saco de notas, lá vai a administração americana coleccionando acordos de imunidade contra o TPI, que vê assim progressivamente reduzida a sua área de jurisdição.

09 janeiro 2006

 

Política criminal e princípio da legalidade

Um dos maiores problemas que enfrenta uma lei como a que agora é proposta pelo Governo é sem dúvida a sua conciliação com o princípio da legalidade, ou melhor, da obrigatoriedade da acção penal. A questão é tanto mais importante quanto o preceito constitucional agora invocado para dar cobertura a esta lei de política criminal, o tal 219º, nº 1, na redacção de 1997, é o mesmo que, pela primeira vez, deu dignidade constitucional ao princípio da legalidade, o qual, vigorando há muito a nível de lei ordinária, nunca tinha recebido as honras constitucionais. O próprio texto do anteprojecto não dá lugar a dúvidas: não é possível isentar nenhum crime de procedimento criminal (al. c) do art. 2º).
Mas se é assim, então como conciliar esse comando com o estabelecimento de prioridades em matéria de investigação? No preâmbulo do anteprojecto, o legislador escora-se na ideia de que «nem todos os crimes acabam por ser punidos» para legitimar o estabelecimento de prioridades na investigação. Mas, se continua a ser obrigatória a perseguição de todos os crimes, é incongruente com o sistema aceitar que alguns (os “não prioritários”?) acabem por não ser investigados.
Uma primeira solução coerente com o princípio da legalidade seria investir no sistema, ou organizar melhor os meios, de forma a aumentar a sua produtividade (palavra mágica nos tempos que correm), em ordem a habilitá-lo a cumprir as suas obrigações.
Há ainda outras soluções congruentes e transparentes para enfrentar as dificuldades decorrentes do cumprimento do princípio da legalidade: a descriminalização e a amnistia. A segunda é um meio excepcional, de que não se pode abusar, mas é certamente uma solução de maior cobertura constitucional e de maior transparência e responsabilização políticas do que o estabelecimento de prioridades na investigação. A descriminalização seria obviamente o caminho mais correcto.
Uma lei como a que é proposta redunda, ao fim e ao cabo, em amnistias e descriminalizações encapotadas (isto é, não assumidas pela AR), relativamente aos crimes relegados para o “fundo da lista”. Acaba por ser o MP o responsável (ou responsabilizado) pela não perseguição desses crimes (ou desculpabilizado, conforme as conveniências das maiorias parlamentares conjunturais). Em qualquer caso, alguém que afinal não é responsável pela definição da política criminal. Difícil será sempre estabelecer até que ponto foram esgotadas as capacidades de investigação disponíveis. Mais um tema de controvérsia e eventualmente de conflito institucional.
São ínvios os caminhos procurados para o descongestionamento do sistema processual penal. Mas será mesmo isso que se procura?

 

A verdade … os media e… a estranha “dialéctica”

Segundo o governo – que neste caso (sabe-se lá porquê) até fez uma conferência de imprensa – o ex-director do Teatro Nacional D. Maria II não soube da demissão pelos jornais: ou seja, fazendo fé na governação, alguém mente.

Quem faltou à verdade? Foi o demitido? foram os jornais? Ou (como é hábito) tudo não passa de mal-entendidos?

Independentemente do resultado final (e dos eventuais desmentidos que se poderão seguir nos próximos episódios…), o certo é que algo vai mal e muito mal.

A verdade está a tornar-se inatingível e, por vezes, para determinados interesses, até se tornará inconveniente…

O rigor na liberdade de expressão já há muito que é, por regra, uma ilusão.

A investigação prévia jornalística deixou de valer como guião.

O filme, agora, é vender e alimentar diversões e polémicas.
E, enquanto isso, o tempo vai passando e vamos esquecendo o que interessa…

Como poderemos progredir em liberdade se não dermos valor à verdade?

Será a tal crise de identidade?

 

Seringas, baldes e chutos nas prisões

As drogas constituem matéria de demarcação entre esquerda e direita. A direita não desiste de acabar com as drogas (se possível, também com os drogados); a esquerda admite uma abordagem diversificada, dentro da qual a “redução de danos” adquiriu ultimamente uma relevância central. A direita não se conforma: admitir a redução de danos é admitir a "derrota" perante o inimigo-droga…
O último episódio deste confronto em Portugal foi o debate parlamentar sobre os projectos legislativos dos Verdes e do BE sobre trocas de seringas e salas de injecção assistida em meio prisional. A direita é contra e ponto final. Mas um argumento muito curioso foi invocado: o do balde higiénico (se o Sine Die não fosse um blogue decente, diria que se trata de um argumento de merda). O tal argumento é este: enquanto as prisões não dispuserem das condições higiénicas adequadas, enquanto todas as condições sanitárias não estiverem criadas, enquanto, em suma, o balde higiénico existir, a prioridade não pode ser a redução de danos.
Só que se estivermos à espera do fim do histórico balde higiénico e do começo de uma nova era nas prisões, os reclusos continuarão a morrer a ritmo cada vez mais acelerado… E muitos milhares que são consumidores, efectivos ou eventuais, frequentes ou esporádicos, conforme a facilidade de abastecimento intra-prisional, mesmo que não morram (não vamos ser tão fatalistas) verão naturalmente agravadas as suas condições de saúde. Como o próprio deputado Fernando Negrão reconheceu, “reduzir danos é melhor do que não fazer nada”. É disso e apenas disso que se trata: fazer alguma coisa pela saúde dos reclusos. Por outras palavras: humanismo e pragmatismo versus autoritarismo e dogmatismo.

 

Sobre a cegueira

No número de 6ª-feira, o Público trazia na 1ª página, logo ao cimo, uma notícia intitulada «Homicidas beneficiam de indulto dado por Sampaio». Não deixa de ser estranho como um acto eminentemente oficial como este seja atribuído de uma forma muito coloquial ao «Sampaio», em vez de ao PR… Mas o pior do título era evidentemente o alarmismo que objectivamente lançava: os homicidas (todos?) estão à solta na rua, cuidado! No curto texto inserido na 1ª página, o título sofria uma primeira desdramatização: afinal tinha havido apenas 56 indultos e, destes, de «pelo menos» 10 indivíduos condenados por homicídio; e acrescentava-se que «graves problemas de saúde ou filhos menores» seriam as razões preponderantes que fundamentaram os indultos. Nas páginas interiores, desenvolvia-se e contextualizava-se o assunto, dando conta da opinião de dois ilustres juristas, professores universitários, Rui Pereira e Paulo Rangel, que explicavam os fundamentos históricos e constitucionais do direito de indulto, o seu carácter excepcional, assim fundamentando e credibilizando a decisão do PR. Quem lesse tudo ficava bem informado. Quem lesse apenas o título da 1ª página ficava no mínimo alarmado. Isso não poderia certamente ser ignorado pela autora da notícia ou pelo director de serviço.
A confirmação dos perigos do título veio logo no dia seguinte. Uma colaboradora habitual, Helena Matos, jornalista e historiadora, directora de uma revista muito badalada (Atlântico), aproveitou de imediato a deixa e logo no jornal do dia seguinte publicou uma crónica intitulada Cega. Todos os lugares comuns da direita reaccionária sobre a criminalidade ali são expostos e não falta mesmo o choradinho da comparação do trabalhador despedido com o que é vítima de um assalto (a deixar no ar que é muito melhor ser despedido do que assaltado!) e ainda um “exemplo edificante”: o de um tal Francisco Ramírez (?), que matou a tiro dois assaltantes que lhe invadiram a casa (ignora a autora que o direito de legítima defesa é incontestável?). É uma amálgama confusa de histórias e argumentos que não conduz a uma qualquer proposta ou sequer conclusão. Apenas a mais uma acusação contra a “justiça”, a tal “cega”, evidentemente. Presume-se que seja uma justiça que está do lado dos maus. É interessante constatar como a antropomorfização da justiça é uma constante no discurso mediático, sempre para a sobrecarregar de culpas e anátemas, escamoteando o pluralismo e a diversidade que caracterizam necessariamente a actividade judiciária. A esse tema voltarei. Por agora, resta-me (tentar) denunciar a cegueira dos que julgam ver.

08 janeiro 2006

 

Jogos dominicais de semelhanças

Será que a Alemanha nazi, a Itália fascista, o Portugal de Salazar, a Espanha de Franco, a Grécia de Papadoulos, o Chile de Pinochet e a Indonésia de Suharto tinham algo em comum? Parece que há quem pense que sim. O que justificará a observação dominical, além do tédio gerado pela perspectiva da segunda-feira, não será tanto a constatação do óbvio (será sempre possível encontrar pontos comuns entre quaisquer regimes), mas as linhas de continuidade seleccionadas e o contexto do exercício...

07 janeiro 2006

 

A transparente estratégia na relação dialéctica…

Quem deambular hoje pelo Expresso apercebe-se, por exemplo, que existe uma relação de especial “dialéctica” entre o Ministério da Cultura e (para já…) os Ex-Director e Ex-Presidente de conhecidos organismos culturais: o Teatro Nacional D. Maria II e o CCB.

Fazendo fé nas notícias, todos ficamos a saber que, por um lado, António Lagarto terá tomado conhecimento da sua demissão através dos jornais e, por outro, João Fraústo da Silva dirá que a sua exoneração foi ilegal.

Será que temos (nós, os que pagamos os devidos impostos) de continuar a sustentar as cores da “intervenção” cultural? Será que a Cultura deverá submeter-se a orientações políticas? O que é a Cultura e como a devemos “gerir”?

Afinal, o que se passa com as nomeações governativas? O que é que está em jogo? O que ditou, anteriormente, a nomeação dos agora demitidos ou exonerados?
O essencial é a competência, a eficácia e o interesse nacional ou a colocação estratégica em função de v.g. superiores interesses partidários?

O que todos vão dizendo - quer no passado, quer no presente - é que há um cíclico “roulement” e uma ambígua ligação perigosa entre determinadas pessoas e certos cargos “interessantes”, consoante o partido A ou o partido B chega ao poder.
Também não são nenhuma novidade as verdadeiras ou falsas demissões, por vezes “convenientes” – tantas vezes com custos financeiros insuportáveis para cofres tão vazios – e a sua publicitação surpreendente através dos media.
Ficamos é sem saber quem fala verdade ou mente. E, as meias verdades muitas vezes encobrem mentiras.

O certo, certo, é que os dados são lançados com verdade ou mentira ou ambas à mistura mas, depois, já não interessa saber o resultado desse lançamento…talvez isso já não seja a notícia que vende, ou então, é o desinteresse interessado…

Mas, divagando, agora, para a confiança política, parece (na minha ignorância assumida), que poderá, enfim, ser um factor a ponderar em determinadas nomeações políticas mas, por certo, não se poderá sobrepor à competência e à eficiência, nem tão pouco ao interesse nacional.

Também não se poderá confundir a cor do poder da governação com «privilégios políticos» da mesma coloração, esteja quem estiver a exercer esse poder.

Se a pessoa que exerce determinada função é competente, necessariamente que terá de se pautar pela rectidão, pela isenção, merecendo a confiança geral. A maior dificuldade está em encontrar os competentes e, depois, convencê-los a aceitar as nomeações…

Com este "post" não se pretende pôr em causa a competência dos nomeados ou dos demitidos ou exonerados mas, tão só, chamar à atenção para a forma como tudo se vai processando por todo o lado, quer no passado, quer no presente, por ciclos…

Claro que o cidadão vai continuar a perguntar: aonde está a tão propagandeada transparência? Quem fala verdade? Os jornais, os políticos ou os demitidos e exonerados? O que os move? Serão todos iguais? Mas quem é que tem razão? Já foram feitas as necessárias mudanças profundas? E porque não são feitas?
Eu também não sei!? Mas estou à espera (claro que sentada) de ver realizadas as ambicionadas mudanças.

 

Política criminal: o que é?

Importa antes de mais saber de que estamos a falar quando falamos de política criminal. O anteprojecto de lei do Governo não é explícito, não fornece uma definição de política criminal. Mas avança com algumas afirmações que importa analisar. Reconhece desde logo que a definição dos crimes e das penas e do processo penal se integra nessa política. Mas logo acrescenta que a política criminal não se esgota na aprovação de leis penais, competência da AR. Há “algo mais”. E aqui entra o Governo: enquanto responsável pela condução da política geral do país, nos termos do art. 182º a Constituição, o Governo teria o poder de definição da políticas de segurança e da política criminal.
Assim, a política criminal parece ser entendida como política legislativa mas também como política administrativa, a par da política de segurança. Mas quais os limites materiais entre função legislativa e função administrativa nesta matéria? Como conciliar estas duas distintas funções do Estado numa só política? Qual a natureza constitucional da política criminal? Perguntas a que o referido preâmbulo não dá resposta.
A tendência para fundir política de segurança e política criminal, ou reduzir esta àquela, ou seja, para administrativizar a política criminal é irresistível no mundo de hoje, e levada a extremos completamente intoleráveis a propósito do combate ao terrorismo. Mas é uma tendência que deve ser criticada e rejeitada. A segurança e a prevenção criminal são evidentemente tarefas administrativas, como medidas de promoção de certos valores (ordem e tranquilidade públicas, bem estar social, qualidade de vida, etc.). Mas não assim a política criminal, que tem em vista a protecção de bens jurídicos em função da punição das condutas que os viola(ra)m, restaurando a paz jurídica da comunidade e repondo na medida do possível os direitos da vítima.
A distância que medeia entre promoção e restauração espelha a diferença entre função administrativa (segurança, prevenção criminal) e função judicial. A administração adopta políticas para eventuais factos futuros, enquanto os tribunais trabalham exclusivamente sobre factos passados. A administração pretende evitar a produção de factos nocivos à comunidade; aos tribunais compete punir os que (já) cometeram crimes e reparar na medida possível a ofensa já praticada.
Os critérios e métodos de actuação são também muito diferentes: a administração rege-se por critérios de oportunidade e de conveniência; os tribunais por critérios de justiça. A actividade da administração é essencialmente pró-activa e conformadora; a dos tribunais é reactiva e cognitiva.
O anteprojecto enferma, pois, deste vício fundamental: confundir política legislativa com política administrativa e actividade administrativa com actividade judicial.

06 janeiro 2006

 

Política criminal: que justificação?

A iniciativa legislativa de criação de uma Lei-Quadro de Política Criminal tem sido justificada como preenchimento do comando do art. 219º, nº 1 da Constituição, que desde a revisão de 1997 estabelece que o MP participa na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania.
Desta modificação do preceito resultará alguma obrigação legiferenda, nomeadamente a que agora é proposta pelo Governo?
Vejamos o que, a propósito, escreveu José Magalhães no seu Dicionário da Revisão Constitucional, Ed. Notícias, 1999 (e vale a pena transcrever): «A especial insistência do PSD numa alusão à execução da política criminal gerou inúmeros “ensaios de norma” – rejeitados por poderem colidir com a autonomia. Finalmente, em sede de Acordo de Revisão, atingiu-se a fórmula que veio mais tarde a ser proposta na CERC. Dela não decorre nenhuma colocação da hierarquia do MP na dependência de directrizes do Governo. No limite, se o Executivo entender que o supremo responsável do MP não cumpre a lei criminal e a estratégia que dela decorra, pode propor ao PR a demissão do PGR. E o Parlamento tem significativa margem de intervenção: definição do estatuto do MP, criação de regras processuais e outros instrumentos que assegurem a eficácia no combate aos diversos segmentos do crime; organização interna do MP adequada à articulação com magistraturas homólogas de outros países; dotação de meios; garantia do efectivo poder de direcção do MP sobre as polícias, etc.» (ob. cit., p. 196).
Como se vê, este autor, que foi um dos mais activos interventores da revisão constitucional de 1997 e foi um dos negociadores do tal Acordo de Revisão (reproduzido na ob. cit., p. 215), omite qualquer referência à necessidade de produção legislativa para dar cumprimento ao novo preceito e exclui expressamente a faculdade de emissão de directrizes do executivo ao MP. Enumera antes uma série de meios postos nas mãos quer do Governo quer da AR para intervirem na acção do MP sem lesão da sua autonomia e sem necessidade de emanação de directrizes dirigidas ao MP! Isto significa seguramente que tal faculdade não estava presente no espírito dos “revisores” de 1997 e que estes não consideravam ser necessária qualquer iniciativa legislativa como decorrência automática ou obrigatória da alteração do citado art. 219º, nº 1 da Constituição. Difícil é pois aceitar que agora se diga que existe uma omissão legislativa e que o projecto apresentado constitui o seu suprimento.
De salientar que também Gomes Canotilho, no seu Direito Constitucional e Teoria da Constituição, é omisso sobre a omissão. E é com cautela e alguma hesitação que se pronuncia sobre a alteração do texto constitucional. Embora comece por salientar que a participação do MP na execução da politica criminal é uma «outra competência de relevante significado político e jurídico-constitucional», umas linhas adiante refere que essa função é um “corolário lógico” das competências constitucionais do MP (logo, não traz qualquer novidade, não é assim?) e termina dizendo que o preceito «não deixa de criar algumas zonas de incerteza nas relações entre o executivo e o judiciário» (ob. cit., p. 597).
A análise mais desenvolvida sobre a nova redacção do art. 219º, nº 1 é porventura a de Paulo Dá Mesquita (em Direcção do inquérito penal e garantia judiciária, Coimbra Ed., 2003, pp. 340 ss.). Aí se conclui que a atribuição daquela função ao MP «reforça a necessidade de mecanismos reguladores dos fluxos informativos entre o MP e o Parlamento (…) e o Governo (…).» (p. 345). Mas não afirma a necessidade da criação de novos mecanismos (apenas o seu reforço) e fala de «fluxos informativos» e não directivos.
Também Figueiredo Dias se pronunciou sobre a matéria (em comunicação apresentada na sessão comemorativa dos 25 anos da primeira Lei Orgânica do MP, promovida pela PGR, comunicação essa publicada em 25 anos do Estatuto do Ministério Público, Coimbra Ed., 2005, pp. 71 ss.). Este autor parece acolher com entusiasmo a nova redacção constitucional (embora sem se referir expressamente a ela), dentro dos parâmetros de uma «responsabilidade comunitária» do MP, contraponto legitimador da sua autonomia. Questionando-se sobre a necessidade de uma reforma legislativa, furta-se a responder com precisão, embora pareça inclinar-se no sentido afirmativo, sem fornecer porém quaisquer pistas quanto aos contornos de tal «reforma».
O que pessoalmente concluo desta rápida indagação doutrinária é que não é minimamente seguro que a nova redacção do art. 219º, nº 1 da Constituição imponha a criação de uma novo mecanismo de informação (muito menos de direcção) entre os órgãos de soberania (AR e Governo) e o MP. Ainda que se entenda que a revisão do preceito atribuiu uma nova função ao MP, já existem mecanismos de intervenção por parte daqueles órgãos de soberania suficientes para lhe dar execução: são precisamente os enumerados por J. Magalhães. A que há que acrescentar a participação no CSMP de 5 membros eleitos pela AR e 2 personalidades designadas pelo MJ. E mais ainda: o poder do MJ de comparecer nas reuniões do MP «quando entender oportuno, para fazer comunicações e solicitar ou prestar esclarecimentos» (art. 80º do EMP). Tudo isso são instrumentos de controlo e responsabilização da actividade do MP por aqueles órgãos de soberania.
Estes mecanismos têm tido escassa ou nula utilização. Não foram aproveitadas as suas virtualidades. Por isso, o mínimo que se poderá dizer sobre a oportunidade da nova lei é que é prematura ou precipitada.

 

Maiorias absolutas

As maiorias absolutas são para governar. (E consequentemente as minorias são para serem governadas). Ponto final. Os deputados das minorias são um bom adorno para o hemiciclo. E podem até propor "contribuições" para os projectos da maioria! Mas não se iludam: a maioria absoluta é que governa. Alberto Costa dixit. Ficou bem explícito qual é o papel da oposição em regime de maioria absoluta. É uma contribuição para a teoria constitucional. Esperemos novas contribuições porque haverá seguramente novas oportunidades.

04 janeiro 2006

 

Justiça e economia

Marques Mendes anunciou que vai hoje propor na AR um "acordo reformista" para o sector da justiça, em ordem a retirá-la da "crise". A ideia parece óptima. Mas a motivação já não tanto. Na verdade, e segundo palavras suas citadas pelos jornais, «este sector é também determinante para o bom funcionamento da economia» e «uma importante alavanca para o crescimento económico, para atracção de investimento e para a criação de um clima de confiança indispensável ao funcionamento colectivo».
O segredo pode estar naquele "também". Mas estranha-se em todo o caso que se tenha omitido que a justiça é "também" a "alavanca" de defesa dos direitos dos cidadãos e um pilar do Estado de direito democrático.
Pode dizer-se que isso é óbvio. Mas por vezes omitir o óbvio é significativo. Significativo das preocupações e das prioridades.

01 janeiro 2006

 

Novo quadro para a política criminal (5) - A Assembleia da República e o Governo - governamentalização?

No sistema constitucional português a Assembleia da República é o órgão com primazia na definição da política criminal, pelo que se apresenta como fundada a opção da proposta de lei do Governo de lhe atribuir o poder central de definição das coordenadas centrais de política criminal.

O Governo comparticipa na definição da política criminal, por força das suas competências de iniciativa legislativa (não reservada pois não existe nenhum princípio de inoficiosidade do Parlamento), pode legislar ao abrigo de lei parlamentar que o autorize em matéria de crimes e processo penal e tem poderes / deveres de avaliação de tendências da criminalidade, dos resultados das medidas legislativas, das entorses e disfunções na aplicação da lei e da necessidade de rectificações normativas. O Governo é ainda o órgão responsável pela política de segurança, pela tutela organizatória e disciplinar dos órgãos de polícia criminal e pela dotação de meios das autoridades judiciárias.

A questão nova suscitada pela proposta de lei do Governo centra-se no sentido e nas inovações operativas de um novo espaço de definição de política criminal por via de resoluções e não de leis.

Apenas quatro notas sobre o que tem sido dito relativamente aos poderes formais de aprovação das resoluções:

1. Dada a base constitucional do novo instrumento de «definição da política criminal», o carácter distintivo do mesmo parece ser a natureza não normativa das resoluções por comparação com as leis.

2. Daí que se deva reconhecer sentido lógico-jurídico à afirmação de que o poder da maioria parlamentar de emitir resoluções sobre política criminal não deva ser (no plano formal) mais limitado do que o poder legislativo que a mesma detém em matéria penal.

3. Mas se é um imperativo lógico-jurídico, e não político, que está na base de tais opções também não tem sentido condicionar o poder parlamentar (e não apenas das conjunturais maiorias simples) de iniciativa própria, que persiste quanto às leis, mas que inexiste em sede das noveis resoluções (cuja aprovação e alteração estará, na versão proposta, sempre dependente, do impulso governamental, vejam-se arts. 7.º, nº 1 e 8.º, nº 2, da proposta de lei );

4. Até porque tal limitação dos poderes constitucionais da Assembleia da República por via de simples leis ordinárias é, no mínimo, constitucionalmente duvidoso.

Acrescente-se que a redução da margem de acção do parlamento, por contraponto ao Governo, tem uma outra manifestação mais subtil no próprio procedimento de preparação das resoluções, centralizando-se no Governo o processo de audições prévias (art. 8.º da proposta) e não no órgão decisor, não se regulando, sequer, um procedimento parlamentar específico para aprovação das resoluções (que vá além da simples audição do procurador-geral da República fixada no art. 9.º), em particular, não se fazendo qualquer menção a um trabalho prévio em comissão parlamentar (no caso da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias), que além de acentuar o escrutínio democrático e a dignificação parlamentar, poderia constituir um espaço para reforçar a análise responsável e independente das propostas.

Já em sede de prestação de contas, a limitação dos relatórios do governo à prevenção criminal e à execução de penas (art. 12.º) é um sintoma revelador de que por essa via se pode subtrair o executivo à via mais plena de escrutínio, no quadro parlamentar, das suas responsabilidades, quer no que concerne aos órgãos de polícia criminal (veja-se o que se referiu aqui), quer no que concerne à dotação de meios das autoridades judiciárias (materiais, humanos e mesmo legislativos).

Em síntese, a proposta de lei tem elementos de governamentalização do processo de iniciativa de definição da política criminal (embora preservando o poder de decisão final da maioria parlamentar, aliás, necessário para evitar a inconstitucionalidade da proposta) prevendo de forma deficitária mecanismos sistemáticos para a prestação de contas pelo governo relativamente a uma importante parcela das suas funções enquanto cabeça do poder executivo.


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