30 dezembro 2012

 

Detachment


Foi um texto do João Lopes (dos poucos “críticos” de cinema que vale a pena tomar em linha de conta) que me chamou a atenção para este filme de Tony Kaye (realizador de América Proibida), com um extraordinário Adrien Brody no papel principal e vários secundários de peso liderados por James Caan.
O filme centra-se na problemática vida de um professor substituto (com o ambivalente nome de Henry Barthes) numa escola pública de Nova York.
O nome do filme em português O Substituto começa por deixar pelo caminho a subtileza e a importância do título original, extraído de uma citação de Albert Camus, com a qual o filme se inicia ("And never have I felt so deeply at one and the same time so detached from myself and so present in the world").
Poder-se-ia dizer que é um filme sobre o distanciamento, sobre a indiferença, sobre a incapacidade de ver e sobre a dificuldade de educar num mundo sobrecarregado de imagens (How are you to learn anything if all of the images are provided for you?”).
O silêncio que rodeou este filme entre nós e a rapidez da sua exibição (já só está no UCI à meia-noite) é bem sintomático dos tempos de patetice cinéfila e comunicacional em que nos movemos.
Um excelente texto, uma estética muito apurada, música perfeita, grandes interpretações e um tema actual e controverso que nos deixa a pensar.
Em suma, um grande filme que não deixa realmente ninguém indiferente.

28 dezembro 2012

 

Pela borda fora


 

Não quero deixar extinguir o ano sem este comentário, que me foi sugerido por uma discussão entre amigos, à mesa do restaurante.

As medidas de austeridade que têm vindo a ser tomadas correspondem a opções ideológicas bem marcadas. Isto é mesmo uma verdade «à Monsieur de La Palisse», mas parece haver pessoas que ainda acreditam na sua indispensabilidade ou neutralidade. Governar implica escolher entre vários caminhos possíveis, entre várias opções, entre valores em confronto, e nisso vão implicadas posições ideológicas, por mais que os seus autores se esforcem por ocultar essa natureza.

O facto de muitas das medidas tomadas se enquadrarem no âmbito do «memorando da troika», é um óptimo alibi para se ocultar o carácter ideológico delas, mas a verdade é que as opções da «troika» são, também elas, ideológicas, visto que implicam escolhas económicas, sociais e políticas, em que são visíveis (para quem fizer um esforçozinho para ver) determinadas concepções acerca dos interesses económicos que devem imperar, não só no espaço português, como no espaço europeu e até mundial, da ordenação das relações sociais e, dentro destas, das relações laborais, dos modos de atalhar à “crise” e de quem deve, fundamentalmente, suportá-la, escondendo sempre a sua natureza e a sua origem, do tipo de ingerência no espaço de soberania dos países mais vulneráveis, ou seja, os mais atingidos pela dita “crise”, etc., etc., etc.

Em Portugal, as medidas tomadas têm um cunho ideológico cada vez mais evidente.

Vejam-se, por exemplo, as mais recentes e polémicas declarações do primeiro-ministro sobre as pensões dos reformados. Essas declarações traduzem a forma pouco amistosa como se encaram os reformados e as pensões que auferem.

Com efeito, para um certo sector ideológico que intenta impor-se, os reformados são uma franja social mal tolerada, porque constituída por gente improdutiva e que, por isso, constitui um fardo para o Estado e para as novas gerações. Lembremos que as declarações a que me refiro foram proferidas numa assembleia muito especial, justamente «a juventude social-democrata», onde foi destacado que as actuais gerações de trabalhadores é que suportam, com as suas contribuições, as pensões dos reformados e que estes (ou grande parte destes) não descontaram, durante a vida activa, os quantitativos suficientes para cobrirem as suas reformas.    

Deste modo, o que está aqui em causa é uma determinada concepção de segurança social que se aproxima da chamada «concepção patrimonialista», que tem vindo a fazer terreno no seio da ideologia neoliberal e que se traduz na correspondência que se pretende fazer estabelecer, estritamente, entre as contribuições pagas e o valor das reformas que vêm a ser auferidas.

Mas o que mais confrange é a quebra de solidariedade intergeracional que uma tal solução implica e o fosso que se cava entre cidadãos produtivos e cidadãos arrumados numa prateleira.    

A Constituição da República tem uma palavra a dizer sobre isto, mas parece ser uma palavra proscrita.

16 dezembro 2012

 

...e outro em Angola, 1961

Acabo de ler no "Público" o facsimile do relatório de um capitão português sobre o fuzilamento e subsequente decapitação de 5 ou 6 "terroristas" em Abril de 1961 em Angola.
O que arrepia é o tom oficial, seco, burocrático, do documento. Exatamente como faziam os membros das SS.

 

Mais um massacre

Correndo o risco de repetir muito do que aqui já foi dito pelo Artur Costa, não posso deixar de dizer também alguma coisa sobre mais um massacre na "América".
O que é realmente mais perturbador nestes massacres recorrentes nos EUA é o facto de ocorrerem em ambiente (aparentemente) pacífico, contra inocentes, praticados por jovens integrados, e sem motivos aparentes, pelo menos sem motivos político-ideológicos.
Serão um ato de revolta... Mas contra quê ou quem?
O que é manifesto é o desprezo pela vida humana, ou o diminuto valor que lhe é atribuído.
Note-se que esta chacina aconteceu no Connecticut, que não é propriamente o Far West, numa pequena cidade, sem qulquer registo de conflitualidade social.
É evidente que a liberdade de posse de armas, um direito de cidadania segundo a Constituição daquele país (e não há cidadão que se preze que não tenha uma arma, pelo menos), favorece essas ocorrências.
Mas não pode ser só isso. Porquê atacar crianças? Porquê atacar escolas? Porquê matar em massa? A reiteração de atos deste tipo não será certamente ocasional.
Há factos que não podem ser escamoteados.  A cultura da violência é dominante naquele país. São as permanentes guerras em que está envolvido (com o culto dos seus "heróis"), e guerras internas, como a "guerra às drogas" (que é largamente uma guerra contra os negros), a guerra contra os imigrantes... É a pena de morte, um inequívoco "valor cultural" americano. É a "cultura popular", impregnada de violência, de pistolas, de assassinatos, de organizações criminosas...
É claro que, em oposição, temos a "Música no Coração", o universo Walt Diney, e outros produtos afins (aliás também muito comerciais...).
Temos também as lágrimas de Obama, bem ensaiadas... (antes das eleições teriam sido mais rentáveis, mas ficam sempre bem...) Mas para que servem?
As raízes da violência serão demasiado profundas para poderem ser atacadas sem desfiguração do "sistema"...

15 dezembro 2012

 

O massacre


 

 

Mais um massacre numa escola, desta feita, no Estado de Connecticut.

Um indivíduo de 24 anos, armado com quatro armas de fogo e vestindo um colete à prova de bala, irrompe numa sala de aula e mata 27 pessoas, entre as quais a sua mãe e 18 crianças com menos de 10 anos. Depois disparou uma das armas sobre si próprio.

O que é que levará estes jovens americanos a terem tal predileção pelas escolas, matando alunos e professores?

O efeito Columbine?

E antes do efeito Columbine era o quê?

Que raiva, que negatividade pretendem eles exprimir?

Por que não se suicidam, pura e simplesmente?

Suicidam-se como coroamento final de uma vontade enorme de devastação?

Ou, simplesmente, para fugirem à justiça?

Se querem provocar um massacre, por que é que não atam à cinta uma quantidade de bombas, como acontece na Palestina, em Israel, no Iraque?

A liberdade de compra e venda de armas e de uso e porte de qualquer arma, se facilita actos desta natureza, não me parece que constitua a sua verdadeira justificação. Não. A motivação mais profunda está noutro lado, num outro complexo de razões.

Naqueles países acima referidos, os kamikaze  matam-se, querendo provocar o máximo possível de devastação, mas actuam  ainda por uma causa (política, religiosa, étnica) ou para vingarem uma humilhação colectiva. E muitos acreditam que são mártires e que, depois, irão para os anjinhos (sem metáfora).

Mas, em casos como este de Connecticut, que sentido (ou que sem sentido) para o massacre?

É essa interrogação que é profundamente perturbadora.

14 dezembro 2012

 

A descoberto


 

Personalidades  de várias sensibilidades ideológicas têm afirmado nos últimos dias que o que se está a passar no nosso país é a transição para uma realidade outra, sem caução constitucional. O constitucionalista Jorge Miranda diz que é o Estado social que está em risco, defendendo a fiscalização preventiva do orçamento para 2013. Gomes Canotilho, por seu turno, afirmou que se está em vias de criar uma outra realidade à margem da Constituição e que o orçamento representa um confisco para uma grande parte dos portugueses. Mário Soares teceu duras críticas à política que tem vindo a ser seguida, caracterizada por um retrocesso sem precedentes, em que muitos portugueses estão a cair em situação de carência, em muitos aspectos pior do que antes do “25 de Abril”.

São afirmações que não têm nada de inédito, porque têm andado na boca de milhares de portugueses que se manifestam nas ruas e que se ouvem diariamente nos mais variados  locais. A citação daquelas personalidades tem apenas o condão de conferir autoridade ao que anda na boca de muita gente.

A última novidade é as indemnizações por despedimento irem ser baixadas para um limite de 12 dias por cada ano de antiguidade. A destruição dos direitos sociais, nomeadamente dos trabalhadores, não tem fim. Depois de ter sido completamente desfigurada, a legislação laboral continua a ser alvo predilecto desta política. São os chamados “custos do trabalho”, (linguagem economicista que desmascara a ideologia que lhe subjaz) que se pretendem reduzir ao mínimo e, se possível fosse, levá-los até ao zero.

Trabalhadores e classes médias não cessam de estar na berlinda.

Trata-se de uma política que não só ultrapassa limites constitucionais, como não foi sufragada nas eleições.

13 dezembro 2012

 

O bom samaritano

A princípio, interpretei a atribuição do prémio Nobel da Paz à União Europeia como um gesto irónico. É que a distinção ocorre precisamente numa situação em que a União Europeia vive uma das suas maiores crises, sofrendo de um notório défice de democracia, subvertendo os princípios e as regras basilares que permitiram estes últimos sessenta anos de relativa paz e de bem-estar, desbaratando todos os fundamentos de solidariedade, destruindo todas as conquistas sociais, sugando os mais fracos e os Estados periféricos e estabelecendo as condições para o reacender de agudos conflitos sociais, enfim, fazendo alastrar a revolta, a violência e a instabilidade. Tudo condições que não são propícias à paz.

Porém, seria estulto pensar que o “comité Nobel” quis ironizar com esta trágica situação. Uma instituição tão nobre tem objectivos mais elevados. O que se terá querido com a atribuição do prémio foi instigar a desunida União Europeia, tão em queda para a sua desintegração, a arrepiar caminho e a inflectir o rumo da sua precipitação.

Digamos que há, aqui, um intuito pedagógico. Mas não sei se as louváveis intenções do “comité Nobel” terão bom acolhimento por parte dos actuais senhores da Europa em decadência. Viu-se o efeito que essas boas intenções tiveram em Barack Obama e, sobretudo, naqueles que, indirectamente, o “comité Nobel” quis sensibilizar através dele.

Dessa forma, o “comité Nobel” arrisca-se a ser uma espécie de “bom samaritano”, mas não a premiar os verdadeiros fautores da paz.

12 dezembro 2012

 

A festa de Natal da UE

Numa época em que a UE se desagrega, em que se rompem os laços que laboriosamente tinham sido atados ao longo de décadas, numa altura em que os países ricos abandonam os pobres e, pior que isso, os desprezam ostensivamente e castigam imoderadamente, é nesse momento que esta desconjuntada união recebe, incrédula, um prémio por ações passadas (e nas quais os atuais dirigentes não se reveem). Apanhados de surpresa, os dirigentes europeus esforçaram-se por mostrar que ficaram encantados. E na cerimónia de entrega em Oslo, a que compareceram em massa (até o nosso representante lá foi, desperdiçando dinheiros públicos), quiseram-me mostrar-se uma família unida, de mãos dadas ricos e pobres, felizes e confiantes num futuro sem amanhã. Sabiam todos bem que aquilo era uma espécie de festa dos Natal dos hospitais: acabada a festa, volta a realidade, a nua e crua realidade.
O Comité Nobel considera-se feliz por promover a reconciliação de irmãos desavindos (nem que seja por uma tarde). E tem na agenda outros premiáveis: a NATO, o FMI, até a CIA, todos com um palmarés notável na proteção dos países fracos e na promoção dos pobres e necessitados. Tudo a bem da Paz!

10 dezembro 2012

 

Uma gravidez real e a realidade da "autorregulação" da comunicação social

A família real inglesa é, a par do futebol (premier league), a maior indústria da Grã-Bretanha. Não é fantasia minha. O impacto da realeza na economia é enorme: no turismo, no "merchandising" associado, na manutenção de toda uma imprensa que vende aos milhões, com difusão em todo o mundo, no cinema, aliás em todo o audiovisual. Enfim, a família real dos Windsors é efetivamente uma marca comercial poderosa, com influência notória no PIB daquela velha potência.
Essa marca, para se manter viva, impõe uma permanente provisão de novos motivos para manter o interesse dos consumidores: são as exigências do mercado. E assim, quando faltam acontecimentos maiores, servem mesmo minudências triviais, como a discreta orgia dum príncipe algures em Las Vegas, ou o traje ainda mais discreto (ao ponto de não cobrir os seios) de uma princesa passeando em local privado. Embora menores, estes pequenos sucessos, captados por uma legião de "jornalistas" especializados, abastece a indústria do tablóide, dá emprego a muita gente, e mantém a marca sempre viva. Mas de vez em quando há um acontecimento maior: um casamento, um batizado, um funeral, um divórcio. Uma simples gravidez já entra nessa categoria de eventos. Foi o que aconteceu agora com Kate, a tal princesa outrora captada à distância de seios (reais) nus. A comoção apoderou-se de todos os consumidores da marca. A indústria do tablóide mobilizou-se. É realmente um achado: não é um acontecimento instantâneo ou de um dia, vai durar 9 meses e desembocar em sucessos posteriores (batizado, etc.). O escrutínio já começou: os primeiros enjoos da real grávida, a ida ao hospital. Tanta coisa que ainda virá... A marca está de parabéns.
Apenas um contratempo, se o é: a morte da enfermeira indiana que respondeu a um falso telefonema da rainha a pedir informações sobre o estado da grávida, na verdade um telefonema de "jornalistas" sem escrúpulos fazendo-se passar pela real senhora. Não podendo associar-se a morte ao telefonema, evidentemente, pelo menos numa relação de causa/efeito, o recurso a esse estratagema para obter informações confirma, mais uma vez, o que é a "autorregulação" da comunicação social.
(Outro caso: o da fotografia do homem prestes a morrer no metro de Nova York, publicada pelo "New York Post" no dia 4 - ver notícia no "Público", do dia 7, p. 34).

04 dezembro 2012

 

Juncker dá o dito por não dito

Juncker, que parecia um homem sério, veio agora fazer uma figura vergonhosa, que faz lembrar certos políticos cá do burgo: duma semana para a outra veio dizer o contrário do que tinha dito quanto à eventual "suavização" das condições impostas a Portugal. Mas o pior foi a "explicação" que deu: diz ele que foi surpreendido pelos jornalistas portugueses num "canto escuro" (certamente algum traumatismo de infância) e "em condições desconfortáveis"... E que percebeu mal a pergunta, etc.
É grotesco! É confrangedor haver dirigentes europeus assim... Certamente terá recebido entretanto um telefonema de Schaeuble e não teve vergonha em dar o dito por não dito. Assim se percebe que a Europa atual não tem rumo nem dirigentes dignos. Terá capacidade para se autorregenerar?

 

Uma constitucionalista contra a Constituição

No "Público" de hoje, uma senhora chamada Maria Benedita Urbano, que se intitula "professora de direito constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra", vem advertir solenemente o Tribunal Constitucional para ter muito cuidado ("ponderar bem") com a eventual apreciação da constitucionalidade do Orçamento, porque, na sua autorizada análise, "um direito de crise (in casu, de combate à gravíssima crise económico-financeira) não pode ser lido, por quem tem o dever constitucional de controlá-lo, como um direito em tempos normais." Diz ainda outras enormidades que não vale a pena citar.
Sinceramente, leio e não acredito! A Faculdade de Direito de Coimbra (a "minha" Faculdade...) desceu a este nível? Como é possível uma professora de direito constitucional dizer que a Constituição não vigora em tempo de "crise"? Não deverá a senhora ser remetida para o ensino de outro ramo de direito onde faça menos mossa ao nome da Faculdade?

03 dezembro 2012

 

A liberdade de imprensa em Inglaterra

A Inglaterra terá sido o país em que o fenómeno da tabloidização da imprensa mais se fez sentir. Há exemplos por todo o lado, mas parece que foi ali que todos os efeitos perversos desse fenómeno se realizaram com intensidade: a convicção de que vale tudo para vender papel de jornal, a utilização de formas sujas (e ilícitas) de adquirir informações, as ligações espúrias às polícias, os pactos obscuros com partidos políticos, com troca de favores e de benefícios... E isto tudo à pala da sagrada "liberdade de imprensa", e da "autorregulação".
O Partido Conservador foi apanhado na teia e tenta sacudi-la. Nada melhor do que arvorar-se em defensor radical da "liberdade de imprensa" e da dita "autorregulação"... Em Inglaterra, diz, não há lei de liberdade de imprensa desde o sec. XVII (penso eu que antes também não haveria...).
Contudo, a recusa da regulação da imprensa nada tem de democrático. A intervenção de um organismo independente na regulação da imprensa torna-se indispensável quando a autorregulação se revela uma miragem. Só através da regulação será possível garantir a liberdade de imprensa, que não pode ficar refém das "regras" do mercado. A liberdade de imprensa é demasiado importante para ficar nas mãos de um punhado de empresários sem escrúpulos.

 

O bravo soldado Manning

A descrição das condições em que este soldado esteve encarcerado faz lembrar certos requintes nazis. É claro que ele é um "traidor", já me esquecia.

 

A Palestina como "estado observador" da ONU

A aquisição pela Palestina do estatuto de "estado observador"  não modifica nada no terreno. Mas acabou por significar uma derrota histórica e talvez irreversível dos falcões (ou abutres) de Israel, e dos judeus americanos, que mantêm Obama prisioneiro. A votação na União Europeia, e sobretudo o voto da Alemanha (embora sendo "apenas" uma abstenção), representa o fim de um ciclo. Daqui envio dois beijinhos à sra. Merkel, nossa padroeira.

 

Para que serve o TPI para a ex-Jugoslávia

Já se sabia para que foi criado este "tribunal". Já se conhecia a sua "jurisprudência". Mas agora, na sua ânsia de cumprir a sua missão legitimadora das opções da NATO, ao absolver os arguidos croatas e kosovares, o alegado "tribunal" mostrou o jogo todo, como tribunal de opereta macabra. Macabra porque não só não faz justiça, como sobretudo porque vem agravando feridas que lentamente iam cicatrizando.

02 dezembro 2012

 

Camilo e o desconcerto do mundo


 

Atentem nesta página de Camilo.

Para além do prazer que é sempre ler o autor de A Queda de um Anjo, saborear a sua prosa vernácula, em livros que, por regra, não chegam às trezentas páginas, ao contrário do que hoje sucede, em que se escrevem desaforados e, muitas vezes, poluentes calhamaços de um milhar de páginas, quando o encurtamento do tempo requereria a contenção e a concisão camilianas, veja-se como Camilo define aqui o destrambelhamento do planeta.

Se há cento e cinquenta anos o escritor de S. Miguel de Ceide lamentava o desconcerto do relógio cósmico, que não diria ele do nosso tempo e dos «engenhosos destruidores das nossas alegrias»?

 

Estamos no dia 15 de maio de 1762.

Naquele tempo, os dias de maio, no Porto, eram temperados, alegres, perfumados, encantadores. A primavera, há cem anos, aparecia quando o calendário a dava. Ninguém saía de sua casa às cinco horas de uma tarde cálida de maio, com um casaco de reserva no braço, para resistir ao frio das sete horas; nem o peralta portuense levava escondido na copa do chapéu o cache-nez, com que, ao anoitecer, havia de resguardar as orelhas da nortada cortante.

O globo, naquele tempo, movia-se em volta do sol com a regularidade assinalada pelos astrónomos. A gente ditosa, que então viveu, podia confiar-se nos entendidos em rotação dos planetas; e os sábios podiam sem receio responsabilizar-se pela pontualidade das estações. Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência e a ciência dos factos repetidos.

Depois, porém, daquela época, desconcertaram-se os sistemas das regiões altas. As pessoas muito espirituais receiam que este desconcerto venha a desfechar em acabamento do mundo; outras, mais racionalistas, pretendem que a desordem das estações proceda de causas que, volvido um determinado período, cessem de existir. Ninguém se lembrou ainda de conjecturar que as vaporações constantes das fornalhas e o fluido eléctrico de que o ambiente está saturado, possam ter influído na substância dos sólidos e fluidos componentes do maquinismo celeste, alterando-lhes o modo de actuarem sobre a terra. Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a primavera. Em compensação, os engenhosos destruidores das nossas alegrias de maio, haviam de inventar uns fogões cómodos para nosso uso em julho.        

(Assim começa A Sereia, obra que foi publicada pela primeira vez em 1865).

 

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