06 setembro 2006
Reforma do Código Penal ou Roteiro do Politicamente Correcto?
Sei bem que ao escrever estas modestas linhas devo fazê-lo com pezinhos de lã. Todos os cuidados são poucos, se não quiser ser agravado como reaccionário, sexista ou até coisas bem piores.
Vem isto a propósito da proposta que consta do Anteprojecto de Reforma do Código Penal, apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, que a meu ver, tal como se indica em título a este postal, consagra soluções criminalizadoras que traduzem um modo de pensar com a marca de água do “politicamente correcto”, coisa tão mais lamentável quanto como modo de alcançar os prosseguidos fins de emancipação se usa, precisamente, o instrumento que – não sem alguma ingenuidade – se considera “de última linha”: o direito penal. Vale por dizer, a, assim chamada, affirmative action que é apanágio do pensamento politicamente correcto é concretizada, aqui, pelo meio mais agressivo que a comunidade político-juridicamente organizada conhece: a criminalização (ou alargamento de criminalizações preexistentes, tanto monta) das condutas que na visão monolítica dos designados (pelos estudiosos da política criminal) “gestores atípicos da moral colectiva” (ecologistas, feministas, homossexuais, pacifistas, de entre outros) são susceptíveis de constituir entrave ao programa ideológico que estabeleceram para todos nós.
As associações feministas reclamavam um sexual harrassment à americana? Recauchuta-se o crime de exibicionismo e dá-se-lhes um crime de “importunação sexual” (artigo 170.º, do ARCP). Queriam punição mais gravosa e autónoma dos maus-tratos sobre o ex-cônjuge? Foram brindadas com o artigo o crime de “violência doméstica” (artigo 152.º, n.º 1, al. a), parte final, do ARCP), que permite punir com especial gravidade altercação entre ex-cônjuges ocorrida após as bodas de prata do divórcio. Preocupava-as putativa complacência dos tribunais na condenação de uxoricídios? Consagra-se o homicídio do cônjuge como causa qualificativa do homicídio (artigo 132.º, n.º 2, al. b), do ARCP), desprezando a evidência sociológica de que, goste-se ou não, o espaço conjugal é campo fértil para o privilegiamento. Subsiste a discriminação sexista? No problem, o Direito Penal entra em cena e em força e equipara-as à discriminação racial e religiosa (artigo 240.º, do ARCP), restando apenas saber o que pretende o MP fazer em relação a algumas encíclicas da Igreja Católica… As associações homossexuais estavam preocupadas com as infrutíferas tentativas de ver reconhecido como centro autónomo de relações jurídicas conjugais a união entre duas pessoas do mesmo sexo? O legislador civil está renitente? Não faz mal, a coisa entra pela janela (cada vez mais) escancarada do Direito Penal e reconhece-se tal comunidade conjugal como merecedora de tutela autónoma, sublinho autónoma (são os tais cuidados que é preciso ter para contrariar os politicamente correctos, que nos leva a ser, de certo modo, …politicamente correctos), para efeitos de violência doméstica e de qualificação do homicídio (artigos 152.º, n.º 1, al. b), e 132.º, n.º 2, al. b), do ARCP), ignorando-se, ainda aqui, não apenas que o substrato sociológico da incriminação da violência doméstica traduz, quase sem excepção, situação em que um dos cônjuges (leia-se: o homem) é fisicamente mais forte do que o outro (leia-se: a mulher), como também o facto de o Direito Penal só dever reconhecer como objecto (e também formas) de tutela situações em relação às quais existe amplo consenso social.
Neste ponto, não fosse eu criatura insignificante, já estaria a ser vituperado por toda a sorte de pós-modernos, alguns deles (os mais brandos e contidos) perguntariam: mas Pedro, a lei não distingue, para efeitos das novas incriminações, entre género (outro termo “politicamente correcto”) masculino e feminino, bem podendo ser vítima da tal violência doméstica ou do homicídio qualificado o cônjuge do sexo (que é assim que se designa) masculino. Porquê, então, todo esse prurido? E eu respondo: não distingue e nem podia distinguir porque a lei vale para todas as pessoas e não é preciso ser politicamente correcto para chegar a tal conclusão. O que sucede é que, efectivamente, ela é feita não por causa ou a pensar em todas as pessoas. Ela é feita por causa de certos grupos de pessoas (os tais “gestores atípicos da moral colectiva”), que como timoneiros nos ensinam – ou pretendem ensinar – como devemos ver a mulher, o homossexual, o pacifista o ecologista, etc., e sempre com a ameaça de que ao mais leve “desequilíbrio”, ao mais ténue sinal de conduta desviante, arcarmos com os rigores da sanção penal. Ao que acresce, como está bom de ver, que nem por as referidas alterações passarem (como certamente passarão) da proposta à vigência as mulheres ou os homossexuais estarão mais protegidos, pela simples razão de que a lei – e mesmo a lei penal – já os protege suficientemente (leia-se: como outra pessoa qualquer, que não seja mulher ou homossexual). Num tal contexto, as alterações propostas têm o inequívoco sabor de bandeiras emancipatórias cravadas no cada vez mais tenro terreno da lei penal.
E chegado aqui impõe-se-me provar a minha “inocência”. Há bem pouco tempo, em artigo de opinião (“O burro de Orwell”, Atlântico, 2, Ag. 2006, p. 29), João Pedro Marques avisava: “Sendo um discurso e uma prática a favor de gente que é ou foi vítima, que é ou foi marginalizada, brutalizada, injustiçada, enganada, gente que está em minoria ou numa posição de inferioridade, o politicamente correcto tem, manifestamente, a virtude do seu lado. Qualquer crítica que se lhe faça pode dar a sensação – que aliás, os seus promotores imediatamente exploram – de que se está contra essa gente.” Por isso, o politicamente correcto, na alvura da sua bondade, tem esta implicação singela mas pesada: impõe uma inversão do ónus da prova. Não se pode criticá-lo sem ao menos se jurar a pés juntos que também se é bom e que nos move a melhor das intenções. E, portanto: garanto que não sou sexista, belicista, antiecologista ou outras coisas em relação às quais se imponha ou não se imponha ser “anti”. Mas antes de tudo, sou um amante da liberdade de pensamento, de expressão e, porque não o dizer, até onde for possível, dos actos. E, como tal, dispenso que o Estado tutele a minha consciência e me indique o caminho.
E por falar em caminho, não me parece ser o de um direito penal liberal o percorrido por legislador que avalize muito do que vem proposto no ARCP.