28 abril 2008

 

King-ILL-Pau

O autor das Viagens de Guliver, que deliciou a nossa infância e adolescência com narrações fantásticas de viagens a países desconhecidos e extraordinários, deixou um fragmento inédito em que se refere a uma viagem a uma ilha pitoresca, chamada "A Ilha do Pau", que era governada por um imperador, como em Liliput. Esse imperador dirigiu os destinos da ilha durante decénios, sendo sempre confirmado no poder por maiorias absolutas. Aliás, o imperador gostava de se dedicar ao exercício da democracia, como o seu desporto favorito, sabendo muito bem que nenhum partido da oposição seria capaz de lhe ganhar, pois o imperador tinha tudo na mão, desde a imprensa (praticamente só tinham voga o “Jornal Oficial do Imperador” e o “Jornal da Verdade Imperial”), até à fabulosa maquinaria da propaganda.
A oposição tinha os seus jornalecos, muito minguados, devido às dificuldades colocadas pelo imperador – dificuldades tão manhosamente arquitectadas, que todos os ilhéus se convenciam que a oposição não tinha ideias para passar ao papel. E como a oposição queria protestar e não tinha meios, quase só conseguia falar em “asfixia”, “negação de direitos”, “democracia de fachada”, deixando muitas vezes cair o h, por uma espécie de acordo ortográfico oposicional, lendo-se então “democracia de facada”, com o que era visível a qualquer mortal que não estivesse cego pela “verdade imperial” a alusão à violência que se escondia por baixo da democracia do imperador. Os oposicionistas também aludiam, muitas vezes, a essa violência, chamando à sua ilha “Ilha do Pau de Marmeleiro”. O que se segue é que o imperador ainda por cima se servia dessas mensagens cifradas, que a maior parte dos habitantes da ilha não entendia por carência de um contexto perceptível, para mimosear a oposição com epítetos do estilo: chanfrados, bando de eunucos, marados, chonés, jacobinos. E na sua grande veemência oratória, falando do cimo de altos montes com terríveis brados, chegava a incitar o povo da ilha a lançar ao mar aquele bando de desodeiros, acoimando-os de traidores à pátria, cujo nome sagrado parodiavam, e que quem precisava de pau de marmeleiro eram esses filhos de uma cadela. Como a oposição estava confinada a mensagens cifradas, ninguém a entendia e todos pensavam que ela era mesmo constituída por um bando de provocadores.
Um dia, o imperador, não se sabe se por artimanha, se por outra razão qualquer, pensou em deixar o poder a um dos seus delfins. E bastava que o imperador anunciasse através do “Jornal Oficial do Imperador” e do “Jornal da Verdade Imperial” e, enfim, de toda a máquina de propaganda: “Esta é a pessoa que eu, no meu alto critério, designo como a pessoa mais capaz de me substituir na espinhosa missão de governar a ilha”, para logo o povo, democraticamente, o eleger no momento oportuno. Disso não havia dúvida. Então, o delfim designado como sucessor ficou tão radiante, que engenhou uma maneira mirabolante de render preito eterno ao imperador. Esse engenho está bem explícito neste panfleto (e aqui transcrevo ipsis verbis parte do fragmento de Jonathan Swift):
Caros Concidadãos Ilhéus:
O nosso amado líder, King – ILL – Pau ⌠assim se chamava o imperador⌡é o maior génio que a Humanidade concebeu. Nenhum de nós tem dignidade suficiente senão para lhe beijar a fímbria da dobra das suas imperiais calças. Eu mesmo, como seu proclamado sucessor, serei o primeiro a rojar-me aos pés de sua Altíssima, Excelsa e Imperial Pessoa. E se o povo desta ilha quiser, na sua gratidão sempre parca para tamanha genialidade, satisfazer o seu sacratíssimo desejo de me ver como seu sucessor, elegendo-me democraticamente para o cargo de governador da nossa querida ilha, desde já declaro que serei apenas um fiel executor da sua Vontade, pois o nosso imperador, enquanto for vivo, estará sempre por detrás de tudo o que eu fizer. Na verdade, ele será o nosso sempiterno Pai e para isso, logo que for eleito, convocarei a assembleia constituinte, a fim de ser criado para ele o cargo de “Pai Celestial da Ilha de Pau”. E quando, finalmente, um dia, ele nos deixar fisicamente – oh dia nefando para sempre detestado! – ele continuará presente, pelos séculos sem fim (per omnia secula seculorum) no nosso espírito e no de todos os nossos fiéis vindouros, guiando as nossas acções.
Com efeito, o seu amado corpo (e isso também ficará escrito na Constituição) será sujeito a uma operação de embalsamamento, que, por técnicas especiais, lhe agigantará o tronco, a cabeça e os membros, de modo a que nenhum corpo de tão vastas proporções tenha sido visto à face do orbe. Mesmo na ordem mitológica, o corpo embalsamado do nosso amado líder pedirá meças ao gigante Polifemo. Para além de ser embalsamado, o corpo do nosso amado líder será sujeito a técnicas absolutamente inovadoras de impermeabilização, de modo a resistir aos mais ardentes sóis e às mais rijas intempéries. Colocá-lo-emos num dos mais altos píncaros da nossa ilha, fincado à terra como uma rocha, de forma a ser visto de todos os pontos cardiais. Através de um gravador especial, passagens dos seus mais inflamados discursos serão potentemente difundidas, de tempos a tempos, por toda a ilha. Os seus agigantados braços mover-se-ão ao som das palavras, não como as pás dum moinho de vento, mas em gestos sincronizados com o discurso, e a sua enorme boca parecerá pronunciar de forma natural as palavras que o gravador debitará, tudo graças às novas técnicas que o projectado “choque tecnológico” permitirá pôr à nossa disposição. Os seus olhos, por meio de um avançado sistema de células foto-eléctricas, irradiarão feixes luminosos, principalmente à noite, e por cima da sua cabeça pairará uma faixa com os seguintes dizeres:” Glória Eterna Ao Nosso Amado Líder King – ILL – Pau”
Escusado será dizer
– prossegue Jonathan Swift – que o imperador ficou tão inchado com este projecto, que, mesmo em vida, começou a crescer, a crescer, a agigantar-se de tal maneira, que o futuro trabalho dos embalsamadores ficou desde logo facilitado.





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