03 janeiro 2010

 

O Observatório




O El País de 29/12/2009 deu conta de um conflito (que já chegou aos tribunais) entre um juiz de um Tribunal de Família e uma membro do Consejo General del Poder Judicial e presidente do Observatório contra la Violencia Doméstica e de Género na sequência de declarações do referido juiz sobre a Ley Integral contra la Violencia de Género (em boa medida emulada, recentemente, pelo legislador indígena), em termos de a considerar “inspirada na ditadura”, no “feminismo radical” e de encerrar “efeitos perversos” como as denúncias caluniosas. A dita presidente do “Observatório” respondeu, por entre catilinárias, que da análise [pelo dito “Observatório”] de 530 casos de “violência machista” apenas em um se verificaram indícios de denúncia caluniosa. E de resto, prosseguiu, “os juízes espanhóis, no seu conjunto, levam a cabo a erradicação de um flagelo social, como a violência de género”. O conflito concreto, só por si, não tem qualquer interesse. O pano de fundo é o que importa.

Desde logo, a dita lógica da erradicação, diz muito sobre o radicalismo desses “Observatórios” e das leis em relação às quais se erigem em uma espécie de guardiães: numa sociedade democrática e por meios próprios de um Estado de Direito, não é possível erradicar qualquer fenómeno criminal, seja o da violência de género, seja da criminalidade rodoviária, seja o que for. Tão só é possível manter a criminalidade em níveis socialmente toleráveis. Não porque não seja desejável erradicar o crime; mas pela singela razão de que erradicá-lo implica que tal sociedade e Estado já não se possam dizer democráticos e sujeitos ao império da Lei. É a velha história da tensão entre liberdade e segurança.

Por outro lado, só quem não opera nas irregularidades do terreno, só quem se passeia apenas pelas “alturas” dos “Observatórios” e discorre de acordo com a lógica lisa própria dessa perspectiva “de cima” é que ainda não entendeu, ou não quer entender, que o actual estado das coisas tende a substituir o fenómeno da inadmissível violência fáctica do género masculino sobre o feminino por uma não menos edificante violência legal sobre o género masculino. É preciso, pois, dizê-lo com todas as letras: a actual regulação legal daquele fenómeno criminal dá efectivamente azo a “efeitos perversos” e nomeadamente às denúncias caluniosas. Não julgo ser necessário especificá-los (aqueles efeitos), pois qualquer profissional do foro já se terá confrontado com o problema e isso sucederá cada vez mais.

Objectar que o “Observatório”, o espanhol ou outro qualquer, só vislumbrou um caso de denúncia caluniosa ou é um exercício de ignorância ou de hipocrisia. É que a mais das consabidas dificuldades em provar um crime dessa natureza, o rasto processual dele é, em geral, pouco mais do que nulo. É algo que um magistrado ou um advogado facilmente intuem, mas que pertence, não raro, ao domínio do informal, não do formal. Depois, “Observatórios” como os ditos, não servem (até por razões de nomenclatura!), para apurar injustiças na aplicação da lei. Servem para identificar desvios à correcção política e actuar em conformidade. Servem, pois, para garantir que o caldo ideológico de que se nutre a lei (admitamo-lo: um certo histerismo e radicalismo feminista que, por desgraça, preterintencionalmente degrada a mulher na sua autonomia) é efectivamente tido em conta na aplicação dela. A sua função é mais própria de uma organização activista (parcial por definição) do que de um órgão de Estado (a que se exige imparcialidade).

Entre nós, ao contrário do que sucedeu em Espanha, não se foi ao ponto de criar Tribunais de Violência sobre a Mulher (!), que fazem corar de vergonha muitos colegas nuestros hermanos. No entanto, o tempo, esse implacável esmorecedor de paixões, encarregar-se-á, também aqui, de por a nu o que de muito perverso vai em tão boas intenções.





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