30 outubro 2010

 

A crise e o Estado Social


Ou de como proceder por tenteios à redefinição do conceito de “Estado Social” no nosso conturbado tempo.


Desafia-me o meu Amigo a dar a minha versão sobre as medidas de austeridade que têm vindo a ser adoptadas para debelar a crise em que estamos mergulhados e se, com elas, não se estará a pôr em causa o chamado Estado Social. Eis uma questão espinhosa que exige grande capacidade argumentativa e um voluntarioso contorcionismo do espírito. Sim, porque o Estado Social é, sobretudo, no momento que atravessamos, uma utopia que convém manter íntegra no vocabulário político dos partidários da causa dos mais desfavorecidos, como uma marca distintiva dos seus programas de acção e como uma teimosa causa de progresso no velho Continente.
Digamos que a crise atinge toda a Nação. O país endivida-se dia a dia, mais do que os restantes países que fazem parte deste magnífico projecto, que é o sonho de uma Europa unida e cada vez mais forte e mais solidária. Por causa desse endividamento, até já nos incluem, injuriosamente, na classe dos “pigs”. Na classe dos “pigs”, meu Amigo! Nós que já sulcámos mares ignotos e arrostámos com Adamastores temerosos para darmos novos mundos ao Mundo!
O que é certo é que as despesas do Estado atingem níveis descomunais que obrigam o Estado (nós todos, afinal) a ter de estender a mão a credores espalhados por esse mundo inteiro. Estes, escondidos atrás de poderosos gigantes – os chamados mercados financeiros (no fundo, os Adamastores deste tempo que temos que vencer) semeiam-nos escolhos terríveis, alteiam-nos vozeirões enormes e exigem-nos pesadíssimos sacrifícios. Com as goelas hiantes, querem-nos engolir, querem o nosso sangue, as nossas vidas! Já viu, meu Amigo? Pois parece que não há outro remédio senão alimentarmos a fome truculenta desses seres abismais. Quanto mais lhes damos, mais eles nos querem sugar até ao osso. Dizem que são seres fantasmáticos, meros especuladores, mas a verdade nua e crua é que eles nos querem levar couro e cabelo. Temos de acalmar a sua fome voraz, se queremos ter futuro, ainda que derrancados pelas suas exigências. Estes monstros, como sabe, alimentam-se de juros e, quais vampiros, filam-se em nós, caluniando as nossas capacidades, propagando constantemente que estamos em perigo de ir ao fundo e desaparecer do mapa. Assim vão semeando a desconfiança sobre nós e vergando-nos sob o peso de juros altíssimos. Temos que nos sacrificar ao máximo para lhes devolvermos a sua exigente tranquilidade e dobrarmos este Cabo das Tormentas.
Aqui, porém, surge o problema da repartição dos sacrifícios, que se liga com o tal objectivo do Estado Social. Quem deve dar mais o corpo ao manifesto? Sem querer presumir de mais esperto do que os outros, creio que a ideia dos nossos governantes é a de fazer recair o maior peso dos sacrifícios sobre quem está mais habituado a fazê-los e menos sobre quem não tem a vivência necessária para os suportar. As classes mais baixas e as classes médias estão mais habituadas a apertar o cinto nas horas de aflição. Ao longo da História sempre foram elas que deram a cara pela Nação. Por isso, é razoável que arquem com a maior parte dos sacrifícios. Além disso, são as classes mais numerosas, o que faz com que assumam naturalmente a condição de maior base de apoio social do Estado (ou a maior base de apoio do Estado Social, que vem a dar no mesmo). Está o meu Amigo a atingir a substância do conceito?
Quanto às classes mais altas (isto cá para nós), não prestam para nada. Não têm a prática dos sacrifícios. Diga-me o meu Amigo se alguma vez viu estas classes a sacrificarem-se seja pelo que for. A terem menos saúde? Menos conforto? Menos prazeres? Menos bens supérfluos? Menos luxo?
Ao mínimo vislumbre de os seus interesses serem tocados, ameaçam logo com represálias: levarem o dinheiro para fora do país; investirem no estrangeiro, onde os incentivos são maiores e os custos são menores; provocarem o êxodo de cérebros, eu sei lá mais o quê. Pois estas classes não podem ser afectadas em medida superior à sua disponibilidade e à sua capacidade de tolerância e de sofrimento. Apenas podem ser atingidas numa parte excedente e muito marginal dos seus interesses. Quando se fala em equidade na distribuição dos sacrifícios, creio que é esta capacidade que se tem em mente. Eis por que a concepção do Estado Social acaba por entroncar numa tradição secular e filiar-se em bases históricas genuínas, sendo o Estado Social aquele que valoriza a abdicação e o sacrifício das classes mais aptas a enfrentarem as crises e a darem o que têm de mais essencial (a própria vida, se necessário) pelas grandes causas da comunidade. Veja, por exemplo, o meu Amigo o exemplo da nossa mui nobre e leal cidade do Porto, quando foi da expedição a Ceuta. As classes mais baixas e remediadas deram toda a carne aos que partiram e ficaram com as tripas dos animais e delas fizeram um soberbo manjar. Pois o Estado Social é isto: a força do Povo, capaz de transformar criativamente o pouco que lhe fica, uns miseráveis restos, num saboroso prato de culinária. Como vê, um conceito antigo e sempre actual.
O Estado Social, neste sentido, é a devolução às classes populares e médias da sua capacidade para suportar as grandes crises da Nação. Digamos que é a oportunidade conferida por políticos esclarecidos a essas classes de se tornarem heróicas salvadoras da Pátria, como nos grandes momentos do passado. É a possibilidade de se afirmar a grei pela parte mais sã e nobre que a forma e de assim vencermos, como outrora, o mar proceloso do nosso tempo e os Adamastores que nos ameaçam.
Eis, meu Excelso Amigo, o meu contributo para apaziguar o seu atormentado cérebro. Não me dará razão neste laborioso e engenhoso modo de conceber o objecto que o traz tão preocupado?

Deste seu fiel aliado
Jonathan Swift (1665 - 1745)





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