19 dezembro 2006
Discordo
Deixa-me desconsolado a forma silenciosa, sem protesto nem reivindicação, como o Governo se prepara para dar à estampa uma funda Revisão/Reforma, ou como se quiser nomeá-la, do Código Penal. Não é culpa do Governo, por certo; é antes de cada um de nós, que mesmo discordando de um ou outro ponto não se dá ao cuidado de expor as suas ideias, de censurar esta ou aquela opção. Muita dessa inércia não se explicará, apenas, por puro e simples desinteresse sobre as vicissitudes da vida da República. Ela mergulha bem fundo noutras causas que, porventura, dariam matéria para muitos postais e de entre as quais não figurará num lugar menor um certo receio de ir contra a ortodoxia. Vem isto a propósito de uma das propostas de alteração constantes do Anteprojecto da Revisão do Código Penal (= ARCP) ao pretérito crime de maus-tratos, que agora corre sob a epígrafe de “violência doméstica”, e em que se equipara ao cônjuge, para efeitos de punição dos maus-tratos, a vítima do mesmo sexo do agressor e que com ele conviva em termos análogos aos cônjuges (artigo 152/1/b). É a propósito dessa alteração que ensaiarei de seguida explicar as razões da minha discordância.
Desde logo, pré-requisito necessário a uma discussão justa e leal da questão é o seguinte: o homossexual, viva ou não em condições análogas às dos cônjuges com outra pessoa do mesmo sexo, não está desprotegido pela lei penal. Agredir um homossexual, como agredir quem quer que seja, é obviamente comportamento punível como crime. Esta afirmação supérflua para qualquer jurista de vão de escada, não o é, segundo julgo, para muitos cidadãos, a quem a alteração proposta pode ser apresentada como uma espécie de gigantesco passo civilizacional em termos de o statu quo ante ser alterado de forma radical e de um cidadão decente não ter mais que pensar e fazer do que aderir cegamente ao que lhe é ditado. Ou seja, e reduzindo a coisa aos seus precisos limites, o que está em causa é saber se a equiparação referida é necessária ou se ela se justifica. Sendo que a minha opinião sobre este ponto corre pela negativa, importa alinhar as razões dela:
Em primeiro lugar, talvez não seja enormidade jurídico-penal afirmar que, não obstante a inserção sistemática do crime de violência doméstica nos crimes contra o bem jurídico integridade física, não é apenas esse o valor ali protegido ou que se trate de valor tutelado a se. Se fosse assim, a incriminação era pura e simplesmente redundante e bastaria o tipo geral da ofensa à integridade física (como, aliás, acho que bastaria e em termos de se fazer homenagem bem mais digna à liberdade da mulher; à mulher que verdadeiramente se queira libertar dos grilhões impostos pelo tirando doméstico). Portanto, há um plus. E esse plus flúi – ou melhor refracta-se – no regime jurídico-civil do casamento, do qual decorre para os cônjuges especiais deveres e obrigações que os maus-tratos, a mais da integridade física, põem em causa. É claro que com isso não quero dizer que sobre o comum dos cidadãos não recaia um dever geral de respeito que implica que não agrida o seu semelhante. O que quero dizer é que entre os cônjuges, entre os verdadeiros cônjuges, aqueles tidos como tal pela lei civil vigente, esse dever é vincado de modo muito específico e em nome de valores que me escuso de referir porque para percebê-los basta folhear o Código Civil.
E tudo isto remete-me para uma segunda objecção: a sociedade portuguesa está muito dividida quanto à equiparação da união homossexual à união heterossexual, enquanto casamento. Ainda hoje de manhã ouvi na televisão que, de acordo com um certo estudo, cerca de 70% dos portugueses está contra o casamento de homossexuais. Não sei de que estudo se trata e qual a credibilidade dele. Mas sei uma coisa: um tal valor – que aliás se pode intuir do que vamos lendo e ouvindo sobre a matéria – não pode (não deve) ser desconsiderado, especialmente ao nível do desenho das incriminações. Um consenso social alargado sobre este ponto é condição necessária para um direito penal que todos queremos legitimado. Mas perceba-se correctamente o que digo, ou melhor, o que não digo: não é minha intenção deixar a ideia de que o CP deve ir a reboque do CC. O que quero dizer é que o não reconhecimento do casamento homossexual é um sintoma inequívoco da falta de consenso sobre o ponto, falta essa (efectiva, aliás) que não pode deixar de projectar-se sobre as opções do legislador penal.
Em terceiro lugar, penso que não terá estado ausente da mente do legislador penal que pela primeira vez incriminou, de forma autónoma, os maus-tratos sobre o cônjuge, a evidência fenomenológica de que a maioria desses maus-tratos – ao menos nas expressões mais óbvias de maus-tratos físicos – ocorria, como ocorre, quase exclusivamente num sentido: do homem sobre a mulher; do fisicamente mais forte sobre o fisicamente mais fraco; do que, por razões ancestrais, detinha, como infelizmente detém, ainda, não raro, o poder económico, no seio do agregado, sobre aquele (aquela) que dele depende. Pergunto: o que é que autoriza pensar, e mais ainda que estudos demonstram, que esse substrato sociológico se reproduz nas relações homossexuais? Sei pouco ou nada de sociologia e em história sou apenas um curioso e, por isso, não bato o pé quanto a este ponto. Mas fica algo mais do que a minha impressão.
Em quarto lugar, e contíguo ao que acabei de afirmar, estou certo que a violência sobre os homossexuais assume, entre nós como em outras latitudes, expressões bem tenebrosas e não menos sinistras. É bem conhecida a realidade urbana de grupúsculos de delinquentes, geralmente adolescentes, que não arranja outro modo de afirmar a sua masculinidade que não seja através da sistemática agressão sobre quem escolheu uma orientação sexual diferente da sua. Freud explicar-lhes-ia o dilema que os atormenta; mas entretanto urge reprimir os comportamentos em que se traduz esse dilema, que nessas coisas não há vagar para grandes explicações. E a lei penal – rectius: uma interpretação correcta dela – já reprime tais condutas, como ofensa à integridade física qualificada ou homicídio qualificado, sendo quanto a mim mais ou menos óbvio que uma agressão ou homicídio determinados por ódio em função da orientação sexual deverão ser censurados nesses termos (coisa que a nova redacção do artigo 132/2/f, do CP, tal como resultante do ARCP, vem, quanto a mim bem, explicitar). Mas isso, repito, não tem nada que ver – assim o julgo – com um real problema social, sistémico, de agressão intraconjugal entre homossexuais. De modo que o que agora se pretende, com a equiparação aludida, não pode deixar de ter o amargo sabor de mais uma incriminação simbólica, de uso indevido do aparelho penal para fins que lhe são estranhos.
Por fim, por tudo isto perpassa uma certa contradição. Segundo julgo, as associações homossexuais estribam muito da sua luta num direito à diferença, que indubitavelmente lhes assiste e é, aliás, elemento definitório de qualquer modelo de democracia liberal. Ora, é precisamente essa diferença, esse direito à diferença, que explica que não haja discriminação alguma na actual redacção do crime de maus-tratos. E, note-se, que não me refiro a qualquer diferença no plano dos factos. Refiro-me muito simplesmente à evidência jurídica de que os homossexuais não se casam entre nós, porque a lei (aliás, ao que parece, com amplo apoio popular) não o permite. E de qualquer modo não deixa de ser estranhamente paradoxal que se pretenda fazer valer aquele direito à diferença precisamente através de instrumentos jurídicos equalizadores. Segundo creio, é essa obsessão igualitária que constitui pano de fundo da alteração proposta. Que ela não tem por si muitos argumentos e que é susceptível de ser apanhada na armadilha da contradição, é coisa que, modestamente, julgo ter demonstrado.
Em tudo isto, é claro, não julgo que se jogue algo de muito importante. Se o legislador quiser incriminar a violência doméstica recorrendo ao aqui abordado mecanismo da equiparação, que o faça, ainda que, presumivelmente, sem o consenso que seria próprio e desejável em questões como esta. O que acho é que nem por isso o mundo passará a ser um lugar melhor.