03 agosto 2007
Eis o que penso, tal e qual
Onde se transcreve uma carta do autor a um ilustre homem público do nosso Reino, agraciado com a Grã Cruz do Grande Mérito Reformista, que lhe pediu opinião sobre o escrito de um poeta, que se alarga em considerações visionárias sobre o medo e a liberdade.
Senhor:
Sendo V.ª Exc.ª uma pessoa mui interessada assim no progresso do nosso Reino, como na sua boa fama no concerto das nações, quis saber qual a minha opinião acerca de um artigo que um poeta dos mais conhecidos na nossa praça da canção deu à luz numa das principais gazetas do Reino, insurgindo-se contra o que ele considera ser o medo que vai grassando por aí e a falta de liberdade que se vai sentindo. Honrando-me deveras o apreço em que, pelos vistos, V.ª Exc.ª tem as pobres considerações que um tão humilde servo de V.ª Exc.ª possa tecer sobre um tão lamentável caso, apresso-me a dizer o que penso, até porque sinto ser meu dever indeclinável tomar partido sobre o assunto, pesando-me na consciência não o ter feito já, por imperativo patriótico, independentemente da amabilíssima solicitação que me dirige.
Pois esse nosso vate, ao contrário do seu próprio nome, que difunde alegria, é um grande triste, um homem que só vê escolhos, negrumes de tempestades e temíveis adamastores, numa visão épica deprimente, como se não nos restasse outra coisa senão vermos afundar definitivamente as naus que um dia foram à Índia e acabarmos assim o nosso destino submersos na tragédia. Esse homem, com as suas barbas brancas e a sua voz tonitruante, o seu verso burilado de fábrica camoniana e a sua oratória de eterno deputado da Nação, esse homem não passa de um Velho do Restelo, a carpir, nos areais de Belém, os males imaginários que nos assolam, enquanto as nossas naus – as naus modernas, filhas do grande choque tecnológico, largam serenamente da barra em direcção às Índias do progresso e do futuro. Ele, esse socialista impenitente, que não soube evoluir no sentido das novas ideias, que fecharam definitivamente o socialismo na gaveta onde Soares cuidou de o meter provisoriamente, já não é capaz de acompanhar as grandes reformas que estão a mudar a face lusíada. Daí, coitado! que só saiba falar do medo e da liberdade contra o medo, do alto da sua Torre de poeta exilado no próprio Reino.
Creio que V.ª Exc.ª sintonizará completamente comigo, ou melhor, eu é que sintonizarei completamente com V.ª Exc.ª, se lhe disser que este poeta anda com a mania de escrever uma epopeia ao invés, em que o novo Adamastor é o medo, e a nova Índia é a liberdade. Mas que medo, afinal? Mas que liberdade? Miragens de poeta! Medo, só se for o de seguir corajosamente em frente, sem olhar a obstáculos, a Sindicatos, a Parceiros Sociais, a manifestações e reivindicações, a protestos das populações e também - ia eu a dizer -, a direitos adquiridos, se esta expressão não fosse demasiado bizarra na época que nos coube viver. Privilégios é que é, pois que outra coisa são emprego certo e estável, negociação colectiva, salários acima da inflação, despedimentos com justa causa, reformas pagas por inteiro e antes da idade devida, isto é, de vida, medicamentos pagos, férias pagas, décimo terceiro mês e tudo o mais que, vigorando ainda, constitui a chamada tralha socialista, essa tralha herdada dos nossos antepassados?
Liberdade? Pois quer-se mais liberdade do que aquela que todos nós gozamos? Como disse uma dama ilustre do governo do nosso Reino, a liberdade não é para qualquer um falar como quer e como lhe apetece e onde lhe der na (salvo seja) real gana, mas nos sítios convenientes. Assim, é que, segundo a tal dama, existe liberdade total para cada qual falar completamente à vontade com a família e com os amigos no interior das suas casas, nas esquinas das nossas ruas e até mesmo nos cafés. Concordo inteiramente com esta concepção de liberdade de expressão e pergunto: Esta missiva em que expresso esta modesta opinião, esperando agradar inteiramente a V.ª Exc.ª, não é a prova provada de que existe a mais ampla liberdade? Pois aqui a tem, a opinião que V.ª Exc.ª me pediu, exarada tal e qual como penso. E creia-me, Senhor: sem esperar nada em troca, a não ser o favor da honrosa Amizade com que V.ª Exc.ª sempre tem distinguido e valido a este
Seu Humilde Servidor
Jonathan Swift (1665-1745)
Senhor:
Sendo V.ª Exc.ª uma pessoa mui interessada assim no progresso do nosso Reino, como na sua boa fama no concerto das nações, quis saber qual a minha opinião acerca de um artigo que um poeta dos mais conhecidos na nossa praça da canção deu à luz numa das principais gazetas do Reino, insurgindo-se contra o que ele considera ser o medo que vai grassando por aí e a falta de liberdade que se vai sentindo. Honrando-me deveras o apreço em que, pelos vistos, V.ª Exc.ª tem as pobres considerações que um tão humilde servo de V.ª Exc.ª possa tecer sobre um tão lamentável caso, apresso-me a dizer o que penso, até porque sinto ser meu dever indeclinável tomar partido sobre o assunto, pesando-me na consciência não o ter feito já, por imperativo patriótico, independentemente da amabilíssima solicitação que me dirige.
Pois esse nosso vate, ao contrário do seu próprio nome, que difunde alegria, é um grande triste, um homem que só vê escolhos, negrumes de tempestades e temíveis adamastores, numa visão épica deprimente, como se não nos restasse outra coisa senão vermos afundar definitivamente as naus que um dia foram à Índia e acabarmos assim o nosso destino submersos na tragédia. Esse homem, com as suas barbas brancas e a sua voz tonitruante, o seu verso burilado de fábrica camoniana e a sua oratória de eterno deputado da Nação, esse homem não passa de um Velho do Restelo, a carpir, nos areais de Belém, os males imaginários que nos assolam, enquanto as nossas naus – as naus modernas, filhas do grande choque tecnológico, largam serenamente da barra em direcção às Índias do progresso e do futuro. Ele, esse socialista impenitente, que não soube evoluir no sentido das novas ideias, que fecharam definitivamente o socialismo na gaveta onde Soares cuidou de o meter provisoriamente, já não é capaz de acompanhar as grandes reformas que estão a mudar a face lusíada. Daí, coitado! que só saiba falar do medo e da liberdade contra o medo, do alto da sua Torre de poeta exilado no próprio Reino.
Creio que V.ª Exc.ª sintonizará completamente comigo, ou melhor, eu é que sintonizarei completamente com V.ª Exc.ª, se lhe disser que este poeta anda com a mania de escrever uma epopeia ao invés, em que o novo Adamastor é o medo, e a nova Índia é a liberdade. Mas que medo, afinal? Mas que liberdade? Miragens de poeta! Medo, só se for o de seguir corajosamente em frente, sem olhar a obstáculos, a Sindicatos, a Parceiros Sociais, a manifestações e reivindicações, a protestos das populações e também - ia eu a dizer -, a direitos adquiridos, se esta expressão não fosse demasiado bizarra na época que nos coube viver. Privilégios é que é, pois que outra coisa são emprego certo e estável, negociação colectiva, salários acima da inflação, despedimentos com justa causa, reformas pagas por inteiro e antes da idade devida, isto é, de vida, medicamentos pagos, férias pagas, décimo terceiro mês e tudo o mais que, vigorando ainda, constitui a chamada tralha socialista, essa tralha herdada dos nossos antepassados?
Liberdade? Pois quer-se mais liberdade do que aquela que todos nós gozamos? Como disse uma dama ilustre do governo do nosso Reino, a liberdade não é para qualquer um falar como quer e como lhe apetece e onde lhe der na (salvo seja) real gana, mas nos sítios convenientes. Assim, é que, segundo a tal dama, existe liberdade total para cada qual falar completamente à vontade com a família e com os amigos no interior das suas casas, nas esquinas das nossas ruas e até mesmo nos cafés. Concordo inteiramente com esta concepção de liberdade de expressão e pergunto: Esta missiva em que expresso esta modesta opinião, esperando agradar inteiramente a V.ª Exc.ª, não é a prova provada de que existe a mais ampla liberdade? Pois aqui a tem, a opinião que V.ª Exc.ª me pediu, exarada tal e qual como penso. E creia-me, Senhor: sem esperar nada em troca, a não ser o favor da honrosa Amizade com que V.ª Exc.ª sempre tem distinguido e valido a este
Seu Humilde Servidor
Jonathan Swift (1665-1745)