02 outubro 2008

 

A admiração teutónica I

No mês passado, durante cerca de duas semanas, fui acompanhado, no meu dia a dia de juiz, por um colega alemão, ao abrigo de um programa de troca de experiências de juízes da União Europeia. Bem impressionado com certos aspectos do funcionamento dos tribunais (essencialmente, para surpresa minha, com as condições materiais de trabalho, nomeadamente a gestão informática de processos que, disse-me, é ainda algo distante no país dele), mostrou-se estupefacto com a presença em julgamento de menores de 16 anos (alguns em notória crise aguda de pânico), sem antecedentes criminais e por condução sem habilitação legal. No país dele, disse-me, tal situação seria “impensável” e que uma tal hipótese só seria possível se a “criança” se mostrasse renitente em seguir os trilhos da lei penal por 3 ou 4 vezes. Reconhecia-se que a mera presença dela na polícia era suficiente à satisfação das necessidades preventivas que a intervenção estatal almeja, nesta matéria. E, de resto, a lei processual penal alemã está munida de soluções que permitem aligeirar a intervenção do Estado na esfera do cidadão, quando um tal aligeiramento se justifique, passando por mecanismos de puro e simples arquivamento, no caso de culpa diminuta ou ligeira do agente e de inexistência de interesse público na prossecução penal, passando pela imposição de regras de conduta e injunções até ao chamado processo por ordens penais (um parente muito próximo do nosso processo sumaríssimo).

Atrapalhado com a justificada reacção dele e confrontado com aquela inquisitorial interpelação, em jeito de quem nos supõe de algum modo uns “bárbaros”, esclareci que também em Portugal há mecanismos de diversão processual (hoc sensu), semelhantes aos germânicos, tal como o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória do processo ou o processo sumaríssimo, aliás e em geral formando uma malha de rede aplicação bem mais larga (mais ainda desde a Revisão de 2007) do que a dos correspondentes mecanismos da lei alemã. Portanto, Portugal era, para todos os devidos efeitos legais, um país moderno, humanista e dado aos maiores cuidados, nomeadamente com a juventude.

Claro que ao explicar isto ao meu interlocutor teutónico, sabia estar a cair na maior das contradições. Pois então, se a lei era tão moderna, por que razão não era aplicada? Aqui estava, pois, o punctum crucis da questão – e era escusado explicar a um juiz de 2.ª instância a diferença entre Law in books e Law in action que Roscoe Pound tão bem sintetizara já no início do século passado! O problema, é claro, estava em que o legislador processual penal português e sobretudo o que desenhou os estatuto do Ministério Público (responsável primeiro pela concretização das orientações de política criminal plasmadas na lei e sem cuja promoção nada é possível em matéria de diversão processual), tendo arquitectado um sistema penal que a justo título se pode reivindicar de uma quase perfeição teórica, no plano comparado, esqueceu-se da proverbial rebeldia do cidadão nacional em relação à Lei. Rebeldia que, como se sabe, não aflige de modo tão agudo nem os filhos de Goethe e nem muitos outros povos. Daí que para sistemas tão parecidos, resultados tão distintos. Ou de modo mais claro: um sistema moderno não funciona quando nele interage um número não despiciendo de agentes que persiste em trabalhar, por assim dizer, à “moda antiga”. O único problema do legislador foi, por isso, o de não ter partido para a árdua tarefa de arquitectar um sistema penal assentando num módico de pessimismo antropológico. Acreditou que todos cumpririam a sua função, tal como estava indicada no livrinho. Infelizmente, em Portugal, isso é um erro.







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