04 maio 2009

 

Anatole France fala-nos da Nova Atlântida

A viagem do Prof. Obnubile à Nova Atlântida


A democracia dos pinguins não se governava a si própria; obedecia a uma oligarquia financeira que ditava a opinião através dos jornais e tinha nas mãos os deputados, os ministros e o presidente. Ordenava soberanamente as finanças da república e dirigia a política externa do país.
Os impérios e os reinos mantinham então exércitos e armadas enormes; obrigada, por razões de segurança, a fazer o mesmo, a Pinguínia sucumbia debaixo do peso dos armamentos. Toda a gente lamentava ou fingia lamentar uma tão dura necessidade; contudo, os ricos, os homens de negócios, submetiam-se de boa vontade por patriotismo e porque contavam com os soldados e com os marinheiros para defenderem os seus bens e adquirirem fora mercados e territórios; os grandes industriais pressionavam o fabrico de canhões e de navios por zelo pela defesa nacional e para obterem encomendas. Entre os cidadãos de condição média e das profissões liberais, uns resignavam-se sem queixume a este estado de coisas, julgando que iria durar sempre; outros esperavam impacientemente pelo fim e pensavam levar as potências ao desarmamento simultâneo.
O ilustre professor Obnubile era destes.
“A guerra, dizia ele, é uma barbárie que o progresso da civilização fará desaparecer. As grandes democracias são pacíficas e o seu espírito acabará por impor-se em breve aos próprios autocratas.”
O professor Obnubile, que levava havia sessenta anos uma vida solitária e reclusa, no seu laboratório onde não penetravam os barulhos de fora, resolveu observar pessoalmente o espírito dos povos. Começou os seus estudos pela maior das democracias e embarcou para a Nova Atlântida.
Depois de quinze dias de navegação o paquete entrou, de noite, na baía de Titanporto, onde estavam ancorados milhares de navios. Uma ponte de ferro, lançada sobre as águas, toda resplandicente de luzes, ligava dois cais tão distantes um do outro que o professor Obnubile julgou navegar nos mares de Saturno e ver o anel maravilhoso que cerca o planeta. E essa imensa passagem carregava mais de um quarto das riquezas do mundo. O sábio pinguim, após o desembarque, foi servido num hotel de quarenta e oito andares por autómatos, e depois apanhou o comboio para Gigantópolis, a capital da Nova Atlântida. Havia no combóio restaurantes, salas de jogos, arenas atléticas, um escritório para comunicações comerciais e financeiras, uma capela evangélica e a imprensa de um grande jornal que o sábio não conseguiu ler porque não sabia a língua dos novos atlantes. O comboio passava, à beira de grandes rios, por cidades industriais que escureciam o céu com o fumo dos fornos: cidades negras de dia, cidades vermelhas de noite, cheias de clamores ao sol e de clamores à sombra.
“Aqui está, pensava o sábio, um povo demasiado ocupado com a indústria e com os negócios para se meter em guerras. Estou convencido, a partir de agora, que os novos atlantes seguem uma política de paz. Porque é um axioma reconhecido por todos os economistas que a paz exterior e a paz interna são necessárias para o progresso do comércio e da indústria.”
Percorrendo Gigantópolis, confirmou esta opinião. As pessoas caminhavam com um tal movimento que empurravam tudo o que encontravam de passagem. Obnubile, várias vezes derrubado, apreendeu a comportar-se melhor: depois de uma hora de corrida, conseguiu derrubar um atlante.
Chegado a uma grande praça, viu o pórtico de um palácio de estico clássico cujas colunas coríntias elevavam a setenta metros acima da base os capitéis de acanto arborescente.
Estava imóvel a admirar, de cabeça virada para cima, quando um homem de aparência modesta o abordou e lhe disse em pinguim:
“Vejo pela maneira como se veste que é da Pinguínia. Sei a sua língua; sou intérprete ajuramentado. Este palácio é o parlamento. Neste momento, os deputados deliberam. Quer assistir à sessão?”
Conduzido a uma tribuna, o sábio mergulhou o olhar na multidão de legisladores que estavam sentados em cadeirões de junco, com os pés em cima da secretária.
O presidente levantou-se e, murmurou, no meio da desatenção geral, as seguintes fórmulas, que o intérprete traduziu de imediato:
“Estando terminada a guerra para abertura dos mercados mongóis, com satisfação dos interesses do nosso país, proponho-vos que se enviem as respectivas contas à comissão das finanças…
“Alguém se opõe?
“A proposta está aprovada.
“A guerra para abertura dos mercados da Terceira Zelândia estando terminada com satisfação dos interesses do nosso país, proponho-vos que se enviem as contas à comissão de finanças…
Alguém se opõe?
A proposta está aprovada.
- Ouvi bem? Perguntou o professor Obnubile. O quê? Vocês, um povo industrial, meteram-se nestas guerras todas?
- Sem dúvida, respondeu o intérprete: são guerras industriais. Os povos que não têm comércio nem indústria não se vêem obrigados a meter-se em guerras; mas um povo de negócios é obrigado a fazer uma política de conquista. Quando uma das nossas indústrias não consegue escoar os seus produtos, é preciso que uma guerra lhe abra novos mercados. É assim que tivemos uma guerra do carvão, uma guerra do cobre, uma guerra do algodão. Na Terceira Zelândia matámos dois terços dos habitantes para obrigar os restantes a comprar-nos guarda-chuvas e suspensórios.
Nesse momento, um homem gordo que estava sentado no centro da assembleia subiu à tribuna.
“Reclamo, disse, uma guerra contra o governo da República da Esmeralda, que disputa insolentemente aos nossos porcos a hegemonia dos presuntos e dos salsichões em todos os mercados do universo.
- Quem é este legislador? Perguntou o professor Obnubile.
- É um comerciante de porcos.
- Alguém se opõe? Disse o presidente. Ponho a proposta à votação.
A guerra contra a República da Esmeralda foi votada de mão levantada por uma grande maioria.
“Como? disse Obnubile ao intérprete; vocês votaram uma guerra com esta rapidez e esta indiferença?…
- Oh, é uma guerra sem importância, que custará apenas oito milhões de dólares.
- E homens…
- Os homens estão incluídos nos oito milhões de dólares.
Então o professor apertou a cabeça com as mãos e pensou amargamente:
“Uma vez que a riqueza e a civilização comportam tantas causas de guerra como a pobreza e a barbárie, uma vez que a loucura e a maldade dos homens são incuráveis, resta uma boa acção para praticar. Os homens sensatos juntarão uma quantidade suficiente de dinamite para fazer saltar o planeta. Quando este girar em pedaços pelo espaço, uma melhoria imperceptível ocorrerá no universo e uma satisfação será dada à consciência universal, que aliás não existe.”


"A Ilha dos Pinguins" (1908)





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