04 dezembro 2018

 

Das cousas novas que ouvi quando regressei à Pátria


(e dos comentários que entendo por bem fazer-lhes)

Eis que regresso de uma ausência prolongada, uma ausência não só deste bloco onde registo as minhas irregulares notas e observações, mas também desta nossa Pátria bem amada, pois que andei por longínquas paragens, por terra, mar e ar, habitadas por variegadas gentes, de culturas e hábitos e religiões mui diversos dos nossos, e climas e ares por vezes mui pouco saudáveis. Do que vi e colhi hei-de falar um dia, se a Divina Providência me conceder tempo e saúde e engenho suficiente para inventar situações curiosas a partir do muito que vi e ouvi, para proveito e exemplo da nossa gente. Escreverei as minhas viagens com visos de fantasia para que se não enfade ninguém com a sua leitura, mas, por ora, intentarei de falar em algumas cousas de que tomei conhecimento à minha chegada e que me pareceram, ao menos às primeiras impressões, da ordem do fantástico.
E, começando pela primeira, vem a ser tal cousa a dessa discussão, que se tem processado em moldes mui acalorados, sobre a chamada festa brava. Argumentam os defensores dela que se trata de um espectáculo artístico, de elevado colorido, movimentação e estética, e, por sobre isso, de grande enraizamento na nossa cultura. Dizem, por sua vez, os oponentes que se trata de um espectáculo bárbaro, em que se faz sofrer impunemente um animal (um touro das nossas lezírias), volteando em torno do bicho e fazendo-lhe negaças, ora com um toureiro a manobrar uma capa vermelha diante dele e ludibriando-lhe a investida, ora com um cavaleiro pimponeando na sua frente e fazendo fintas com o cavalo, e por fim, espetando no lombo do pobre bicho, já cansado e deitando a língua de fora, a espumejar raiva, grandes ferros pontiagudos, denominados farpas ou bandarilhas, com que o animal sangra, e o sangue vai escorrendo pelo seu corpo, em torno das partes feridas.
Ora, muito bem! Não sou eu quem vai negar o altíssimo valor das nossas tradições. E também, como disse o poeta, gostos não se discutem. Porém, há que não esquecer igualmente que os animais sofrem e, nisso, parece que os campos adversos perdem os exactos contornos em que se confinam, pois que há muita gente do campo dos defensores da festa brava que não nega a evidência desse sofrimento e, por isso, muitos deles parecem condescender num remédio assaz artificioso que uma alma condoída dos bichos e, ao mesmo tempo, prezadora da tradição, pôs a circular. Consiste ela em proteger o corpo do animal com um cousa chamada velcro, a qual impediria que as acima referidas farpas penetrassem no cachaço do touro e apenas fizessem barulho – pá!, pá!… - ao serem cravadas no dito velcro.
A solução, além de imaginosa, é generosa, mas o que me espanta é que ninguém se tenha lembrado de uma solução mais ousada, de acordo com as possibilidades inventivas do nosso tempo. Quanto melhor não seria, por exemplo, criar um touro mecânico, mas animado dessa inteligência que chamam artificial, porque o é de facto, mas inteligência verdadeira, um touro que tivesse a sua carnadura metálica revestida de boa pele taurina, que corresse na arena e marrasse com seus cornos e escarvasse o terreno com os cascos de suas patas e pudesse receber no seu cachaço os ferros pontiagudos das farpas, sem necessidade de qualquer velcro. Até podia sangrar, porque hoje há inventiva para tudo e, assim, alimentar o prazer dos que gostam de ver sangue, enquanto a multidão, entusiasmada, podia acompanhar os lances artísticos e certeiros do toureiro com ritmados olés. Isso, sim, isso seria tourada a sério e com todos os condimentos que ela reclama. Mais: podia pôr-se no touro um pouco de manha e até algumas formas de ser ele a ludibriar certos lances do toureiro, colhendo este de surpresa, o que daria um suplemento de emoção à faena. Um touro desses ainda seria melhor do que o touro das lezírias, porque não seria só bruteza e movimentação cega, mas possuindo alguma capacidade de cálculo e de aplicação certeira da sua força. Assim ficaria salvaguardada a tradição, respeitar-se-ia a dignidade do animal e manter-se-ia o interesse genuíno pela festa brava.
Outra cousa que me feriu a atenção, uma vez regressado à Pátria, foi o desembaraço daquele político que se dirigiu aos seus confrades, chamando-lhes camaradas e camarados. A princípio fiquei um pouco atónito com a noticia, mas posteriormente, após madura reflexão, acabei por achar interessante e mui digno de apreço o gesto ousado desse moço. É que, se bem reparam, ele masculinizou uma palavra que só tinha feminino. Ou seja, encontrou o género masculino para o vacábulo. Brilhante! Com efeito, numa época em que só se pensa nos direitos das mulheres, encontrar o género masculino para as palavras em que o feminino se usa para os dois géneros, é uma louvável atitude reivindicadora dos direitos que o homem também tem e de uma verdadeira igualdade de género.
Este jovem político, se tivesse sido descoberto há mais tempo, poderia ter prestado um valioso contributo na renovação ortográfica da nossa língua e na atualização do nosso léxico, podendo dele ser dito, com toda a propriedade, que seria a cereja em cima do bolo perfeito cozinhado pelos nossos doutos linguistas, no recente acordo a que chegaram. Porém, como é sabido, as cousas não vão sempre à nossa feição; antes a sorte se compraz, tanta vez, em fazer negaças aos nossos intentos e esforços de perfeição.
Eis o que entende, a respeito das cousas que aqui expõe, este vosso criado, que assina
Jonathan Swift
(1665 - 1745)






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