14 julho 2006

 

A Prisão de Bentham

No Diário de Notícias de hoje António Vitorino apresenta como uma das medidas a implantar na luta contra o terrorismo a instalação de equipamentos de videovigilância nos transportes colectivos urbanos, na medida em que "metodologias de controlo de explosivos utilizadas no transporte aéreo e marítimo no que concerne aos transportes urbanos inviabilizaria a sua utilização pura e simples e poderia provocar o bloqueamento e a paralisia do funcionamento das grandes urbes."
E adianta que duas são as problemáticas nesta matéria: "uma atinente aos custos e outra atinente à salvaguarda da privacidade."
Uma das questões (senão A QUESTÃO) passa, como assinala António Vitorino, pela concordância dos valores da privacidade, mas também da intimidade e do direito à imagem vs prevenção e repressão.
De facto, a sociedade actual tem progressivamente se transformado numa sociedade panopticista, em que cada um de nós está a ser observado, sem que disso tenha consciência, mas também a observar.
No Reino Unido, o campeão da videovigilância, um estudo datado de 2002 estima que o número de câmaras de videovigilância em Londres ronde as 400.000 e que o número total de câmaras em todo o território se situe próximo dos 4.000.000. A existência dessas câmaras é, muitas vezes, aplaudida pois permitiu a identificação de vários agentes de crimes, designadamente, dos homens-bomba que perpetraram os ataques de 7 de Julho de 2005 num autocarro e no metro de Londres.
O New York Daily Times noticiou em 21 de Março de 2006 que a Polícia de Nova Iorque está a instalar 505 câmaras de videovigilância, em zonas em que o indíce de criminalidade é elevado. Mas não se pense que numa cidade como Nova Iorque o número de câmaras se reduzirá a este. Num relatório elaborado, em 1998, pela New York Civil Liberties Union dá-se conta da existência de 2.397 câmaras só na ilha de Manhattan. A novidade daquela notícia prende-se, ao invés, com a vontade de criar um sistema de videovigilância na cidade de Nova Iorque em tudo semelhante àquele que existe em Londres e que é, impressivamente, designado de “ring of steel”, o qual permite a identificação, designadamente, das matrículas dos veículos que diariamente entram na cidade.
A instalação de medidas preventivas ou de controlo com recurso a sistemas audiovisuais nos grandes espaços comerciais, estações de combustível e respectivas áreas de serviço, aeroportos, bancos, em locais públicos ou privados com acesso ilimitado e via pública em geral, tem conhecido nos últimos tempos uma grande proliferação entre nós. Poucos são certamente os espaços que não têm instaladas câmaras de vídeo que gravam o que se passam no seu interior e, portanto, o que fazem os clientes e os empregados ou quem simplesmente por ali se encontra. A sofisticação de tais aparelhos tem também vindo a aumentar, não só com o recurso à tecnologia digital que produz imagens de alta qualidade, mas também à tecnologia biométrica.
Aparelhos de raios-x que permitem ver através da roupa, sensores térmicos que conseguem detectar movimento e actividade através de padrões de calor, câmaras infravermelhos, amplificadores de luz, microfones do tamanho de cabeças de alfinete, microfones parabólicos que são capazes de gravar conversas ocorridas a longa distância, aparelhos de localização GPS que dão conta do paradeiro de qualquer pessoa ou objecto, localização geográfica através das células do telemóvel. Enfim é a ficção tornada realidade.
A justificação avançada para o uso destas tecnologias é, essencialmente, a prevenção da prática de crimes, pois, argumenta-se, que na medida em que se saiba que essas câmaras estão instaladas, pois estão à vista de todos, há uma maior prevenção dos crimes, designadamente contra o património, transmitindo uma ideia de (falsa?) segurança aos transeuntes e a dissuasão da prática de crimes. Mas a sua maior utilidade, e vantagem dizem uns, prende-se com a facilitação da identificação dos agentes de crimesque possam ocorrer e que sejam registados pelas câmaras, sendo assim do lado da repressão de crimes que é mais patente a sua utilização.
Como antes dissémos as imagens de CCTV permitiram já a identificação de autores de crimes de terrorismo, conquistando assim pontos para que as limitações aos direitos liberdades e garantias se sucedam.
Porém, a sua utilização tem também conhecido franca expansão em áreas completamente distintas daquelas a que António Vitorino se refere, e em que no confronto entre os valores acima referidos, a vitória foi da prevenção de ilícitos (contra-ordenacionais também!), fazendo com que as gerações de hoje cresçam habituadas a esta vigia constante.
A reflexão, quanto aos meios intrusivos, modalidades, âmbito de aplicação e suas regras, tem assim de ser feita, sob pena de podermos vir a viver na prisão de Bentham...

"(...) na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela colocar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exactamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. (...) O dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente. (...) A visibilidade é uma armadilha."

Michel Foucault, Vigiar e Punir





<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)