18 agosto 2006

 

O poder corrompe

E o poder absoluto corrompe absolutamente. É esta velha lição que se pode extrair do novo livro de um prestigiado Professor de Direito e de Ciência Política de Yale, Bruce Ackerman [Before the Next Attack. Preserving Civil Liberties in an Age of Terrorism, New Haven & London: Yale Univ. Press, 2006 (222 pp.)]. Ackerman é, ainda, um dos pesos pesados na crítica à política anti-terrorista de Bush do pós 11/9. E quando digo crítica, não me refiro à reacção epidérmica, à fúria panfletária que por aí prolifera em relação a tudo e mais alguma coisa que vem do lado de lá do Atlântico (ao ponto de alguns chegarem à indecência de esboçar um sorriso com a tragédia de 11/9). Trata-se, antes, de crítica serena, fundamentada e reflectida, que só o recato da academia consente e proporciona.
Punctum crucis da obra de Ackerman é demonstrar a impropriedade e, sobretudo, a perigosidade de definir-se a actual luta contra o terrorismo global da Al Qaeda como uma Guerra (a "War on Terror" de Bush). Impropriedade porque, entre outras coisas: 1) as guerras são travadas contra potências soberanas, não contra grupos terroristas; 2) as guerras chegam ao fim, por armistício, capitulação, etc.; é duvidoso que o terrorismo da Al Qaeda cesse, mesmo com a captura de bin Laden; 3) o terrorismo é uma técnica: os EUA combateram a Alemanha Nazi, não a BlitzKrieg; 4) apesar da potencialidade danosa do terrorismo global, só por cegueira se pode compará-lo à Grandes Guerras ou mesmo às mais das guerras civis. Perigosidade, porque não se trata, apenas, de forçar o valor facial das palavras. A coisa é de caso pensado. Ao definir-se a luta contra a Al Qaeda como uma Guerra, está-se a convocar a subtracção do poder executivo (presidencial) aos controlos político-institucionais ordinários. Daí a um cortejo de abusos (alguns dos quais já se verificam) vai apenas um passo. Desde a tentativa de legitimar (?) a tortura contando que o carrasco se muna de mandado judicial (refiro-me, é claro, às propostas do Prof. Dershowitz), passando pela conveniente restrição do conceito de tortura (aludo aos memorandos do então Attorney General, John Aschcroft, arquitectados pelo académico John Yoo, revelando que, como sempre, abundam intelectuais disponíveis para dar "cor de lei" às práticas mais infames; note-se, ainda, que os aludidos memorandos restringem o conceito de tortura constante de convenções de que os próprios EUA são parte) e até à institucionalização da descriminação racial, através do chamado race profiling, corporizado, por exemplo, nas no-fly lists, de entre outros "exóticos" instrumenta de luta anti-terrorista.
Ackerman não é, porém, um ingénuo. Não obstante contestar a etiqueta (e os efeitos decorrentes) da "Guerra ao Terror", também admite que o aparelho de repressão penal é insuficiente para lidar com eventos como o ocorrido em 11/9. Em termos enxutos, o autor entende que a suficiência da maquinaria penal supõe estabelecida a questão de fundo, a questão da soberania do estado. É precisamente esse pressuposto que é feito perigar com atentados como aquele. Propõe, então, uma adequada e minuciosa regulação do estado de emergência, com clara definição dos pressupostos de declaração, manutenção e articulação dele com o sistema penal. Obviamente que não há aqui lugar para descrever o pensamento do autor (que faz um périplo por várias experiências constitucionais, com referências à nossa). No entanto, um dos pontos essenciais da sua proposta é a consagração de maiorias cada vez mais exigentes para a manutenção do estado de emergência (um "supermajoritan escalator"). Um dos efeitos desse mecanismo (e decerto dos mais desejáveis) é o de conferir força crescente às minorias étnicas, coisa não despicienda num estado multiétnico, como os EUA, e num contexto em que a a tentativa de criar bodes expiatórios é mais do que plausível (lembremo-nos dos 70 000 cidadãos americanos de origem japonesa detidos administrativamente na sequência de Pearl Harbor).
Enfim, trata-se de um brilhante estudo de direito constitucional e de ciência política. E trata-se, sobretudo, de uma magnífica lição de bom senso e de decência. Já fez correr muita tinta e fará correr muita mais.





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