28 março 2007

 

Cultura e Direito Penal

A decisão de uma juíza alemã no sentido de negar um pedido de divórcio a uma mulher muçulmana sob argumento de que os maus-tratos que sobre ela foram praticados pelo marido estarem de acordo com orientações do Corão, vem mais uma vez espicaçar a polémica em torno do papel que o Direito, e com especial acuidade o Direito Penal (se bem que a questão relevasse, ali, primeiramente, do Direito da Família), deve assumir em sociedades multiculturais.
Desconheço se entre nós já foram submetidos à apreciação judicial quaisquer casos que convoquem essa problemática, mas é bem possível que isso venha a suceder num futuro próximo a propósito da chamada excisão clitoridiana, uma vez que algumas das comunidades emigrantes radicadas no nosso país levam a efeito esse tipo de prática, fundada em superstições e rituais ancestrais.
A este respeito, julgo que na esmagadora dos países do nosso universo jurídico-cultural tem sido dada alguma relevância, nos casos penais, à regra de que a responsabilidade do agente pode ser de alguma forma mitigada em nome do argumento de que ele se limitou a seguir as normas próprias da sua cultura. Quanto a isto, julgo que há um consenso mais ou menos alargado. O problema começa é quando se trata de saber qual o peso concreto dessa cultural defense: atipicidade, exclusão da ilicitude (como, desgraçadamente, parece ter entendido a juíza germânica, que para mais terá desconsiderado o exit right da peticionante em termos de escolher um modo de vida distinto do que é imposto pela sua própria comunidade) ou “apenas” exclusão da culpa? E neste último caso, em que termos? Ou, afastadas todas aquelas hipóteses, poderá ocorrer atenuação especial da pena?
Ora, bem quanto às duas primeiras hipóteses (atipicidade e justificação), elas são de afastar liminarmente, pois relevam de uma visão radical do que seja o multiculturalismo, que o concebe em termos de considerar que as obrigações dos membros uma determinada comunidade étnica e cultural prevalecem sobre a ligação deles a uma determinada cultura política. Quanto a mim, um sinal neste sentido – de afastamento de soluções de atipicidade e justificação – parece ser o que é dado pelo Anteprojecto da Reforma do Código Penal, ao consagrar expressamente, na alínea b), do n.º 1, do artigo 144.º, do C. P., como agravante da ofensa à integridade física, o facto de dela resultar a supressão ou afectação da capacidade de “fruição sexual” (precisamente, o ponto 8 da Exposição de Motivos refere que com a alteração se pretende englobar a “mutilação genital feminina”), sobretudo se se levar em conta que o actual texto já parece comportar danos como o referido como causa de agravação da pena da ofensa à integridade física. Ou seja, no Anteprojecto parece ter-se querido (e bem, a meu ver) “advertir” que está fora de questão considerar a excisão como atípica ou justificada em nome de qualquer cultural defense de sabor anglo-saxónico. E o valor desta chamada de atenção está em que, segundo creio, vai muito para além da questão da mutilação genital feminina, antes podendo (devendo) tomar-se como “princípio” geral nesta matéria.
Já as soluções que se movem seja no âmbito da exclusão da culpa (por ex., por intercedência de erro sobre a ilicitude), seja no âmbito menos radical da atenuação da pena (como propôs entre nós, muito recentemente, Augusto Silva Dias), podem dar uma resposta adequada (em todo o caso, e obviamente, casuística e não “automática”!) aos valores e dilemas que não raro se enfrentam nesta nódulo problemático. Elas permitem, por um lado, afirmar o primado de uma determinada cultura jurídico-política (que preza sobremaneira a dignidade humana como valor não relativizável) sobre certas obrigações emergentes da pertença a uma dada comunidade étnico-cultural (e preservando, assim, o valor comunicativo-pedagógico, preventivo, da sanção – ou ameaça da sanção – penal), sem no entanto ignorarem o facto de os agentes que levam a cabo a prática de tais condutas agirem, não raro, num quadro dilemático (quando não de pura e simples ignorância) tal que é de molde a diminuir sensivelmente o grau de censura que se lhes possa dirigir e, assim, a necessidade da própria sanção penal. Ou seja, um tal modo de perspectivar o problema é, também ele, o único compatível com a nossa cultura jurídico-política, nos termos da qual um juízo positivo de culpa é a barreira intransponível da punição.







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