06 agosto 2007

 

Hiroxima, segundo Tabucchi

"Sabes quando é que tudo ficou claro para ele? Quando tudo parecia já claro e tinha acabado, a 6 de Agosto de 1945. Às 8,15 da manhã, se queres saber a hora. Naquele dia Tristão percebeu que o monstro vencido estava deixando o seu lugar às monstruosidades dos vencedores... era o segundo crime contra a humanidade deste alegre século que está findando... naquela manhã a primeira bomba atómica utilizada como arma de destruição de massas caiu sobre uma cidade do nosso mundo, reduzindo-a a nada e incinerando duzentas mil pessoas. Digo duzentas mil, mas ponho de parte as milhares mortas depois, e as nascidas mortas, e todos os cancros... e não eram soldados, eram cidadãos desarmados que tinham cometido o crime de não ter culpa nenhuma... Há um lugar, em Hiroxima, chama-se Gembaku Dom, é um pavilhão, quer dizer Cúpula atómica, foi o epicentro da explosão, naquele lugar a temperatura no solo atingiu o mesmo calor da temperatura solar, próximo do monumento com a chama da paz há um pedaço de pedra, é a soleira da porta de um edifício, uma normal soleira como as das nossas casas, onde pomos o tapete para limparmos os sapatos. Dentro da pedra, de mármore, parece-me, absorvida como um mata-borrão chupa a tinta, está a impressão de um corpo humano de braços abertos. É o que resta de um corpo humano que se liquefez na soleira da sua casa às 8,15 daquele 6 de Agosto de 1945... Se quiseres, faz a viagem, vai ver, é uma visita instrutiva... foi dito que aquelas vítimas foram inúteis, a cabeça do monstro já estava esmagada em Dresden e em Berlim e aos americanos, para vergarem o Japão, bastariam aas armas convencionais. É um erro, não foram de maneira nenhuma inúteis, para os vencedores foram utilíssimas, daquele modo fizeram com que todo o mundo percebesse que os novos senhores eram eles... a História é uma criatura glacial, não tem piedade de nada nem de ninguém, aquele filósofo alemão que se suicidou numa pensãozita de fronteira fugindo de Franco e de Hitler e de todos e talvez também de si próprio tinha reflectido muito sobre esta dama sem piedade que os homens cortejam em vão, não lhe deve ter aproveitado muito... nas suas reflexões escreveu que perante o inimigo, se ele vence, nem os mortos estarão seguros... qualquer que seja o inimigo, acrescentaria eu, também o inimigo dos maus, porque para ser inimigo dos maus não se pode ser bom..."

"Tristano muore" (2004)





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