18 setembro 2007

 

Coisas abruptas

Num seu postal de 17 de Setembro, Pacheco Pereira, faz esta afirmação abruptamente disparatada: “temos um interessante critério político na "pressa" em evitar a saída de alguns presos preventivos. Alguém, pressuroso, informou os órgãos de comunicação social que o país pode estar calmo: saíram ou vão sair acusados de assassinatos, violações, etc., mas não será libertado Mário Machado, o dirigente dos skinheads, que é acusado de incitar ao ódio racial, algo que em países genuinamente liberais não é crime, nem sequer delito de opinião. Tudo na longa manutenção de prisão preventiva de Mário Machado é estranho e aponta para razões puramente políticas, o que é inadmissível numa democracia.”
Como se sabe, um “tudólogo” apenas está obrigado a saber nada de tudo. Por isso, vou tentar explicar miudamente a razão pela qual PP está equivocado em vários pontos:
Em primeiro lugar, no que respeita ao crime de “incitar ao ódio racial” de que o citado dirigente “cabeça-rapada” está supostamente acusado, referir-se-á PP, segundo creio, à incriminação que consta do artigo 240.º/2/a)-b), do CP, que dispõe assim (redacção pré-revista): “Quem, em reunião pública, por escrito destinado a divulgação ou através de qualquer meio de comunicação social: a) Provocar actos de violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião; ou b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional ou religião, nomeadamente através da negação de crimes de guerra ou contra a paz e a humanidade; com a intenção de incitar à discriminação racial ou religiosa ou de a encorajar, é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.” Daqui logo se conclui, que o crime não consiste em “incitar ao ódio racial”. Este é apenas o seu elemento subjectivo (especial da ilicitude, para os doutores). Como PP certamente saberá, nem na menos liberal das democracias as pessoas são punidas por meros pensamentos ou intenções.
Em segundo lugar, diz ainda PP que “em países genuinamente liberais” o comportamento em causa (e estou a dar de barato que não é o de “incitar ao ódio racial”, mas aquele descrito no citado preceito da lei penal) “não é crime”. Ora bem, aqui tenho apenas uma objecção, que é o uso do plural. Pois os tais países genuinamente liberais que não têm uma incriminação daquele jaez são apenas… um: os EUA, que não ratificaram a Convenção internacional contra todas as formas de discriminação racial, de 1965, cujo artigo 4.º (salvo erro, pois cito sem a ter à mão), impôs aos estados a adopção de medidas penais como a que ficou consagrada no nosso artigo 240.º. Assim aconteceu, igualmente, com muitíssimos outros países (hoje, mais de 130!), como a Espanha (aqui sim, porventura, com excessos marcadamente antiliberais), Áustria, Alemanha, França, Suiça, Itália, Bélgica, Holanda e, imagine-se, o Reino Unido. Mesmo no único país liberal que PP conhece, a discussão sobre a necessidade e sobre a legitimidade de uma incriminação como a referida é das que mais vem incendiando a academia e os tribunais (RAV v. City of St. Paul, 1992, devia ser leitura obrigatória para PP, até porque enfileira na tese da ilegitimidade da incriminação).
Com tudo isto, não quero dizer que simpatizo como incriminações como a descrita (aliás, ampla e discutivelmente expandida com a Revisão de 2007), convicto que estou de que, efectivamente, fazem homenagem frustre a um direito penal liberal, sendo mais próprias – quando não na teoria, ao menos na prática – de um “direito penal de autor”. A mais da respectiva eficácia, legitimidade delas é, por isso, discutível e discutida. Mas apresentar o caso português como caso único e, sobretudo, tentar extrair de uma situação concreta (que, aliás, desconheço em absoluto, nomeadamente a natureza do crime que terá motivado a prisão preventiva e a manutenção dela à luz do novo regime) a conclusão de que o sistema se move por motivações políticas é algo que se me afigura relevar de olímpico desprezo pelas normas (e não só as jurídicas …) que regem na matéria.





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