16 agosto 2008
Um "mero" Mitläufer
De entre outras leituras bens mais leves, resolvi deglutir estas férias a polémica obra de Francisco Muñoz Conde (4.ª edição, revista e aumentada) sobre Edmund Mezger, um dos mais prestigiados penalistas germânicos da última centúria: Edmund Mezger y el Derecho Penal de su Tiempo – Estudios sobre el Derecho Penal en el Nacionalsocialismo, Tirant lo Blanch, 2003, 405 pp.). Polémica porque, ao que parece, nem perante extensa documentação atestando o envolvimento do académico com o regime nacionalsocialista, a sua (aliás sóbria) classificação, durante o processo de desnazificação da Alemanha, como “mero” Mitläufer e, enfim, o seu papel proeminente (melhor: principal) na elaboração do tenebroso Projecto-Lei sobre o “tratamento” dos Gemeinschaftsfremde (mais ou menos o mesmo que “estranhos à comunidade”) com o qual o regime de Hitler pretendia também dar uma Solução Final à Questão Social[1] fechando assim o febril círculo homicida aberto pela Solução Final dada à Questão Judaica, nem mesmo perante tais evidências, dizia, alguns aceitaram a bem as conclusões (aliás, não totalmente originais) do Professor de Sevilha E que Mezger tenha tido muitas e fiéis amizades, é o que justifica o facto de ter saído praticamente ileso do processo de desnazificação, ocupado novamente a cátedra que perdera no fim da Guerra, recebido honras académicas várias e, enfim, tenha sido nomeado para a muito prestigiada Vice-Presidência da Grande Comissão para a Reforma do Direito Penal, cargo que manteve até 1959.
O aludido Projecto-Lei nunca entrou em vigor. Era 1944 e a prioridade da Alemanha não era propriamente a de publicar leis. De resto, o Ministro da Justiça nazi declarava, em 1944, que “Neste momento de luta de morte ao nacionalsocialismo, inclusivamente os estranhos à comunidade devem ser utilizados como Kanonenfutter (“carne para canhão”)”! Nem mais nem menos. E assim, milhares de "estranhos à comunidade", sobretudo homossexuais, foram, pelo singelo facto de o serem, literalmente atirados para a linha da frente. Não obstante, o citado Projecto tinha, na sua génese, um importante valor simbólico para o Regime (simbólico porque seria ingénuo e mesmo infantil pensar que o que com ele se visava “legalizar” – a neutralização fáctica dos “estranhos à comunidade” – tivesse alguma vez dependido, no desgraçado estado de coisas que então se vivia, de qualquer chancela da Lei): demonstrar que o Regime era civilizado e que o que se pretendia estava não apenas institucionalmente legitimado pela Lei, mas cientificamente sancionado pela auctoritas de um prestigiadíssimo académico).
Seja como for, a “história” desta interessante obra é mais uma de entre muitas, de todos conhecidas (lembremo-nos de Carl Schmidt, de Exner, este especialmente próximo de Mezger, etc., etc.): que há sempre diligentes intelectuais dispostos a colocar os neurónios e as sinapses entre os ditos ao serviço das patifarias mais desumanas que um cérebro doente pode cogitar. Para perceber como isso é possível a obra de Muñoz Conde é, pois, um importante instrumento.
[1] Em termos enxutos: inocuizar, fosse pela privação da liberdade, fosse pela esterilização ou castração (ordenadas pelos infames Tribunais da Saúde e da Hereditariedade), fosse, enfim e no limite, pela pura e simples eliminação física dos, assim chamados, associais, como vagabundos, toxicodependentes, prostitutas, homossexuais…
O aludido Projecto-Lei nunca entrou em vigor. Era 1944 e a prioridade da Alemanha não era propriamente a de publicar leis. De resto, o Ministro da Justiça nazi declarava, em 1944, que “Neste momento de luta de morte ao nacionalsocialismo, inclusivamente os estranhos à comunidade devem ser utilizados como Kanonenfutter (“carne para canhão”)”! Nem mais nem menos. E assim, milhares de "estranhos à comunidade", sobretudo homossexuais, foram, pelo singelo facto de o serem, literalmente atirados para a linha da frente. Não obstante, o citado Projecto tinha, na sua génese, um importante valor simbólico para o Regime (simbólico porque seria ingénuo e mesmo infantil pensar que o que com ele se visava “legalizar” – a neutralização fáctica dos “estranhos à comunidade” – tivesse alguma vez dependido, no desgraçado estado de coisas que então se vivia, de qualquer chancela da Lei): demonstrar que o Regime era civilizado e que o que se pretendia estava não apenas institucionalmente legitimado pela Lei, mas cientificamente sancionado pela auctoritas de um prestigiadíssimo académico).
Seja como for, a “história” desta interessante obra é mais uma de entre muitas, de todos conhecidas (lembremo-nos de Carl Schmidt, de Exner, este especialmente próximo de Mezger, etc., etc.): que há sempre diligentes intelectuais dispostos a colocar os neurónios e as sinapses entre os ditos ao serviço das patifarias mais desumanas que um cérebro doente pode cogitar. Para perceber como isso é possível a obra de Muñoz Conde é, pois, um importante instrumento.
[1] Em termos enxutos: inocuizar, fosse pela privação da liberdade, fosse pela esterilização ou castração (ordenadas pelos infames Tribunais da Saúde e da Hereditariedade), fosse, enfim e no limite, pela pura e simples eliminação física dos, assim chamados, associais, como vagabundos, toxicodependentes, prostitutas, homossexuais…