03 outubro 2008
Admiração teutónica II
Quanto terminei o meu último postal com a referência a um “erro” do legislador (ao fim e ao cabo o erro de acreditar demasiado nos agentes do sistema, o erro de acreditar numa pronta e inequívoca adesão às intenções legislativas), não pude deixar de pensar no que se passa em sistemas penais tão radicalmente distintos do nosso, como é o caso do norte-americano. Neste, todos assumem que o sistema penal assenta, como alguém já disse, num “mar de discricionariedade”: discricionariedade da polícia, discricionariedade do “Ministério Público”, enfim, discricionariedade judicial. Sendo esse o grande problema daquele sistema, como o demonstrou definitivamente Samuel Walker num dos mais importantes livros sobre o tema (Taming the System – The Control of Discretion in Criminal Justice, 1950-1990, 1993), o grande esforço de académicos e legisladores, nas últimas décadas, foi o de urdir mecanismos que ponham um travão àquele estado de coisas, que possibilitem a contenção do fenómeno em limites toleráveis. Fazem-no, assumindo abertamente que ele existe – como existe e é, até, por razões de tradição e estrutura, conatural ao sistema.
Entre nós o pressuposto, em si mesmo correcto, é o contrário: o sistema não assenta sobre uma ideia de oportunidade ou menos ainda de discricionariedade. É um sistema de legalidade formal. O problema surge, porque parece ter-se assumido, agora erradamente, que a mera vigência de um tal princípio legal e constitucionalmente plasmado, preclude sem mais as derivas discricionárias reais, a que todo o sistema de legalidade está também sujeito. É um tique muito lusitano esse de supor que se faz uma lei e fica logo tudo resolvido. Ao contrário da política norte-americana, a nossa é, neste particular, uma espécie de “política criminal da avestruz”: diz-se que a lei obriga, suponhamos, o MP a promover a suspensão provisória do processo, verificados os seus pressupostos (por exemplo, ter sido um jovem com 16 anos, sem antecedentes criminais “apanhado” a conduzir sem carta a mota do irmão mais velho), e … pronto, dá-se de barato que cada magistrado o fará, sem mais. É aqui que o edifício se mostra construído sobre alicerces de papel. Porque desconhece as reais motivações dos operadores judiciários (p. ex., olvida-se que um requerimento daquela natureza não raro é mais trabalhoso de que acusação), esquece-se que a própria estruturação do trabalho deles é, de ordinário, pouco propícia a actuações estritamente conformes à lei (a forma de organização do trabalho do MP, em algumas circunscrições, de modo a que o magistrado que acusa não está presente em audiência é, se bem me entendem, um desincentivo à promoção de soluções de diversão processual), etc.
Não é por acaso, que boa parte da Revisão de 2007, por muitas críticas que mereça (e merecerá algumas, contundentes, como é o caso do regime do segredo de justiça, que como se sabe começa a “estalar” sob o “fardo” da Constituição), não merecerá aquela de não ter ensaiado conter, através de uma regulamentação (redundante, é certo, mas) minuciosa, certas derivas discricionárias reais em algumas áreas da aplicação da lei e que o Tribunal Constitucional topicamente pôs, como todos sabemos, a nú. Mas estas tentativas foram, ainda assim, segundo creio, frustres e, de resto, demasiado marcadas pelas “preocupações políticas do momento”. A forma como se deixou intocada a virtualmente insindicável, do ponto de vista judicial, decisão do MP de não fazer uso dos mecanismos de diversão processual, quando a lei (não se esqueça: a lei; porque o sistema é de legalidade formal) manifestamente o impõe no caso concreto é, quanto a mim, incompreensível e, a mais disso, grave. Grave, porque todos sabem ou deviam saber que a saúde de um sistema penal – para mais num país de recursos limitados – joga-se mais no tratamento da pequena e média criminalidade e, sobretudo, da criminalidade de massas do que na grande criminalidade. Só com o tratamento adequado, eficaz e célere daquela se podem reunir os meios necessários ao combate da última. É óbvio que as soluções são delicadas, pois têm como limite a autonomia do Ministério Público. Mas isso não quer dizer que não valha a pena tentar (algumas “soluções” concretas para o tópico que aqui nos ocupa poderiam ser discutidas, se o tema despertar debate).
A solução aportada pela Lei Quadro da Política Criminal é outra quanto a mim perfeitamente inconsequente. E não me referido já à bizarria de os juízes ficarem (ao menos enquanto destinatários imediatos dela) de fora (diz que é por causa da independência…; note-se o absurdo: independência em face da Lei!). E nem a imprecisões técnicas e desarmonias com a última Revisão do CPP, da autoria do mesmo legislador. Destas destaco apenas a referência a orientações sobre a pequena criminalidade (ali entendida como aquela cominada com pena não superior a 3 anos de prisão), sobre o tratamento da qual a Procuradoria-Geral da República emite directivas e instruções genéricas para aplicação de mecanismos de diversão processual, deixando de fora a média criminalidade (hoje entendida, em geral, como aquela cominada com pena não superior a 5 anos de prisão) – precisamente a franja do fenómeno criminal que, de modo inovador, igualmente em 2007 (!), pelo mesmo legislador, veio a ser abrangida pelas formas especiais de processo e pela suspensão provisória do processo! Mas, como disse, não é a isso que me referia. Referia-me, antes ao facto de aquelas directivas serem, neste particular (isto é, no que tange ao tratamento da pequena criminalidade, que já se viu que a LQPC se esqueceu da média criminalidade), absolutamente vagas, inócuas e inconsequentes (sobre elas gastam-se 5 linhas, em II-1-1.1.), remetendo na prática, uma vez mais, para as flutuações de humor de cada magistrado concreto, renunciando-se uma vez mais ao indispensável, legal e constitucionalmente imposto, controlo da actuação do MP.
Ou seja, aquela LQPC anunciou, neste aspecto algo que poderia ter não desconsiderável utilidade. Ela procurou, obviamente, dar resposta ao já bastamente citado problema das derivas discricionárias reais, que há muito é estudado pela sociologia judiciária. Não obstante um modelo penal (e processual penal) de intervenção mínima, constitucionalmente sancionado (artigo 18.º da CRP), já impusesse a um intérprete minimamente atento a escolha de mecanismos de reacção penal em crescendo de gravidade (assim, com esta ordem: mediação penal, arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória do processo, processo sumaríssimo, processo sumário, processo abreviado e processo comum; até neste aspecto, neste básico aspecto, a ordem de anunciação do artigo 12.º da LQPC se mostra tumultuária e arbitrária), o legislador percebeu que tinha que dar solução aos que exibissem uma coriácea renitência às “inovações legais” (inovações que remontam, as mais delas, há 21 anos…), prendendo-os à letra da lei. Pode dizer-se desde já que irá falhar, como falhou até aqui (parece que 7% é a percentagem melhor de requerimentos de aplicação de pena na forma sumaríssima; um escândalo, se se atender a que em países como a Alemanha, com pressupostos de aplicação mais apertados, um tal número monta a mais de 90%!). E irá falhar porque uma vez mais prescindiu de cogitar mecanismos judiciais (portanto, “externos”) eficazes de controlo da acção do MP no que respeita à utilização de soluções de diversão. A LQPC dispõe (artigo 17.º), e bem, que quando o juiz se recusa a acompanhar as promoções do MP conformes com a citada lei, o MP está obrigado a reclamar ou recorrer. Mas nada diz quando o MP, responsável primeiro pela positivação das directrizes político-criminais positivadas naquela lei, a não cumpre ele mesmo. E nada diz porque parte do princípio que o controlo de tal magistratura deve ser, nesta matéria, tão só um controlo interno, hierárquico. Teoricamente está certo. Mas aplica-se aqui tudo quanto disse no meu primeiro postal sobre este tema: há novamente um excessivo optimismo antropológico. Optimismo que se mostra infundado, logo em face das conhecidas directivas e instruções genéricas dimanadas da PGR. Onde se esperava a substanciação e sistematização de orientações (tal como sucede no âmbito comparado, como na Alemanha com as Regras Uniformes para o Processo Penal, na Inglaterra com as Legal Guidances ou nos EUA com os Principles of Federal Prosecution) – condição da sua efectiva vinculatividade, da sua utilidade de respaldamento dos magistrados na tomada de decisões e, sobretudo, condição de uma aplicação dos institutos em respeito do princípio da igualdade – brindaram-nos com 5 linhazitas e, outra vez e sempre, em eterno retorno, um mar de discricionariedade.
Entre nós o pressuposto, em si mesmo correcto, é o contrário: o sistema não assenta sobre uma ideia de oportunidade ou menos ainda de discricionariedade. É um sistema de legalidade formal. O problema surge, porque parece ter-se assumido, agora erradamente, que a mera vigência de um tal princípio legal e constitucionalmente plasmado, preclude sem mais as derivas discricionárias reais, a que todo o sistema de legalidade está também sujeito. É um tique muito lusitano esse de supor que se faz uma lei e fica logo tudo resolvido. Ao contrário da política norte-americana, a nossa é, neste particular, uma espécie de “política criminal da avestruz”: diz-se que a lei obriga, suponhamos, o MP a promover a suspensão provisória do processo, verificados os seus pressupostos (por exemplo, ter sido um jovem com 16 anos, sem antecedentes criminais “apanhado” a conduzir sem carta a mota do irmão mais velho), e … pronto, dá-se de barato que cada magistrado o fará, sem mais. É aqui que o edifício se mostra construído sobre alicerces de papel. Porque desconhece as reais motivações dos operadores judiciários (p. ex., olvida-se que um requerimento daquela natureza não raro é mais trabalhoso de que acusação), esquece-se que a própria estruturação do trabalho deles é, de ordinário, pouco propícia a actuações estritamente conformes à lei (a forma de organização do trabalho do MP, em algumas circunscrições, de modo a que o magistrado que acusa não está presente em audiência é, se bem me entendem, um desincentivo à promoção de soluções de diversão processual), etc.
Não é por acaso, que boa parte da Revisão de 2007, por muitas críticas que mereça (e merecerá algumas, contundentes, como é o caso do regime do segredo de justiça, que como se sabe começa a “estalar” sob o “fardo” da Constituição), não merecerá aquela de não ter ensaiado conter, através de uma regulamentação (redundante, é certo, mas) minuciosa, certas derivas discricionárias reais em algumas áreas da aplicação da lei e que o Tribunal Constitucional topicamente pôs, como todos sabemos, a nú. Mas estas tentativas foram, ainda assim, segundo creio, frustres e, de resto, demasiado marcadas pelas “preocupações políticas do momento”. A forma como se deixou intocada a virtualmente insindicável, do ponto de vista judicial, decisão do MP de não fazer uso dos mecanismos de diversão processual, quando a lei (não se esqueça: a lei; porque o sistema é de legalidade formal) manifestamente o impõe no caso concreto é, quanto a mim, incompreensível e, a mais disso, grave. Grave, porque todos sabem ou deviam saber que a saúde de um sistema penal – para mais num país de recursos limitados – joga-se mais no tratamento da pequena e média criminalidade e, sobretudo, da criminalidade de massas do que na grande criminalidade. Só com o tratamento adequado, eficaz e célere daquela se podem reunir os meios necessários ao combate da última. É óbvio que as soluções são delicadas, pois têm como limite a autonomia do Ministério Público. Mas isso não quer dizer que não valha a pena tentar (algumas “soluções” concretas para o tópico que aqui nos ocupa poderiam ser discutidas, se o tema despertar debate).
A solução aportada pela Lei Quadro da Política Criminal é outra quanto a mim perfeitamente inconsequente. E não me referido já à bizarria de os juízes ficarem (ao menos enquanto destinatários imediatos dela) de fora (diz que é por causa da independência…; note-se o absurdo: independência em face da Lei!). E nem a imprecisões técnicas e desarmonias com a última Revisão do CPP, da autoria do mesmo legislador. Destas destaco apenas a referência a orientações sobre a pequena criminalidade (ali entendida como aquela cominada com pena não superior a 3 anos de prisão), sobre o tratamento da qual a Procuradoria-Geral da República emite directivas e instruções genéricas para aplicação de mecanismos de diversão processual, deixando de fora a média criminalidade (hoje entendida, em geral, como aquela cominada com pena não superior a 5 anos de prisão) – precisamente a franja do fenómeno criminal que, de modo inovador, igualmente em 2007 (!), pelo mesmo legislador, veio a ser abrangida pelas formas especiais de processo e pela suspensão provisória do processo! Mas, como disse, não é a isso que me referia. Referia-me, antes ao facto de aquelas directivas serem, neste particular (isto é, no que tange ao tratamento da pequena criminalidade, que já se viu que a LQPC se esqueceu da média criminalidade), absolutamente vagas, inócuas e inconsequentes (sobre elas gastam-se 5 linhas, em II-1-1.1.), remetendo na prática, uma vez mais, para as flutuações de humor de cada magistrado concreto, renunciando-se uma vez mais ao indispensável, legal e constitucionalmente imposto, controlo da actuação do MP.
Ou seja, aquela LQPC anunciou, neste aspecto algo que poderia ter não desconsiderável utilidade. Ela procurou, obviamente, dar resposta ao já bastamente citado problema das derivas discricionárias reais, que há muito é estudado pela sociologia judiciária. Não obstante um modelo penal (e processual penal) de intervenção mínima, constitucionalmente sancionado (artigo 18.º da CRP), já impusesse a um intérprete minimamente atento a escolha de mecanismos de reacção penal em crescendo de gravidade (assim, com esta ordem: mediação penal, arquivamento em caso de dispensa de pena, suspensão provisória do processo, processo sumaríssimo, processo sumário, processo abreviado e processo comum; até neste aspecto, neste básico aspecto, a ordem de anunciação do artigo 12.º da LQPC se mostra tumultuária e arbitrária), o legislador percebeu que tinha que dar solução aos que exibissem uma coriácea renitência às “inovações legais” (inovações que remontam, as mais delas, há 21 anos…), prendendo-os à letra da lei. Pode dizer-se desde já que irá falhar, como falhou até aqui (parece que 7% é a percentagem melhor de requerimentos de aplicação de pena na forma sumaríssima; um escândalo, se se atender a que em países como a Alemanha, com pressupostos de aplicação mais apertados, um tal número monta a mais de 90%!). E irá falhar porque uma vez mais prescindiu de cogitar mecanismos judiciais (portanto, “externos”) eficazes de controlo da acção do MP no que respeita à utilização de soluções de diversão. A LQPC dispõe (artigo 17.º), e bem, que quando o juiz se recusa a acompanhar as promoções do MP conformes com a citada lei, o MP está obrigado a reclamar ou recorrer. Mas nada diz quando o MP, responsável primeiro pela positivação das directrizes político-criminais positivadas naquela lei, a não cumpre ele mesmo. E nada diz porque parte do princípio que o controlo de tal magistratura deve ser, nesta matéria, tão só um controlo interno, hierárquico. Teoricamente está certo. Mas aplica-se aqui tudo quanto disse no meu primeiro postal sobre este tema: há novamente um excessivo optimismo antropológico. Optimismo que se mostra infundado, logo em face das conhecidas directivas e instruções genéricas dimanadas da PGR. Onde se esperava a substanciação e sistematização de orientações (tal como sucede no âmbito comparado, como na Alemanha com as Regras Uniformes para o Processo Penal, na Inglaterra com as Legal Guidances ou nos EUA com os Principles of Federal Prosecution) – condição da sua efectiva vinculatividade, da sua utilidade de respaldamento dos magistrados na tomada de decisões e, sobretudo, condição de uma aplicação dos institutos em respeito do princípio da igualdade – brindaram-nos com 5 linhazitas e, outra vez e sempre, em eterno retorno, um mar de discricionariedade.