26 agosto 2009

 

Mário Soares e o socialismo

Já tenho umas décadas de vida. As suficientes para compreender que nada é definitivo, que tudo muda, mas que, nesse mudar, nem tudo o que muda corresponde a uma mudança. A verdade é que nos guiamos por modas, não só no vestir, mas também nas ideias, nos gostos, nas opções que fazemos. Umberto Eco tinha razão quando afirmou (com evidente ironia, é certo) que só lia livros novos passados dez anos da sua publicação. É inegável que há modas culturais que influenciam e condicionam os nossos gostos, sobretudo nesta época em que tudo é volátil e efémero, subordinado a impiedosas regras de consumo impostas por um mercado omnívoro, que reduziu tudo a mercadoria, mesmo os produtos culturais. Se os livros que se publicam resistirem durante dez anos, será isso um indício de que esses livros terão um valor perdurável, para além das modas que se vão sucedendo.
Vem isto a propósito, embora enviesadamente, do artigo de Mário Soares publicado na Revista «Visão» da passada 5.ª feira, dia 20, intitulado “Marx saiu do purgatório?». Marx, após a queda do «Muro de Berlim» e a implosão do «império soviético», caiu em desuso, aparentemente remetido para o museu das velharias. Mário Soares, na sua linguagem um pouco escatológica, diz que «Karl Marx parece ter caído no purgatório, senão mesmo no inferno.» Presentemente, com a crise de 2008-2009, parece ter saído do purgatório, diz o ex-presidente da República, «ele que não acreditava em Deus e que, na linha do filósofo alemão Feuerbach, acreditava que Deus era uma criação humana.» (Curiosamente, acho que Marx é muito mais agnóstico, do que ateu, o que ressalta precisamente das Teses sobre Feuerbach e de toda a sua obra dita de maturidade; verdadeiramente, ele desinteressa-se da origem, da causa primeira e do fim último, no sentido metafísico, nisso se distinguindo do materialismo que o precedeu e que se lhe seguiu, em todas as variantes do materialismo filosófico que prosseguiram pelo século XX).
Mas adiante. O que é certo é que Mário Soares, que, nos seus tempos de militante comunista, segundo revela, muito pouco terá lido de Marx (praticamente só o Manifesto Comunista – um opúsculo de carácter panfletário – e o 18 de Brumário de Luís Bonaparte – um ensaio de carácter histórico) parece tomado de um súbito entusiasmo pela renovação do interesse suscitado por Marx nos tempos presentes, chegando a recomendar vivamente um recente número especial que lhe foi dedicado pela Revista Le Point, em que colaboram «autores, entre os maiores economistas, politólogos, sociólogos e historiadores», que mostram «o que verdadeiramente escreveu, como o seu pensamento foi manipulado, bem como a sua história e herança»
Nesta linha de entusiasmo, Mário Soares aventa uma explicação. Porquê este renovado interesse? Diz ele: «Porque se o capitalismo não acabou – apenas o capitalismo financeiro-especulativo, sem valores éticos -, o socialismo democrático também não: «um socialismo de «rosto humano», como se pretendia antes do Muro, com valores democráticos, humanistas e éticos, que Marx na sua obra nunca renegou, apesar de ter preconizado a «ditadura do proletariado» e a «luta de classes», num sentido diferente do que lhe deram depois.»
É caso para perguntar se é chegada a altura para Mário Soares de tirar o socialismo da famosa gaveta onde o meteu.





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