16 maio 2010
A visita do Papa
É um facto que o Papa foi bem recebido em Portugal. Nem outra coisa seria de esperar, por várias razões:
a) Portugal é um país de tradição católica fortemente enraizada, ainda que tal tradição não tenha correspondência na vivência da fé de uma grande parte dos portugueses, que, nesse aspecto, acompanham o geral movimento de secularização das sociedades modernas, a Ocidente, e mais do que isso: de descristianização que o hedonismo reinante em que assenta o consumismo-todo-poderoso, com a sua máquina de propaganda, «medias» incluídos, vai impulsionando de forma irresistível;
b) a atracção que exerce o fausto, a pompa, o cerimonial litúrgico, a simbólica de um poder que se entroniza na Roma do velho Império e que, durante séculos, foi aprimorando as suas formas de expressão espectacular. Não é por acaso que o simbolismo do ouro, como material precioso de primeira grandeza, tem um papel importante no cerimonial que envolve a recepção do Papa, desde a baixela especialmente concebida para servir o Sumo Pontífice na travessia aérea, à folha dourada que reveste os microfones que ampliam a sua voz, à talha dourada dos altares concebidos para o específico fim da celebração da missa na praça pública, para depois serem novamente desmontados.
Significativo também a esse nível de espectacularidade foi aquela voz que ouvimos nas cerimónias de Fátima e que, de tempos a tempos, recomendava aos peregrinos que baixassem as bandeiras e estandartes para que todos tivessem oportunidade de ver o que se passava lá à frente - as cerimónias a que o Papa presidia. Temos, portanto, a visibilidade como condição da fruição e comunhão dos «fiéis» no «espectáculo»;
c) o efeito emotivo-sensorial e mesmo catártico da presença do Papa, que não é uma personagem vulgar, mas um ser único na sua função e representação, simbolizadas na figura do pastor universal do grande rebanho que ele guia em direcção a Deus, um intermediário directo da divindade, rodeado de fortes símbolos que evocam esse magno poder de que está investido, desde as vestes, que produzem um efeito insólito mesmo do ponto de vista estético, e foram minuciosamente pensadas em função de cada situação particular, até aos objectos de que se serve ou que lhe servem de adorno (o báculo, o anel – este, pessoal e intransmissível), ou em que se desloca, como o papamóvel - um carro que parece um veiculo extraterrestre – enfim, um ser que, sob a sua figura humana, é revestido de um halo transcendental, provocando em quem o vê de perto ou dele se aproxima uma espécie de transfiguração e daí que, com frequência, se ouça dizer a um desses privilegiados, “eu vi o Papa, nunca mais posso esquecer; é uma felicidade que não posso descrever ” (Fátima Campos Ferreira, em reportagem ao acontecimento no Porto, à vista do avião prestes a largar do aeroporto de Pedras Rubras, não se cansava de falar na felicidade que devia ser a da equipa que iria transportar o Papa a Roma).
Também o Cardeal-Patriarca de Lisboa, antes uns dias da vinda do Papa, exortou os católicos a receberem-no «como se fosse o Senhor». Ora, isto indicia a transferência que se faz da figura humana do Sumo Pontífice para a própria entidade que, não tendo figuração possível a não ser na imagem encarnada de Cristo, se designa por “ O Senhor”. É uma exortação, no mínimo, perturbante.
Outros, sobretudo membros do aparelho do Estado, querendo render homenagem ao Papa com uma justificação aparentemente mais laica, insistiam no seu estatuto de chefe-de-Estado. “Ele é um chefe-de-Estado”.
Em qualquer destas posições há, parece-me, um equívoco. Em relação à primeira, porque o Papa não é a divindade, mas um ser humano limitado como qualquer outro, um indivíduo sujeito a errar e a “pecar”, pesem embora as suas altíssimas funções eclesiais. Relativamente à segunda, porque o Papa não é um simples chefe-de-Estado (aliás, uma reminiscência do antigo poder temporal dos Papas), mas o líder por excelência de todo o orbe católico. Nenhum protocolo-de-Estado inclui uma liturgia religiosa, oficiada por esse suposto chefe-de-Estado e a que os dignitários de outro Estado se sintam compelidos a assistir ou nela participar. Que assistam ou nela participem por uma questão pessoal de fé, muito bem, mas que não a misturem com o protocolo-de-Estado.
De tudo resulta que o que sobressai da visita do Papa é, sobretudo, uma dimensão de espectáculo, de poder, de um cerimonial de esmagamento, seja a pretexto dos seus atributos espirituais, que relevam da ordem sagrada, seja dos seus atributos materiais, que relevam da ordem profana. Em bom rigor, esse todo confere uma imagem que se diria pouco conforme com o Evangelho, onde há um nítido apelo à humildade, à pobreza, ao despojamento, à renúncia da pompa e da riqueza, ao aparato do poder.
a) Portugal é um país de tradição católica fortemente enraizada, ainda que tal tradição não tenha correspondência na vivência da fé de uma grande parte dos portugueses, que, nesse aspecto, acompanham o geral movimento de secularização das sociedades modernas, a Ocidente, e mais do que isso: de descristianização que o hedonismo reinante em que assenta o consumismo-todo-poderoso, com a sua máquina de propaganda, «medias» incluídos, vai impulsionando de forma irresistível;
b) a atracção que exerce o fausto, a pompa, o cerimonial litúrgico, a simbólica de um poder que se entroniza na Roma do velho Império e que, durante séculos, foi aprimorando as suas formas de expressão espectacular. Não é por acaso que o simbolismo do ouro, como material precioso de primeira grandeza, tem um papel importante no cerimonial que envolve a recepção do Papa, desde a baixela especialmente concebida para servir o Sumo Pontífice na travessia aérea, à folha dourada que reveste os microfones que ampliam a sua voz, à talha dourada dos altares concebidos para o específico fim da celebração da missa na praça pública, para depois serem novamente desmontados.
Significativo também a esse nível de espectacularidade foi aquela voz que ouvimos nas cerimónias de Fátima e que, de tempos a tempos, recomendava aos peregrinos que baixassem as bandeiras e estandartes para que todos tivessem oportunidade de ver o que se passava lá à frente - as cerimónias a que o Papa presidia. Temos, portanto, a visibilidade como condição da fruição e comunhão dos «fiéis» no «espectáculo»;
c) o efeito emotivo-sensorial e mesmo catártico da presença do Papa, que não é uma personagem vulgar, mas um ser único na sua função e representação, simbolizadas na figura do pastor universal do grande rebanho que ele guia em direcção a Deus, um intermediário directo da divindade, rodeado de fortes símbolos que evocam esse magno poder de que está investido, desde as vestes, que produzem um efeito insólito mesmo do ponto de vista estético, e foram minuciosamente pensadas em função de cada situação particular, até aos objectos de que se serve ou que lhe servem de adorno (o báculo, o anel – este, pessoal e intransmissível), ou em que se desloca, como o papamóvel - um carro que parece um veiculo extraterrestre – enfim, um ser que, sob a sua figura humana, é revestido de um halo transcendental, provocando em quem o vê de perto ou dele se aproxima uma espécie de transfiguração e daí que, com frequência, se ouça dizer a um desses privilegiados, “eu vi o Papa, nunca mais posso esquecer; é uma felicidade que não posso descrever ” (Fátima Campos Ferreira, em reportagem ao acontecimento no Porto, à vista do avião prestes a largar do aeroporto de Pedras Rubras, não se cansava de falar na felicidade que devia ser a da equipa que iria transportar o Papa a Roma).
Também o Cardeal-Patriarca de Lisboa, antes uns dias da vinda do Papa, exortou os católicos a receberem-no «como se fosse o Senhor». Ora, isto indicia a transferência que se faz da figura humana do Sumo Pontífice para a própria entidade que, não tendo figuração possível a não ser na imagem encarnada de Cristo, se designa por “ O Senhor”. É uma exortação, no mínimo, perturbante.
Outros, sobretudo membros do aparelho do Estado, querendo render homenagem ao Papa com uma justificação aparentemente mais laica, insistiam no seu estatuto de chefe-de-Estado. “Ele é um chefe-de-Estado”.
Em qualquer destas posições há, parece-me, um equívoco. Em relação à primeira, porque o Papa não é a divindade, mas um ser humano limitado como qualquer outro, um indivíduo sujeito a errar e a “pecar”, pesem embora as suas altíssimas funções eclesiais. Relativamente à segunda, porque o Papa não é um simples chefe-de-Estado (aliás, uma reminiscência do antigo poder temporal dos Papas), mas o líder por excelência de todo o orbe católico. Nenhum protocolo-de-Estado inclui uma liturgia religiosa, oficiada por esse suposto chefe-de-Estado e a que os dignitários de outro Estado se sintam compelidos a assistir ou nela participar. Que assistam ou nela participem por uma questão pessoal de fé, muito bem, mas que não a misturem com o protocolo-de-Estado.
De tudo resulta que o que sobressai da visita do Papa é, sobretudo, uma dimensão de espectáculo, de poder, de um cerimonial de esmagamento, seja a pretexto dos seus atributos espirituais, que relevam da ordem sagrada, seja dos seus atributos materiais, que relevam da ordem profana. Em bom rigor, esse todo confere uma imagem que se diria pouco conforme com o Evangelho, onde há um nítido apelo à humildade, à pobreza, ao despojamento, à renúncia da pompa e da riqueza, ao aparato do poder.