04 agosto 2010

 

O Ministério Público, hoje.




Tive, por opção, uma vida longa no Ministério Público, só interrompida por um curto período na judicatura, até que concorri ao Supremo Tribunal de Justiça.
Conheci vários procuradores-gerais da República: Pinheiro Farinha, Arala Chaves, Cunha Rodrigues, Souto Moura, este agora meu colega no STJ. Pinheiro Farinha foi o magistrado escolhido para fazer a transição da ditadura para a democracia. Arala Chaves foi o que estabeleceu a transição do velho para o novo Ministério Público, em que este foi dotado de um estatuto que lhe conferiu as características de uma carreira própria, independente da magistratura judicial e servida por quadros próprios.
Cunha Rodrigues foi não só o continuador da obra começada por Arala Chaves, como aquele procurador-geral sob cujo “consulado” foi conferida ao Ministério Público a sua estrutura actual, dotando-se esta magistratura de verdadeira autonomia em face do poder político, a qual só veio a ter consagração constitucional na revisão de 1989. Claro que nisso jogaram papel importante várias forças (políticas: PS, PSD, PCP e outras; jurídicas, onde campearam juristas e constitucionalistas de vários quadrantes; sindicais, sobretudo o sindicato do Ministério Público).
Souto Moura deu continuidade à estrutura herdada do antecedente procurador-geral da República.
Nenhum destes procuradores-gerais se sentiu mal com os poderes que tinha; nenhum deles se sentiu impedido ou peado para os exercer, através dos canais próprios da hierarquia, que nunca foi tolhida no exercício das suas competências. Mais: todos eles conviveram com o Sindicato do Ministério Público, muito embora fossem equidistantes dele e não se impedissem de o criticar (a este título, foi paradigmática a atitude de Cunha Rodrigues). Isto mesmo em épocas mais conturbadas politicamente e de mais forte pendor ideológico do Sindicato.
Se há uma crise actual no Ministério Público, estou certo que ela não se deve apenas à actuação em “roda livre” dos seus magistrados (acusação antiquíssima de muitos detractores do Ministério Público), ou, pior, à sua “indisciplina” e “insubordinação”; deve-se também à falta de exercício das competências da hierarquia. O apelo ao acréscimo de poder de autoridade não passa, talvez, de uma máscara para essa insuficiência. Quando passei pelo Ministério Público, um qualquer caso relevante, como o “Freeport” (ainda para mais tão mediático) não se desenrolava à margem da hierarquia. Os magistrados encarregados do caso eram “fatalmente” orientados, supervisionados e estreitamente acompanhados pelos superiores hierárquicos. Nenhum passo era dado sem que eles o soubessem ou do qual não fossem informados. E o procurador-geral não era alheio a esse controle. Um despacho final num quejando processo não podia colher de surpresa a hierarquia. A menos que um grave desfasamento afectasse o relacionamento de um tal ou qual magistrado com a estrutura hierárquica. A autonomia do Ministério Público não era idónea para justificar situações dessas.
Acho, por isso, estranho que os magistrados encarregados do “Freeport” tenham actuado, ao elaborarem um despacho de tanta responsabilidade como é o despacho final num caso tão investido pela opinião pública (e por uma opinião repleta de vozes díspares) completamente à revelia da hierarquia. Se assim foi, esse é o sintoma de uma crise mais profunda para a qual se tentam arranjar “bodes expiatórios” e, porventura, forjar o ensejo para alterações espúrias no estatuto do Ministério Público, como seja o regresso a um autoritarismo que foi apanágio desta magistratura noutros tempos, e até fazer incursões redutoras naquilo que o Ministério Público tem de mais capital - a sua autonomia. Já há vozes que o proclamam, sem terem a mínima noção do que seja essa autonomia, confundindo-a com “indisciplina”, funcionamento “em roda livre” ou ineficácia hierárquica. Mas é assim, por vias muito sinuosas, por força de uma opinião deturpada, que às vezes se faz a História.
Um último apontamento: o sindicalismo judiciário é, provavelmente, um dos “bodes expiatórios” que se tentará abater como factor de indisciplina, de perversão do sistema e de perturbação institucional. À equidistância e ao distanciamento crítico, mas também convivente e frutuoso, que caracterizou outras épocas, a tendência é para uma excessiva e culpabilizante imputação de intenções e para uma crispação de parte a parte, que auguram o pior.





<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)