31 maio 2011
A violência-espectáculo
Indigna-me a violência e, sobretudo a violência entre jovens levada a extremos que parecem assumir uma decidida vontade de causar dano grave no corpo ou na saúde da vítima, com aparente indiferença por consequências mais radicais que possam advir.
Por isso, as imagens transmitidas pela televisão daquela cena de pancadaria em que uma jovem espanca outra com chocante crueldade causaram-me revolta e estupefacção. Essas imagens foram, de resto, tão minuciosamente transmitidas nos seus detalhes, com uma obsessão tão voyeurista, que eram para causar impacto no telespectador.
Não menos me impressionou a cena do rapaz a filmar em vídeo o que se estava a desenrolar diante dos seus olhos, todo entregue ao ofício de captar os mínimos pormenores, sem perder nada daquele prato suculento que lhe estava a ser oferecido, e isso para depois colocar a «sua obra de arte» no facebook. Este é um triste sinal dos tempos: uma violência cega entre jovens e a violência transformada em espectáculo para oferecer às massas famintas.
Esta violência não é só o sintoma de uma degradação social geral e juvenil em particular, como é objecto de um culto patológico, que se promove à sublimidade do espectáculo e se erige em momento de eleição para obtenção de algum protagonismo nas chamadas «redes sociais». Não interessa que dois ou três contendores, seja a que pretexto for (o mais das vezes um pretexto fútil ou pretexto nenhum, a não ser o incitamento à própria violência, ou o puro desejo de amesquinhar o outro) se digladiem, se esfarrapem, se estrupiem; não interessa que uma vítima, eleita muitas vezes em função de uma qualquer fragilidade, seja seviciada com toda a crueldade e brutalidade. O que interessa é o momento único, espectacular, que uma tal violência institui e a que, com verdadeira propriedade, se pode chamar um reality-show, esse depravado objecto lúdico que os meios audiovisuais, com destaque para a televisão, foram os primeiros a promover e agora campeia banalmente, sob a forma de violência-espetáculo, nas «redes sociais», com agressores e vítimas a sério e realizadores improvisados, que tentam captar com todo o sangue frio de que são capazes o sangue verdadeiro que autentica a sua obra.
Ainda há dias, vi um filme de produção dinamarquesa (por sinal tendo ganho o globo de ouro do melhor filme estrangeiro 2011), um filme de Suzanne Biere, intitulado «Num Mundo Melhor», que questionava esse tipo de violência juvenil (mais particularmente, o designado «bulliyng») e que, no caso, conduziu a um desfecho dramático, mas ao mesmo tempo libertador, na medida em que levou a uma aquisição de consciência e a uma elevação da qualidade humana das personagens envolvidas. Que esse filme tenha passado numa das salas mais diminutas da cidade do Porto, totalmente à margem do circuito comercial, é também um triste sinal dos tempos.
Rejeito, por isso, a tese de alguns, como já ouvi, de que violência escolar e entre jovens houve sempre, só que dantes, no nosso tempo (isto é, há umas décadas atrás) havia mais silêncio em redor dessa violência. A meu ver, essa é uma forma de nivelar tudo e de se recusar a ver esta violência dos tempos actuais. Mas também rejeito a insistência obsessiva com que a comunicação social, principalmente a televisão, passa as imagens desta violência real, convertendo-as, de uma outra forma, em espectáculo ou objecto de incitamento a uma outra variante de violência: a da reacção irracional do público, a de um apelo demagógico à exemplaridade justiceira.