08 junho 2011

 

Elogio à troika

Ou de como devemos estar inteiramente gratos a quem veio ajudar-nos com tanta rapidez e eficiência

Caros compatriotas:


Fiquei deveras aturdido com o arrasador trabalho da troika, essa tríade de sábios que se instalou no nosso país para pôr tudo em pratos limpos. Tão confundido, que demorei vários dias a recompor-me e a pôr ordem na minha cabeça.
Com efeito, é espantoso ver como esses nossos amigos, mal plantaram o pé no nosso país, se sentaram à secretária, num gabinete do Ministério das Finanças, ali no renovado Terreiro do Paço, arregaçaram as mangas, indiferentes ao grande sol, que é toda a riqueza que nós temos, à larga vista sobre o belíssimo estuário do Tejo, às onduladas montanhas que se divisam ao longe, e se lançaram logo ao trabalho, como leões esfaimados de actividade.
Durante algumas semanas, esquecidos das horas, quase se esquecendo do alimento que suporta o corpo, visto que muito frugalmente comiam e gastando o mínimo tempo possível, estes nossos exemplares amigos trabalharam e trabalharam e trabalharam. A sua vida, aqui, neste nosso torrão pátrio, foi praticamente só trabalho. Eles eram deixados mesmo à porta do Ministério, para o que o carro que os transportava, quando chegava ao Terreiro do Paço, metia pelos corredores interiores das arcadas pombalinas e parava rente à soleira da dita porta. Por aí é proibido circularem veículos, visto que o espaço é só de peões, mas a ganância do trabalho de que eles estavam animados fez derrubar excepcionalmente e só para eles essa proibição. De sorte que, parando aí o carro, eles enfiavam imediatamente pela porta do Ministério, como se houvesse comunicação entre esta e a porta do veículo, e subiam logo as escadas, e mergulhavam logo no trabalho durante horas esquecidas.
Mesmo na sexta-feira santa, dia que celebra a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, eles não debandaram do seu posto, enquanto aos nossos trabalhadores foi concedida dispensa do trabalho, bem como na tarde do dia anterior, quinta-feira santa. Que vergonha, caros compatriotas! Que vergonha! Nós a pedirmos ajuda a instituições filantrópicas estrangeiras, as quais enviaram rapidamente ao nosso país estes qualificados e abnegados representantes, a fim de avaliarem a fundura da nossa crise e medirem a extensão da ajuda de que necessitávamos, e não nos coibirmos de fazer gazeta ao trabalho nas venerandas barbas deles!...
Houve quem dissesse que isso só nos honrava, porque somos um povo devoto e fidelíssimo que respeita as efemérides religiosas mais carregadas de simbolismo sagrado (e haverá cousa mais importante, nesse capítulo, do que os episódios da Última Ceia e da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo?), mas tal argumento é falacioso, porque, como o povo diz na sua sabedoria ( e “voz do povo é voz de Deus”), “primeiro está a obrigação e depois a devoção”.
Houve também quem aventasse que estes senhores estavam tão enfronhados no seu trabalho, que não tinham espaço para reparar no que fazíamos ou não fazíamos, mas isso é supor erradamente que quem vem para nos ajudar não dispõe, pelo menos, do cantinho do olho para ver o que fazemos ou deixamos de fazer, se estamos ou não dispostos a trabalhar para merecermos a ajuda. Vêem e até vêem mais do que supomos. Se não vejam como aquela chanceler da grande nação alemã veio logo mandar a piada que nós precisávamos de ter menos férias e trabalharmos até idade mais avançada. É que, para se ser ajudado, é preciso trabalhar muito, para que quem nos ajuda veja que temos capacidade para sermos gratos e gratificarmos a ajuda com generosidade.
O que é certo é que estes nossos amigos, trabalhando incansavelmente, ao fim de poucas semanas expuseram um programa completíssimo de como devíamos gerir a coisa pública para endireitarmos o nosso calamitoso país. Disseram: isto tem de ser assim, assim e assim. Cortaram a direito, como se costuma dizer: nos salários do sector público; nos custos do trabalho; nas pensões dos reformados; nos benefícios fiscais; na prestação de serviços de saúde; nos obstáculos e compensações devidas pelos despedimentos de trabalhadores; na duração temporal do subsídio de desemprego; na comparticipação devida pelas empresas à Segurança Social; na concessão de crédito para habitação; no sector empresarial do Estado. Mas também, valha a verdade, não se esqueceram de aumentar ou prever o aumento de muitas outras coisas: de taxas pela prestação de serviços de saúde; de impostos sobre o consumo; de condições para a concorrência; de lapso de tempo para se aceder ao subsídio de desemprego; de capitalização do sector bancário; de facilidades para privatizações, etc, etc, etc…
Nada escapou à perspicácia destes nossos amigos, que nem sequer são políticos, mas técnicos e, como técnicos, vêem as coisas com menos rodeios do que os políticos. Nem a área da justiça ficou imune ao seu comprovado golpe de vista e notável clarividência. Veja-se como atacaram o problema das reformas judiciais. A forma fulgurante como eles implementaram medidas para desbloquear o congestionamento dos tribunais, melhorar a eficiência dos serviços e acabar em dois tempos com o número de processos pendentes, tudo com datas, faseamentos, tempos concretamente definidos.
Fantástico! Nenhum dos nossos políticos, dos nossos juristas, dos nossos governantes, dos nossos parlamentares, nenhuma forma de concertação ou pacto, nenhuma lei, por mais leis que se fizessem (e se o nosso reino é fértil e produtivo é precisamente em leis), nenhuma reforma das várias ensaiadas, conseguiram fazer o que estes nossos amigos conseguiram em duas ou três semanas. Neste pequeno espaço de tempo, lograram eles gizar, finalmente, uma reforma para tirar a nossa justiça do impasse. Mais, muito mais do que isso: uma verdadeira reforma de todo o país. Uma reforma tão completa, um tão minucioso programa de bem governar e levar a barca a bom porto, que só nos compete executar o que eles fizeram.
Caros compatriotas:
Escolhemos quem nos vai governar, no passado domingo (porque, evidentemente, somos uma democracia num país soberano e era o que havia de faltar que nos governassem outros, os de fora), mas os nossos governantes, em boa verdade, têm a «papinha» toda feita. É só prepará-la para a pôr na mesa e servir. E, ainda por cima, têm a sorte de os nossos amigos se terem comprometido a vir cá, de três em três meses, para os acompanharem e verem como estão a cumprir o programa por eles tão competentemente traçado. Atitude rara hoje em dia, pois amigos destes há muito poucos.
Saibamos, ao menos, caros compatriotas, aprender com eles e ganhar emenda de uma vez por todas.
Pelo que me toca, recebei de mim a minha sincera dose de contrição.

Jonathan Swift (1665-1745)





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