29 junho 2012

 

Qual é o mal de criminalizar o cliente da prostituta?

Espalha-se agora pela Europa um nova moda de política criminal(mente correcta): a incriminação do cliente da prostituta. Sob impulso dos estados nórdicos, expande-se para sul o modelo neo-proibicionista de desenho sueco. As notícias provenientes de França, o debate em Inglaterra e a retórica de académicos nacionais vêm dar força àquela ideia. Recentemente, num artigo de opinião publicado em 11.12.2011 no Correio da Manhã, uma ilustre professora de Direito penal veio dizer que essa incriminação seria necessária a uma espécie de protecção integral da dignidade da "vítima". Tudo devia, pois, decorrer como "já sucede" em países como a Suécia. O "já" tem o valor retórico de assinalar àquele desiderato um sentido progressista (para mais em tratando-se da Suécia...). Mas não é com mera retórica que se resolvem problemas deste calibre. O "já" também poderia ser usado para defender modelos laborais como o Holandês ou o Alemão - e a ninguém ocorrerá dizer que esses modelos são reaccionários e que na Holanda e na Alemanha não sabem o que é o liberalismo.

O nó górdio do problema é outro e mais concreto. Centra-se na estratégia de fazer do conceito de dignidade humana o "Cavalo de Tróia" através do qual, com relativa segurança, se pode invadir a restrita cidadela do Direito penal com sortidos paternalismos e moralismos. Na verdade, poder-se-ia acolher (mas dificilmente justificar) a incriminação do cliente daquela que se prostitui sem que a isso seja obrigada (claro que muitos dos que defendem essa incriminação negam a possibilidade de haver verdadeiro consentimento na prostituição - mas essa posição releva da fé e é desmentida por um módico de realismo; por outro lado, em tratando-se de prostituição forçada a legitimidade da intervenção penal é indiscutível, mas agora com base no harm to others principle) ora num paternalismo ora num moralismo jurídicos. Ali, tratar-se-ia, a mais de paternalismo indirecto (isto é, punido seria um terceiro e não o beneficiário da acção paternalista), de um paternalismo duro ou forte (é dizer: imposto a quem tem integros os mecanismos de cognição e vontade; é muito problemática a sua legitimidade em especial em matéria penal); aqui (moralismo), tratar-se-ia da pura e simples protecção penal de um "valor", desprendida da concreta violação de um qualquer bem palpável da vítima.

Sucede que trazer o debate sobre o paternalismo para o âmbito do Direito penal não implica, naturalmente, deitar borda fora as estruturas de pensamento e análise que já deram provas nesta área do Direito. Penso, antes de mais, nos crimes de perigo abstracto (aqueles em que o perigo é a motivação da incriminação, dela não sendo elemento explícito) que é através deles que em geral se tipificam condutas como a em análise (e também, p. ex., do lenocínio "simples"): punir-se-ia o cliente porque vaga e remotamente contribui para a formação de um "mercado" (o da prostituição) no âmbito do qual, algures, prostitutas podem ser lesadas na sua autonomia ou direitos. Ora, como se sabe, para que de perigo abstracto se possa falar com rigor, não basta invocar a mera contingência de certas violências em relação a certas actividades, uma mera associação de certos perigos ou danos a determinadas actividades. Fosse assim havia que criminalizar muitíssimas actividades e certamente algumas antes do que a prostituição. Imperioso é que se postule um nexo empiricamente verificável entre as mesmas (v .g., o exercício da prostituição) e determinados danos ou perigo relevante deles. Essa verificação empírica não sendo suficiente para legitimar a incriminação (que depende sempre, é óbvio, de considerações normativas) é porém necessária a um tal passo. Numa palavra, ela é imprescindível para conferir falsificabilidade à decisão do legislador. É esta verificação empírica categórica que falta no fenómeno (altamente diversificado) da prostituição, por muito que se grite em sentido contrário em "estudos" empíricos de proveniência feminista radical, amiúde afectados por graves enviesamentos metodológicos, para dizer o menos (há copiosa literatura sobre o valor desses "estudos"). A sua falta implica uma consequência: a desproporcionalidade da intervenção penal e com ela a respectiva inconstitucionalidade. Creio, por isso, que para afastar a legitimidade de uma tal intervenção aparentemente paternalista talvez nem seja necessário recorrer a uma argumentação deontológica centrada na preservação da autonomia de quem se prostitui (autonomia essa em geral olimpicamente desprezada por moralistas de proveniência sortida). Claro que as objecções que se poderiam suscitar nesta sede seriam talvez de tomo maior ainda do que aquela já referida. Mas, como disse, isso será talvez desnecessário.

Assim, o que se pretende proteger com a incriminação é um valor em si e por si - sejam eles os valores da moral sexual cristã, a "imagem" da mulher ou whatever. É aqui que entra em cena o conceito (melhor: uma certa concepção) de dignidade, valor grandiloquente que quando invocado tende a atirar por terra a parte contra quem é esgrimido. É através de um certo entendimento dele que, aqui e ali e até de modo crescente, se denfendem soluções não apenas paternalistas (a sua invocação  permite ultrapassar o escolho do consentimento da "vítima") mas mesmo moralistas (permite identificar um latíssimo "dano") de intervenção penal. É, dizia, o que sucede com certo tipo de retórica que erige a dignidade humana a se como bem jurídico penalmente tutelável, uma dignidade objectivada, insusceptível de em certa medida ser modelada por acção do portador e que além disso (e talvez por isso) surge mais como fundamento de obrigações dele para consigo mesmo do que esteio, "ADN", dos direitos fundamentais (a decisão de um tribunal do trabalho espanhol que, à força da contrariedade aos "bons costumes" do negócio prostitucional, recusou pensões sociais aos filhos menores de uma prostituta que faleceu num acidente de viação entre o local de trabalho e a sua casa ilustra bem o que quero dizer). Trata-se de uma visão da dignidade despida de concretude, alheia aos problemas reais do respectivo portador e em geral imprestável para servir de suporte à reclamação de direitos, nomeadamente económicos e sociais. Serve antes para ser usada pelos gestores da moral colectiva ao sabor das inclinações ideológicas respectivas e sob o manto diáfano da sua aparente "laicidade" ou neutralidade liberal.

Por tudo, concordo com o o que aqui já se disse sobre essa nova moda. Em todo o caso, não se julgue que este tipo de moralismos são alvará exclusivo da Direita conservadora, nomeadamente clerical. Eles são promovidos - e até de modo prevalente - por uma certa Esquerda inclinada ao feminismo militante. Inspirações dessas são detectáveis na retórica argumentativa de certa jurisprudência de jurisdições constitucionais e bem assim nas fontes de que se alimenta. Nesta matéria, conservadorismo clerical e feminismo radical (perdoe-se-me a rima) fizeram tréguas de outras "guerras". E passeiam alegremente de braço dado.






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