19 julho 2013
O discurso do Rei
segundo uma antiga lenda, para proveito e exemplo dos súbditos deste reino
Li algures que num reino minúsculo, que ficava situado num recanto do mundo, havia dois cidadãos de partidos diferentes que foram guindados ao governo pelo voto do povo para o salvarem da grave crise em que se encontrava.
Esses dois cidadãos eram deveras patriotas, ao menos no sentido em que proclamavam constantemente o seu patriotismo. Diz-se que cada qual deles porfiava por ser mais patriota do que o outro e que amavam o seu país acima de todas as coisas, mesmo acima do seu próprio povo. Primeiro o país, depois o povo.
Nenhum deles gostava de estar atrás do outro, isto é, de ser posto em segundo lugar, não porque o estar atrás ou à frente fosse muito importante, segundo as explicações que davam, mas porque queriam ambos, de igual maneira, servir o reino da melhor forma, não suportando que um deles fosse considerado mais servidor do que o outro.
Porém, um deles era o ministro-mor e o outro era o ministro com pretensões a mor, porque, evidentemente, aspirava mui legitimamente a servir o país como primeiro.
Vai daí, este último demitiu-se das suas funções, e o outro, o que era ministro-mor, não o deixou sair, por patriotismo. E imediatamente fez um discurso à Nação, dizendo que permanecia firmemente no seu posto e que não deixava sair o outro, a não ser que passasse por cima do seu cadáver, pois abandonar o barco, naquela altura, era uma traição.
O ministro demissionário retrucou que não voltava com a palavra atrás e o ministro-mor, por seu turno, disse que quem não voltava com a palavra atrás era ele. O demissionário, não vendo outra forma de levar a sua avante, anunciou que, em último caso, faria greve da fome em homenagem à sua consciência.
Estava a fazer bleuf, mas isso não o percebeu o ministro-mor, ou fez de conta que não percebeu. Entretanto, os ricos-homens do partido do ministro demissionário, que também não tinham percebido nada, começaram de fazer grande alarido, exigindo a presença no governo do seu príncipe.
Foi o que este quis ouvir, pois assim tinha ocasião de encarecer as suas exigências patrióticas. E disse solenemente: «Afinal, volto com a palavra atrás e ficarei, se passar a ter uma fatia de poder semelhante à do ministro-mor, porque o poder que eu tenho é pouco para o país que eu amo».
Pressões dum lado, pressões do outro, encerraram-se a negociar, até que chegaram a um acordo, que era este: O ministro-mor e o demissionário passavam a distribuir o poder de uma forma mais igualitária, ficando ao leme da governação em dias alternados. Porém, repararam que a semana não tinha um número par de dias. Como fazer? Esse foi um problema difícil de vencer. Ao cabo de muita excogitação, o ministro demissionário lembrou que o domingo era o dia do Senhor e que, nesse dia, deviam encomendar os destinos do país ao Altíssimo. Pois assim decidiram, aproveitando o ministro demissionário para exigir mais peso dos seus partidários no governo. No fim, deram um patriótico abraço e anunciaram ao país que o governo estava mais coeso do que nunca e que o ministro demissionário já não era demissionário, porque tudo tinha sido resolvido conforme o superior interesse da Nação, indo comunicar ao Rei o acordo a que tinham chegado.
No domingo seguinte, confiaram os destinos do país ao Altíssimo, conforme tinham combinado, e foram à missa solene que se celebrava na catedral, onde também se encontrava o Rei. Antes de começar o acto litúrgico, muitos ricos-homens, cavaleiros, infanções e damas da corte, que enchiam por completo as naves, deram muitas palmas aos ilustres governantes e ao Rei, congraçando-os com o ofício divino, se bem que alguma arraia miúda, sabendo do caso, murmurou e criticou tal acto, comparando-o com o episódio evangélico dos vendilhões do Templo. O certo é que não apareceu ali o Divino Mestre a expulsá-los a golpes de azorrague e tudo correu da melhor forma.
Porém, nos dias seguintes, o Rei, depois der ouvido os seus leais conselheiros, sobre a cabeça dos quais, segundo a lenda, pairou uma pomba misteriosa, fez um solene discurso à Nação e disse: “O nosso destino é o mar. Nele nos perderemos ou salvaremos. Vamos ao mar, meus súbditos. Ficam revogados todos os acordos em contrário”.
Jonathan Swift (1665 – 1745)