07 agosto 2013

 

Os livros (prosa de férias)


 

Uma coisa de que não me posso queixar é dos livros. Gosto deles e eles gostam de mim.

Quase sempre encontro os que procuro, vasculhando em livrarias, em alfarrabistas, em feiras do livro, em saldos, em barracas de ocasião, em vendedores de rua, em lugares esconsos. Por vezes, num amontoado de livralhada colocada a esmo, entre muita escória e farrapada, lá me aparece, perdido e sedutor, um exemplar que procurava há muito ou cuja existência já se me tinha delido na memória. E até me sucede depararem-se-me livros que nunca esperava encontrar, como, por exemplo, a 1.ª edição das obras completas de Bocage e algumas primeiras edições de Almeida Garrett, que fui descobrir num centro comercial (quem diria?), numa lojeca que vendia medalhas de bronze e colecções de numismática.

A 1.ª edição das Encruzilhadas de Deus, de José Régio, cuja capa, ostentando um desenho de Júlio, abriu para mim um riso cintilante, pôs-se-me diante dos olhos numa loja de província, que miraculosamente se encontrava aberta numa manhã de domingo. Enfim, poderia contar uma história a propósito de cada livro, cada qual mais interessante e inesperada.

Mas também me sucede andar anos a desejar possuir um certo livro, sobretudo uma primeira edição dum livro de que goste muito, até quase perder a esperança. Lá vem, contudo, um belo dia em que ele me surge, gritando-me com frenesim: “Aqui estou, seu pateta!”

Foi assim que se me deparou há dias, numa das estantes de um alfarrabista, precisamente a começar as férias, a 1.ª edição de O Mundo dos Outros, de José Gomes Ferreira, numa encadernação em meia pele ainda bem conservada. Oh, que fantástico começo de férias! Ah quanto tempo ambicionava esta obra do poeta que nasceu na Rua das Musas, na cidade do Porto, uma obra de magníficas crónicas urbanas que, por certo, nem por isso é das mais significativas dele, mas que, lida de empréstimo na minha mocidade coimbrã, me ficou gravada na memória com tinta indelével. Ficou?

Às vezes, os livros que estão na nossa memória não são exactamente os que um dia lemos. O tempo encarrega-se de os modificar pela sobreposição de outros textos que fomos construindo sobre eles, pela interposição de outras imagens que não correspondem às que formámos no momento da leitura e até pela deformação que lhes fomos introduzindo.

Já um dia, numa crónica intitulada Leitura e aventura, escrevi que, tendo procurado afanosamente nas Prosas Bárbaras, de Eça de Queirós, uma sentença que tinha por fatalmente escrita, não fui capaz de a encontrar, e tendo andado, na mesma obra, à cata de um texto sobre a Sinfonia Fantástica, de Berlioz, que também tinha por absolutamente existente, não dei com ele, tendo-se-me deparado, em sua vez, um conto em que duas personagens trocavam correspondência acerca de Paganini. Uma dessas personagens era “Berlioz”, ao tempo em que trabalhava na sua sinfonia de Harold, e outra, “um pintor” cujo nome nunca é revelado. Mas que prazer ao (re)descobrir esse texto, em cuja leitura mergulhei como  em ondas virginais. Um texto que ficara sepultado sob as camadas imaginárias do outro que eu tinha escrito mentalmente.

Pois desta vez, mal cheguei a casa com a preciosidade encontrada no alfarrabista, sucedeu-me andar na perseguição de uma crónica que eu imaginava ser sobre o dia da árvore.

Percorri o índice e encontrei um título  - “Árvore: vinga-nos!” - e disse “Cá está!”, mas não estava nada. O título não tinha qualquer relação com o dia da árvore. Procurei outros títulos que se relacionassem com o mundo vegetal: “A sombra”, “Banco de jardim”, Dona Musgo”, mas nenhum dos textos se referia, nem vagamente, ao dia da árvore. Folheei o livro todo e continuei sem enxergar o que queria. Estava quase aterrado com a ideia de os livros que li se reescreverem na minha cabeça, mas sem qualquer relação com os assuntos que eles tratavam. Já desesperado, espiolhei o livro página a página, lendo-o em diagonal e, às vezes perdendo-me no encanto de algum trecho. Por fim, acabei por encontrar o almejado tema inserido numa crónica cujo título nem remotamente lembrava o dia da árvore: “Infância estragada”.

O curioso é que o assunto principal, como o título sugere, não é o da árvore, nem nele se fala especificamente do dia celebratório da árvore. Na crónica, do que se trata, fundamentalmente, é de exautorar um universo escolar (o colégio) baseado no medo, na repressão, na arbitrariedade, na imposição do saber livresco, no sufoco da imaginação e da sensibilidade, no terror do exame. “Infância estragada” é, à sua maneira, nos limites apertados de uma crónica, uma espécie de Manhã Submersa, o romance que Vergílio Ferreira haveria de publicar cinco anos mais tarde.    

O assunto da árvore aparece em contraposição a esse universo fechado e livresco, nele se rememorando, em clima francamente republicano e pagão (estava-se em 1911, tinha o autor 11 anos de idade) um dia em que um professor se lembrou de levar os alunos a plantar uma árvore nas avenidas novas da capital. Essa árvore é para o autor o símbolo nostálgico da liberdade e do contacto com a natureza. Nostálgico e um pouco frustre, uma vez que ele, dispersada a turma de rapazitos depois de entoarem em uníssono A Sementeira, nunca mais soube do destino dessa árvore, perdida, se acaso vingou, na paisagem urbana, mas que tão ternamente ficou arreigada na sua memória.

O mais curioso é que, indo, como leitor, à procura da árvore que o livro imprimira na minha memória, fui, afinal, desembocar num texto mais complexo, que por aquela ficara submerso, e de significado sociológico muito mais rico, enganando-se quem, porventura, julgue o tema obsoleto. Ainda mais curioso é que a crónica me tenha ficado na cabeça aparentemente por causa da árvore, quando o que deveria ter ficado retido na minha memória era o assunto que ficou escondido por ela: o universo escolar de clausura e violência, o ambiente colegial, que eu fiquei a detestar, como o autor. A árvore, portanto, a ânsia de liberdade.

Na verdade, são infinitos e sempre renovados, por vezes, até misteriosos, os caminhos que os livros nos abrem.





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