12 março 2016

 

A nova peste e a nova cegueira


Já me tem ocorrido que o problema dos refugiados dava um romance alegórico à maneira de A Peste de Camus ou do Ensaio Sobre A Cegueira, de José Saramago. Isto, sem querer reduzir esse grave problema a termos romanescos.

Na verdade, o que tem vindo a acontecer diariamente com milhares de pessoas a fugirem da guerra e a pretenderem entrar no continente europeu faz lembrar que muitos países da União Europeia encaram esse fenómeno como uma invasão da peste, fechando fronteiras, construindo barreiras de arame farpado, atirando a polícia contra os portadores do “mal”, isolando-os em campos de "concentração" e enjeitando o seu acolhimento. Ao contrário da ficção de Camus, não é a solidariedade que desponta na sequência da assunção plena da condição humana, pela consciencialização forte dos seus limites e das suas fragilidades, mas precisamente o contrário: o ensimesmamento, a indiferença ao sofrimento e à morte, o fechar a porta à tragédia dos outros, o cruel abandono e mesmo a repulsão de quem pede ajuda, porque esses são encarados como a peste a que é preciso pôr cobro.

O que se está a passar com os refugiados faz pensar no lado mais negro da humanidade, retratado em muitas cenas de o Ensaio Sobre A Cegueira. A par do egoísmo europeu, que abandona os que sofrem à sua sorte, que os enxota, que os empurra para longe da vista, há essa enormidade da rede criminosa montada para explorar de todas as formas seres humanos em fragilidade ou totalmente indefesos.

Uma indústria sinistra tem florescido à custa do sofrimento e da aflição de quem procura fugir dos horrores da guerra, da devastação das suas cidades e aldeias, da ruína dos seus lares, do destroçamento das suas famílias, da perseguição dos seus algozes, da investida da morte. Os agentes dessa indústria, depois de esmifrarem até mais não poderem essas pessoas em fuga, carregam-nas em magotes, acima da lotação admissível, como gado empilhado, em frágeis botes ou em escalavradas embarcações, que se afundam no oceano e, quando não se afundam, grande parte desses forçados viajantes não chegam ao destino, morrendo por asfixia, como já  aconteceu muitas vezes, nos porões onde foram trancados.

O mesmo destino tiveram outros quando puseram o pé em terra firme, sufocando em camiões ou carrinhas de caixa fechada, onde eram amontoados como fardos. Muitos metem-se ao mar com pseudo-coletes salva-vidas, falsificados em indústrias da Turquia. Crianças desaparecem às dezenas de milhar para serem submetidas, segundo se supõe, a escravidão laboral e sexual.

Enfim, o que é que tudo isto faz ecoar de sinistro no nosso imaginário de pós-guerra, alimentado por tanto cinema, tanta literatura, tanta narração histórica do que há de mais abjecto na natureza humana?  

Precisávamos do talento de um José Saramago, para só nos atermos à esfera nacional e à área da criação literária, para pintarmos, num outro “ensaio sobre a cegueira”, o que há de execrável nestes novos episódios da nossa contemporaneidade.





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