03 março 2016

 

Discorrendo sobre "eutanásia"


Decidir sobre a sua própria morte é uma faculdade que se inscreve no âmbito da autonomia individual. Cada qual é que sabe se deve ou não pôr fim, voluntariamente, à sua vida. Pedir ajuda a terceiros para o efeito já é mais complicado e tanto mais complexo quanto maior ou menor for a intervenção requerida desses terceiros: se só uma ajuda nos meios para o próprio pôr termo à existência (suicídio assistido); se a ministração da morte por esses terceiros. Em qualquer dos casos, tal sucede para proporcionar uma morte com dignidade ao solicitante da ajuda, em condições extremas (doença incurável, normalmente associada a intenso sofrimento físico e psíquico).

O problema surge, portanto, quando há terceiros a intervir. Concebem-se, porém, situações, como as referidas, em que se pode admitir que um terceiro, nomeadamente um profissional, possa prestar ajuda, por qualquer das formas indicadas, ao indivíduo que pede auxílio para morrer. A questão é que essas situações estejam perfeita e exaustivamente regulamentadas na lei para garantir tanto a sua excepcionalidade (situações devidamente tipificadas), como a genuinidade da vontade de quem pede ajuda.

A  questão não é fácil, mas isso não nos deve impedir de encará-la seriamente, com realismo e sem preconceitos, nomeadamente de ordem confessional, sobretudo quando se tem em vista a sua regulamentação normativa, de forma a que sejam respeitadas as várias sensibilidades e concepções de vida.

Ora, o facto de se consagrar em lei a possibilidade de uma pessoa poder solicitar ajuda para morrer, em determinadas circunstâncias extremas, não implica o sacrifício de nenhuma sensibilidade ética particular ou as concepções de vida de quem quer que seja,  visto que cada um continua a poder  ter as suas em plena liberdade de consciência e a agir em consonância com elas.

Querer impor determinadas concepções a outras pessoas, proibindo, como é o caso em análise, o recurso à “eutanásia” (e eu confesso que não sou militante da causa), é que me parece abusivo e enfermar de um resquício de velhas formas de dominação. A questão nem sequer é unânime para os que professam uma fé religiosa. Ainda há pouco tempo atrás li uma declaração do teólogo católico Hans Kung em que ele afirmava que não punha de parte recorrer à eutanásia para evitar um sofrimento atroz, provocado por doença incurável, pois, segundo ele, Deus não deixaria de aprovar esse acto (não tenho bem a certeza dos termos exactos deste segmento final, mas a ideia seria mais ou menos essa). Tenho pena de não ter recortado essa declaração, eu que recorto tantos papéis, mas, na altura, não vi necessidade de o fazer. Recorrendo à Internet, vi que o referido teólogo há muito tempo que aborda essa problemática em livros onde tem exposto a evolução do seu pensamento sobre o assunto.

A Constituição não consagra um direito à morte, como escrevia há dias (Público de 01 do corrente) o meu colega e amigo Souto de Moura? Pois não, nem é preciso. Por um lado, a Constituição consagra o princípio fundamental e estruturante da dignidade humana e toda esta problemática tem a ver com ela. Por outro, não existe nenhum direito absoluto, nem o direito à vida. Todos os direitos fundamentais estão, na Constituição, num plano de horizontalidade e não de hierarquia, o que implica, para além da existência de limites imanentes, a existência de limites derivados da correlação de uns direitos com os outros.  





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