02 março 2016

 

O desconforto dum viajante da CP Conforto


 

Viajar na classe Conforto do comboio é uma aventura que pode deitar por terra todos os nossos honestos desejos de conforto.

Venho de fazer uma intervenção no CEJ sobre um tema chato: cúmulo jurídico de penas. Oxalá tenha servido de bom proveito aos novos e futuros juízes. Depois da tensão da parlenda, sobrevém a distensão gostosa, o passo lento pelas ruas, mesmo que o frio, particularmente duro nesta sexta-feira, enregele a face e as mãos, e a chuva nos vá fustigando a espaços. Mas é a pé que me apetece percorrer velhas ruas lisboetas. Entro num alfarrabista e adquiro dois ou três volumes por baixo preço, depois de vadiar pelas estantes e percorrer, à vol d’oiseau, os montes de livros empilhados numa mesa e oferecidos para venda a pataco.

O meu prazer mora na Fábrica Cofee Roasters e é para lá que dirijo os meus passos. Ambiente acolhedor de madeiras, desde o soalho às mesas. Afundo-me num sofá e peço a uma das meninas do balcão que me prepare um café de filtro a seu gosto. Um quarto de hora depois, ela apresenta-me um café da Etiópia, servido no recipiente de vidro onde foi confeccionado.

Vou bebendo o café com vagares de ocioso, enquanto folheio os livros adquiridos e leio apaixonadamente alguns trechos. No comboio de regresso prolongarei este prazer da leitura, penso eu, e eis que já me reclino no assento, antegozando o conforto do interior, em contraste com o tempo invernoso do exterior.

Na estação do Oriente entra uma leva de gente e o lugar ao lado do meu é ocupado por um sujeito forte e alto, de óculos sem aros, que acomoda a extensa bagagem por cima dos assentos de ambos os lados da carruagem. Depressa dispõe o estenderete do computador e acessórios na mesinha instalada nas costas do assento da frente. O fio do rato é agora a divisória entre o meu e o lugar dele. Começa a clicar e imagens e textos desfilam pelo ecrã.

O sujeito digita um número no telemóvel: «Está? Ora viva! Cá estou no comboio. Cheguei ontem à noite ao aeroporto da Portela…» A voz irrompe agressivamente. O homem enumera nomes, não sei se fala de um congresso.    

Regressa ao clicar. De novo digita um número no telemóvel. Agora parece falar com a mulher. Volta a clicar e outra vez digita no telemóvel:«Buenas noches! Como vás tu, Manolo? Y tua mujer? Estoy regressando ao Porto. Ya no podemos ir, el próximo domingo, a Ferrol. Está un tiempo mui malo…» A voz adquire ressonâncias altíssonas, num português espanholado que soa muito pior do que o do ex-primeiro-ministro Sócrates a discursar no país vizinho.

Olho desolado a paisagem desolada, através dos vidros onde a chuva embate, formando pequenos riachos, o livro no regaço, os braços cruzados sobre o peito, como que em atitude de protesto passivo.  Retomo a leitura, quando o sujeito recomeça a clicar, pois já conheço a espécie a que pertence: a dos clicadores, nos intervalos de telefaladores. É preciso aproveitar este pequeno espaço de paz.

- Viva! Em Maio não posso ir, pois encontrar-me-ei no Brasil. Sim, vou outra vez ao Brasil.

Leitura interrompida. Sensação de estar preso com o meu bocado de tortura; nem sequer bebo a água com que a CP me brindou num gesto de boas-vindas, pois tenho medo que me dê a vontade de fazer chichi e é uma trapalhada pedir ao sujeito que me deixe sair. Era o que ele merecia: que me levantasse tantas vezes, quantas as que ele me interrompe e o obrigasse a fechar o computador, recolher o fio do rato, tirar a tralha de cima da mesinha, para me deixar passar. Era mesmo isso, catano! No mínimo. Mas lembro-me tarde. E, além disso… Bom… adiante! Vingo-me para dentro: Estes gajos têm alguma coisa no bestunto? Alguma vez souberam o que é estar em sociedade ou conhecem algum princípio de civismo? São analfabetos é o que é, analfabetos a fingirem de ilustrados e lustrosos. Olhe! O senhor é um analfabeto frequentador da classe Conforto da CP, está a ouvir, seu imbecil?  E agarro-o pelos colarinhos, abano-o bem abanado na minha imaginação de raiva.

Estamos a chegar. Com antecedência o sujeitinho (aliás, sujeitão) começa a recolher a bagagem e eu vou a correr à casa-de-banho, sem ter bebido a água toda que a CP tão gentilmente me ofereceu.





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