24 outubro 2017
O presidente e as suas imagens
Quem,
nos últimos dias, se tenha debruçado sobre a nossa imprensa e sobre
as emissões jornalísticas de radiodifusão e televisivas, há-de
ter notado uma quase unanimidade de pontos de vista no que toca à
leitura de comportamentos, atitudes e vários outros sinais
veiculados pela palavra, pela expressão corporal e pela
exteriorização de sentimentos polarizados nas figuras do presidente
da República e do primeiro-ministro.
A
par de uma clara rendição ao presidente da República, cuja
actuação foi frequentemente classificada de brilhante, a análise
jornalística
das
relações entre ele e o primeiro-ministro, enquanto figura máxima
do governo, foi predominantemente feita com o uso de um vocabulário
expressivo de força e dominação, muitas vezes recorrendo a
metáforas em que a força física, usada no confronto directo ou na
competição, tem um valor primacial.
A
palavra “poder” foi a mais recorrentemente usada, não no exacto
sentido jurídico-político, mas
no sentido de força, demonstração de quem manda, atribuindo-se
ao presidente da República uma mais valia na afirmação de poder
pessoal e não propriamente institucional (“mostrou
quem manda”; “somou poder” foram expressões usadas).
“Dar
um murro na mesa”; “partir a louça toda”, eis outras
expressões significativas de uma autoridade mandona e insofrida
atribuídas
ao presidente da República.
Já
“ter dado um
soco no estômago”
e
“ganho o round” são expressões do âmbito da força bruta e de
desportos violentos, como o box, que certos jornalistas não se
coibiram de usar.
Nesta
pugna entre o presidente da República e o governo, houve mesmo quem
avançasse para o domínio político propriamente dito e configurasse
a partir daí o estatuto do presidente da República, parecendo
reconfortar-se euforicamente na ideia de um alargamento dos poderes
presidenciais, no sentido de uma sobreposição destes às
competências próprias do Executivo e de uma interferência do
presidente na agenda do governo.
Ora,
o que de todo este panorama verbal sobressai é uma visão
jornalística das relações entre o órgão “presidência da
República” e “governo” baseada no confronto e na truculência
e desbordando do figurino constitucional.
Esta
visão não será certamente a mais conveniente ao presidente da
República, que,
correndo incansavelmente a parte do país martirizado, confortando as
pessoas doridas, como é seu timbre, com exuberante
manifestação de ternura e compaixão,
conquistou, como
se diz,
“o coração
dos
portugueses” e aumentou a sua popularidade,
mas
que não terá querido,
nem com o seu discurso de chamada do
governo à
realidade, nem com o seu infatigável calcorreio, “dar um murro
no estômago de ninguém”, nem “partir
a
louça toda” ou simplesmente “mostrar quem
é que manda”.
Se
conseguiu
uma
quase unanimidade
de pontos de vista, isso dever-se-á
a
um enormíssimo mérito para “somar poder”, mas um poder que é
sobretudo o grande poder dos afectos.
Um
poder tão grande, tão
grande, que
levou a imagem compassiva do presidente e,
com ela, do país, além
fronteiras, à capa de revistas de renome internacional. Portugal
conquistou o mundo pelo coração do presidente e
não pelo “murro dado na mesa”.