05 março 2018
Uma crónica de vez em quando
Coisas
de nada ou talvez não
Reli
o conto “Aparas” de Raymond Carver, incluído no volume de
recolha de contos Telefona-me
Se Precisares De Mim, da
editorial Teorema.
Curioso que nunca
tinha descoberto um pormenor significativo e que para mim deveria ser
muito relevante: o facto de o protagonista “Myers”, alcoolizado
que acabou de sair de uma clínica de desintoxicação e deparou com
a recusa da mulher em continuar a viver com ele (não lhe atendeu o
telefone e não queria mais conversa com ele), tendo-se hospedado
numa casa ao pé do mar, num quarto cujo anúncio de aluguer tinha
vindo no jornal, tentou fazer qualquer coisa. Viu o dono da casa onde
se hospedou, um tal Sol, a rachar lenha e quis imitá-lo, aprendendo
com ele a cortar toros de madeira com o machado. Ao mesmo tempo,
começou a escrever no seu bloco coisas que ia fazendo ou impressões
que ia colhendo (uma espécie de diário, portanto).
Esta
opção pela escrita é que não me deveria ter escapado numa
narrativa onde ela aparece de forma insistente e talvez mesmo como
metáfora, insinuada embora de um modo discreto, quase despercebido,
como a própria urdidura dos contos de Carver, construídos a partir
de pequenas notações, coisas na aparência insignificantes,
resíduos ou aparas.
Apara: “pequena parcela que se solta de uma coisa que se corta ou
raspa”, diz o dicionário. Como possivelmente a escrita o será e a
própria vida que serve de substrato àquela, tecidas ambas de
ínfimas coisas sem relevo aparente. A escrita como meio de
surpreender a vida no que tem de mais banal e recôndito, ou talvez a
vida como escrita e a escrita como vida. Uma forma de renascer,
reaprender a viver, descobrir (e descobrir-se), ordenar o mundo
dentro de si, registar e fixar a transitiva beleza das coisas.
Bonnie,
a mulher de Sol, também tinha o hábito de escrever. “A minha
mulher quer ser escritora – disse Sol” ao recém-chegado hóspede.
Depois de ter ficado sozinha e de ter trocado impressões com o
marido sobre o novo hóspede, decidiu escrever sobre ele. «Bonnie
decidiu que ia escrever acerca do homem no caderno que ia enchendo.
Fechou os olhos e pensou o que ia escrever. O
desconhecido alto, encurvado – mas belo! – de cabelo encaracolado
e olhos tristes entrou em nossa casa
numa noite fatídica de
Agosto.»
“O
desconhecido entrou em nossa casa numa noite fatídica de Agosto».
Que mistério encerraria esse desconhecido? A escrita poderia
iluminar o mistério dessa personagem, que Bonnie registava ser alto,
encurvado, ter cabelo encaracolado e olhos tristes?
Na
véspera do dia em que decidira partir, Meyers esteve à janela do
quarto a ouvir o rio. Depois decidiu tomar o seu caderno e escrever.
Escreveu:
«A
região onde me encontro é muito exótica. Faz-me lembrar um sítio
sobre o qual tenha lido, mas para onde nunca tenha viajado. Para além
da minha janela ouve-se um rio e no vale atrás da casa há uma
floresta e precipícios, e cumes de montanha cobertos de neve. Hoje
vi uma águia selvagem, e um veado, e cortei e rachei dois esteres de
lenha.»
Na
sua simplicidade, isto é muito belo e comovente. Tem um sentido
primordial, e a escrita é a celebração dessa descoberta. Por isso,
Meyers sente-se bem e reconciliado com o mundo à sua volta.
Escreve
Carver a finalizar o conto:
«Depois
pousou a caneta e ficou um momento com a cabeça entre as mãos. A
seguir levantou-se, despiu-se e apagou a luz. Deixou a janela aberta
quando foi para a cama. Estava bem assim.»
E
eu fechei o livro, reclinei a cabeça no espaldar almofadado do
cadeirão, cerrei os olhos a meditar nas potencialidades recriadoras
da escrita e da inesgotável leitura dos textos, e assim fiquei por
momentos. Estava bem assim.