10 janeiro 2018
A renovação do mandato do Procurador-Geral
Confesso
que estava convencido que o mandato do Procurador-Geral da República
não era renovável. Aliás, a própria Procuradora-Geral da
República parece que estava convencida do mesmo, a avaliar pela
opinião que, segundo os jornais, ela expressou em 2016, por ocasião
de uma missão oficial em Cuba. Não só porque a Constituição se
não refere à renovação do mandato, estatuindo secamente que o
mandato tem a duração de seis anos, sem prejuízo das competências
do Governo e do presidente da República, competindo ao primeiro
propor e ao segundo nomear e exonerar o Procurador-Geral (exoneração
que pode ter lugar antes do termo do mandato), mas também por razões
históricas (foi assim com os dois ocupantes do cargo anteriores, a
seguir à fixação do prazo).
Foi
esta a leitura da ministra da Justiça (leitura à qual não atribuo
nenhum significado escondido): “A Constituição prevê um mandato
longo e único. Historicamente é a ideia subjacente ao mandato”.
É apenas uma interpretação não destituída de razoabilidade
jurídica e de fundamento político.
Ouvi
na TV a opinião em sentido contrário do constitucionalista Reis
Novais, que eu particularmente prezo pela qualidade das suas
opiniões. Entre outras, ele invocou uma razão que tem a ver com a
história do preceito constitucional e que eu desconhecia em
absoluto. Essa razão é uma adjuvante de relevo e um cânone
hermenêutico. Porém, a questão da não renovação explícita do
mandato dos juízes do Tribunal Constitucional, se se pretende com
isso estabelecer uma comparação por contraste, parece-me diferente,
já que, aí, é uma limitação do mandato de cada um dos juízes
que está em causa, que vai contra a tradição dos juízes
vitalícios. Imagine-se, além disso, o problema que seria renovar o mandato a uns e não renovar a outros. Pelo que toca ao presidente deste tribunal, ele é
eleito pelos seus pares, estando o seu mandato indirectamente
limitado pelo dos juízes. Assim, o mandato do presidente pode ser
mais longo ou mais curto, consoante ele for eleito no princípio ou
em momento ulterior da sua entrada em funções no tribunal. O que
conta é o seu mandato como juiz.
De
resto, há razões políticas e jurídicas para a unicidade dos
mandatos de altos cargos judiciários e políticos. Por um lado,
garantir genuinidade e independência à função, libertando
o titular da preocupação de agradar e de ser bem visto para
garantir a renovação e, por conseguinte, ser mais fiel à
legalidade e aos deveres funcionais durante
todo o tempo que durar o seu mandato;
por outro, não estiolar, nem cair na rotina burocrática, devido à
permanência demasiado tempo no cargo. Daí
que a tendência seja para estatuir uma temporalidade suficientemente
alargada para o exercício de funções, mas sem possibilidade de
renovação. Dentro dessa linha é que o mandato do presidente do
Supremo Tribunal de Justiça, por exemplo, foi alterado para um único
período e tornado mais longo. O presidente anterior ainda cumpriu
dois mandatos, sendo que o último, já na vigência da nova lei, foi
por
um período mais longo, de acordo com a alteração efectuada.
Gosto
da forma como a Dra. Joana Marques Vidal tem exercido o cargo, com
competência, com escrúpulo no cumprimento da lei,
sem crispação e sem cair no folclore mediático. Mas o problema da
renovação não pode ser visto apenas por esse lado. Tem de ser
encarado em todas as suas implicações. A renovação é uma porta
aberta para a extensão temporal do cargo
com as consequẽncias que daí advêm, muitas
das quais serão negativas e
outras poderão ser positivas. Não falo
do caso da Dra. Joana Marques Vidal; falo de forma genérica. E
haverá sempre, fatalmente, guerrilha política, quer se renove, quer
não se renove o mandato de quem quer que seja, com os prejuízos daí
advenientes para o exercício da função.
Essa
guerrilha, aliás, já começou no presente caso, seja
em certas
hostes partidárias, seja na comunicação social. E estamos ainda a
10 meses do termo do mandato da actual Procuradora-Geral. Por isso,
ainda que possa ser renovado o mandato da actual titular do cargo,
dever-se-ia tender para a sua limitação legal.