28 janeiro 2019

 

O teatro parlamentar



As sessões quinzenais da Assembleia da República com o governo a responder aos deputados são sempre um espectáculo aguardado com expectativa. Ali, o que verdadeiramente interessa não é propriamente o esclarecimento de questões fundamentais para o país, mas o confronto directo entre governo e os seus apoiantes no hemiciclo, de um lado, e a Oposição do outro, a tourada entre uns e outros, a peleja retórica. Cada qual leva as suas armas engatilhadas, uns para o ataque, outros para o contra-ataque, e esperam fazer muito estrago, muito sangue nas fileiras do adversário. O que conta é a manobra bem executada, a armadilha que se aparelha para apanhar o opositor, a emboscada com que se espera surpreendê-lo. O truque, a habilidade retórica, o trunfo puxado com jactância, eis o que cobre de brilho quem tem lugar no hemiciclo e se levanta para empunhar as suas armas.
Imagino o gozo que deve ter dado ao presidente da bancada do PSD a sua tirada inicial, na última sessão quinzenal, para entalar o primeiro-ministro, referindo a diatribe de Carlos César contra o Bloco de Esquerda, a propósito da actuação da polícia no Bairro da Jamaica, e perguntando-lhe se estava de acordo com aquele seu camarada de partido e chefe de bancada parlamentar. Eis o lance brilhante que deve ter insuflado o ego do deputado da Oposição. Se respondesse que estava de acordo com Carlos César, o primeiro-ministro colocava-se contra um dos partidos que apoia o governo; se respondesse que não estava de acordo, identificava-se com quem criticou de forma tão inflamada a actuação da polícia. As horas de sono que não deve ter custado a Negrão essa crucial questão com que abriu o debate quinzenal!
O mesmo deputado intentou jogar uma cartada de mestre, enumerando as muitas deficiências que afectam o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e acusando o governo de o levar tão desastradamente à ruína. Infelizmente deve-se ter esquecido que o seu partido votou contra o mesmo serviço, quando a emblemática Lei de Bases foi aprovada no Parlamento, mas o primeiro-ministro “marcou golo”, ao lembrar-lhe esse incidente. Negrão deve ter baqueado um momento e, levantando-se, declarou titubeante que o seu partido votou contra, mas aderiu logo. Ora, a grande novidade está nesta adesão posterior, que Negrão afirmou ter sido logo, uma afirmação atamancada no momento e para a qual faltou o brilho da habitual retórica. Negrão não perdeu tempo a explicar como e onde se deu essa adesão e passou imediatamente ao ataque que tinha artilhado em casa: o governo tem destruído o SNS com muita indignação do PSD. E do CDS, o outro partido que votou contra na altura da aprovação da Lei de Bases. Também deve ter aderido logo. Na verdade, será de presumir esta adesão, uma adesão posterior, muito reflectida e muito bem aderida, pois, de contrário, estes partidos não se mostrariam tão indignados com a referida destruição do SNS. A menos que a indignação também faça parte do teatro parlamentar.






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