18 março 2020
China IV
Manhã
cedo, quando a circulação de trânsito é ainda escassa, já
estamos a rodar no autocarro em direcção à estação dos
caminhos-de-ferro. É uma cidade ainda estremunhada esta, com raros
trauseuntes, um ou outro autocarro, carros de limpeza. A Praça
Tiananmen aparece de relance, ainda deserta, apenas povoada por meia
dúzia de pessoas, talvez operários nas limpezas matinais,
preparando o recinto para a multidão de turistas que a hão-de
encher e animar de movimento.
Caminhamos
por grandes avenidas; esta por onde circulamos chama-se Avenida da
Paz Eterna (estes nomes chineses são uma delícia, transportando-nos
para um mundo que não é deste mundo). É uma avenida inerminável,
que praticamente vai dar à estação e ao longo da qual se pode
dormir um bom bocado ao ritmo monótono do rodado do autocarro, uma
soneca tão repousante e compensatória da forçada madrugada, que
parece ter o sabor de uma paz, se não eterna, pelo menos abençoada.
A grande chatice são as malas no termo da viagem, pois trazemos
connosco toda a bagagem, enfileirando em bichas, passando com esforço
portas automáticas e controles complicados, como nos aeroportos, a
voz de Zhao Naipu chamando-nos à ordem e procurando juntar-nos com
os braços abertos: Olá! Olá!…, correndo para aqui e para acolá:
Olá! Olá!…, num curioso vocativo que me fez lembrar o barqueiro
de Gil Vicente no Auto da Barca do Inferno: “À barca, à barca,
hou lá!”
Entrámos
para a plataforma quando, no painel electrónico surgiu a hora do
embarque e passada mais uma porta que se accionava com a introdução
do bilhete. Despedimo-nos de Zhai Naipu e tomámos os nossos lugares
numa carruagem confortável. A distância que iríamos percorrer até
Chian cifrava-se em 1200 quilometros. Vencêmo-los em seis horas
exactas. Isto, porque o comboio parou em, para aí, uma dezena de
estações ou mais, que serviam outros tantos centros urbanos. O
certo é que perdia tempo a reduzir a velocidade antes da paragem, na
estação e novamente no arranque. De resto, a velocidade a que
normalmente circulava era de 300 quilómetros por hora. O serviço de
bar é que não achei famoso, pelo menos em termos de refeições.
Nem sequer serviam chá, que tão bem me teria sabido, em vez do café
a que estou habituado.
Durante
a viagem, houve sempre sol e podiam observar-se com nitidez as
paisagens que se iam desenrolando diante dos nossos olhos. Poucas
zonas montanhosas e planícies a perder de vista. Os povoados que
surgiam pareceram-me desolados, com os seus prédios tipo caixote,
uniformizados, sucedendo-se em filas, com espaços entre eles pouco
desafogados. Áreas cultivadas, sim, mas onde não se divisavam nem
pessoas, nem animais, assim como não se viam casas rurais, que
emprestam sempre às paisagens campesinas um carácter especial.
Enfim,
chegámos a Xian e já tínhamos à nossa espera a guia chinesa que
iria conduzir-nos durante o tempo que lá estivéssemos. Falava
castelhano muito bem e disse chamar-se Sílvia. É claro que era a
tradução do seu nome chinês. Quando lhe pedi para me escrever o
seu nome original, fez um gatafunho no caderno, que me deixou
perplexo. Durante o trajecto de autocarro até ao hotel, foi-nos
expondo, de um modo geral, um pouco da história da China, da sua
indústria e das suas populações e, em especial, da história da
cidade. Xian tem 3.000 anos de existência e foi a capital durante
metade das dinastias do império. O nome Xian significa Paz do Oeste
(Xi – Paz; An – Oeste). A cidade situa-se no Norte, perto da
Mongólia Interior e tem 10 milhões de habitantes. Ainda se vêem
trechos das muralhas que a cercavam.
A
chegada ao hotel – Grand Noble Hotel, onde me coube o quarto 1205 –
foi só para descarregar as malas, que o tempo nestas viagens tem de
ser aproveitado até ao segundo. De volta ao autocarro, visita ao
Pagode do Grande Ganso Selvagem, dos finais do século VII. É uma
construção em pirâmide, escalonada em andares que se vão
estreitando até ao vértice. Fica no alto de uma pequena elevação
à qual se ascende por uma ampla escadaria. Espaço de lazer
envolvente, interessante, com árvores. Havia função à hora a que
lá chegámos. Viam-se os monges budistas e os fiéis, através da
larga porta, salmodiando numa toada repetitiva, ritmada por um tambor
e um pequeno sino. Era vedada a entrada, evidentemente, e a tentativa
de disparar as máquinas fotográficas para o interior era
imediatamente sustada por vigilantes. Em redor, várias dependências
com figuras de jade representando a vida de Buda.
Actualmente,
após o degelo maoísta, conforme foi salientado pela Guia, existe
liberdade de culto na China. Mao queria acabar com a religião.
De
seguida, partimos para um outro templo, desta feita, da religião
muçulmana - a Grande Mesquita de Xian, cujas origens remontam ao
século VIII (dinasstia Tang), segundo o que foi posto a circular na
altura da visita, mas o templo terá sido construído bastante mais
tarde, durante a dinastia Ming (1368-1644), segundo o que leio num
velho guia da Baedecker (1996), que adquiri com vista a uma frustrada
viagem a Macau antes da retirada de Portugal do território, onde
iria participar num seminário sobre liberdade de expressão e de
imprensa. É possível, no entanto, que antes deste tenha exisitido
um outro templo para prestar serviço religioso à comunidade
muçulmana, que desde cedo se fixou nesta cidade integrada na Rota
da Seda. O actual dispõe de uma entrada comprida com jardins e
várias construções. O templo propriamente dito está construído
no estilo das construções chinesas e não no estilo tradicional
muçulmano, não dispondo de cúpula e minaretes. Porém, a decoração
é muçulmana.
À
hora em que por lá andávamos, os fiéis eram convocados para a
oração por meio de aparelhagem sonora, naquele estilo de cantoria
monótona.
Percorremos
depois o exótico bairro muçulmano, muito concorrido, com uma
imensidade de lojas e barracas e uma grande variedade de comidas, que
enchiam o ambiente de desencontrados odores.
Após
o jantar, fora do hotel, em local previamente combinado, saímos para
uma visita nocturna à cidade, em autocarro, acompanhados pela guia,
que jantou connosco. Por força, queria trazer-nos para esta visita,
tendo-se fartado de elogiar o encanto da cidade à noite, com o
espectáculo das suas luzes. E, de facto, o cenário é magnífico.
Fizemos várias paragens pelo caminho para admirarmos o efeito
cromático das luzes, em que se distinguiam cores variegadas
combinando-se em fantásticas composições, em particular numa zona
ribeirinha dominada por uma elevação, com os prédios e a vegetação
em cascata. Também no centro, numa das principais praças, onde
avultavam vários edifícios nobres, com trechos da muralha a
surdirem por entre as luzes, havia espectáculos de luminotecnia e
animação com bonecos, movendo-se num bailado nas varandas de um
desses edifícios, ao som de música ambiente.
Esta
animação prosseguia por outros sítios. Transportados para outro
local, fomos dar a um centro com variadas ruas, uma delas muito
comprida, pedonal, uma espécie de rua mágica (acho que era
designada mesmo assim), cheia de iluminações de variada coloração
e composição. Numerosas pessoas passeavam por ali, em grupo,
descontraídamente, ao som de música ambiente. Havia uma parte da
rua onde actuavam grupos musicais de jovens, que tocavam uma música
mais frenética e mais consonante com as novas modas. Passeámos
longamente por ali, antes de recolhermos ao autocarro, para
regressarmos ao hotel. Perguntei à guia se aquele ambiente festivo
se devia a alguma comemoração (estava-se em Outubro, em que é
tradicional celebrar-se durante o mês o aniversário da revolução
socialista) ou se era habitual. Ela respondeu que era sempre assim.
Caso para estranhar.
O
mais importante, porém, estava para vir: a visita ao museu que
guarda os célebres guerreiros de terracota. Foi para essa visita,
fundamentalmente, que Xian foi incluída no roteiro da China. Logo de
manhã cedo foi para lá que nos dirigimos.
Que
espectáculo mais fora do comum! Não há ninguém que, em face do
que lhe é exposto, não fique boquiaberto. Trata-se, efectivamente,
de um local imperdível, ao menos para quem vai à China. Ir lá de
visita e não se deslocar a Xian é como ir à Índia e privar-se de
ver o Taj Mahal. Multidões de turistas circundam demoradamente este
recinto, debruçando-se sobre a balaustrada de ferro que lhe serve de
resguardo e disparando as suas máquinas fotográficas. Abaixo do
solo, alinhadas em trincheiras escavadas na terra, milhares de
figuras em terracota compõem um exército completo, com soldados,
generais, carros de combate e cavalos. Tudo em tamanho natural. As
duas trincheiras da direita estão repletas de soldados e carros de
combate com cavalos, uma delas com maior número de figuras (cerca
de 6.000), ao passo que a outra tem cerca de 1.300; a terceira, com
menor número de figuras (umas dezenas) , está ocupada apenas por
oficiais de várias patentes e um carro de combate puxado por quatro
cavalos. As armas - arcos, lanças e espadas de bronze – eram reais
e terão sido utilizadas na guerra. Uma coisa espantosa é o realismo
e o detalhe com que estas figuras, do século III a.C., foram
concebidas: as figuras humanas, os animais, os carros de combate,
assim como as indumentárias e os apetrechos. E mais curioso ainda: a
individualidade de cada figura, como se cada uma delas representasse
um estilo e uma personalidade própria.
Esta
fantástica armada de terracota será um monumento funerário,
formando provavelmente um conjunto com outros objectos que foram
encontrados junto do mausoléu do primeiro imperador da China – Qin
Shihuang – situado ali perto, e carecendo ainda de uma cabal ou,
pelo menos, mais completa explicitação da sua simbologia. O
conjunto, que representaria o exército e a guarda de honra do
referido imperador, velando-o poderosamente na outra vida ou dando
continuidade à sua missão guerreira, pois que os soldados estão em
posição de combate, foi descoberto em 1974 por camponeses, quando
procediam à perfuração de uma parede que estava soterrada. Desde
então para cá, tem-se desenvolvido um intenso trabalho arqueológico
de desenterramento das figuras (visto que terão sido originalment
enterradas) e de restauro das mesmas, o que obriga a mil cuidados, um
restauro que não é integral, pelo menos no que se refere à pintura
das esculturas, que em algumas figuras expostas é evidenciada por
alguns vestígios que permaneceram ao longo do tempo.
Por
conseguinte, este museu singular é o próprio local arqueológico
onde têm sido desenterradas e recuperadas as figuras.
O
resto do tempo até ao almoço foi preenchido com a visita a uma
oficina de terracota e de móveis pintados e com incrustações em
jade e madrepérola. Uma oportunidade, evidentemente, para as compras
turísticas, pese embora o facto de a visita ter realmente interesse
pela qualidade e beleza de muitos objectos expostos.
Após
o almoço num restaurante situado no mesmo edifício, marchámos para
o aeroporto, onde, após as demoradas formalidades, apanhámos o
avião para Shangai. Duas horas e meia de viagem, entre as 18,00h e
as 20,30h. À nossa espera, lá estava o guia, um patusco gordinho e baixote, com curso
superior de português. Durante a viagem, expendeu longamente o seu
gosto pela nossa língua e cultura e deu mostras da sua erudição
citando Camões e alguns autores mais. E não só pela nossa língua
e cultura, mas também pela religião tradicional do nosso país,
confessando-se católico, apostólico, romano, menino de coro e
defensor da vertente mais conservadora da Igreja, incluindo a missa
em latim.
09 março 2020
China III
Transposta
a majestosa Porta Meridional, cá estamos na Cidade Proibida. Um
ampla esplanada ou praça é atravessada pela Ribeira Dourada,
cavalgada por cinco pontes em mármore, ricamente decoradas com
esculturas. É uma ribeira cujo nome é auspicioso; ao contrário
dos rios que levavam ao Inferno, com nomes escuros como Letes,
Estige, Aqueronte, etc., esta ribeira, uma vez atravessada,
conduz-nos ao fabuloso conjunto de galerias e palácios imperiais com
denominações evocadoras de um mundo harmonioso e perfeito, que se
devia parecer com o Olimpo. Uma cidade dentro da cidade, celestial,
que o não seria tanto para a multidão de serventuários, ocupando
uma extensão vastíssima, que assim o exigia a magnificência da
corte imperial. Rezam as crónicas que mais de um milhão de metros
quadrados, comportando cerca de 800 edifícios e 9.000 aposentos.
Este conjunto de imóveis, que foi declarado pela UNESCO como
Património Mundial da Humanidade, constitui um belo e singular
acervo da arquitectura palaciana chinesa. Escapou por pouco à fúria
arrasadora da Revolução Cultural.
Os
diversos pavilhões e palácios que se sucedem uns a seguir aos
outros dispõem-se ao centro, ao longo de um eixo, que divide
simetricamente a cidade em duas (aos lados, Este e Oeste, outros
palácios menos importantes se perfilam).
O
Pavilhão da Harmonia
Suprema é o primeiro
que se nos depara, transposta a grandiosa porta do mesmo nome,
flanqueada por dois enormes dragões em bronze. No vasto recinto que
o antecede, onde, pelos vistos, havia lugar para 100.000 pessoas,
decorriam as cerimónias importantes, como a coroação, os
casamentos imperiais, as celebrações do Ano Novo, etc. O imperador
era transportado numa liteira e colocado no seu luxuoso trono,
designado por Trono do
Dragão, ao centro do
pavilhão, em face do público. Tal o espectáculo que era necessário
montar para que o poder aparecesse em todo o seu esplendor. Dezoito
queimadores de incenso, em bronze, simbolizando as dezoito províncias
da China, ardiam no último dos três escalonados terraços, ornados
de ricas balaustradas de mármore, que ascendiam até à entrada onde
estava o trono.
A
parte da frente do recinto era ocupada pelos funcionários (cerca de
9.000, segundo diz o guia Zhao Naipu
pelo walkie
talkie;
segundo o guia em forma de livro
escrito em inglês que tenho comigo, o pessoal tinha que saudar o
imperador curvando a cabeça até ao solo, por nove vezes). As
bancadas laterais eram destinadas aos músicos, tangendo os seus
instrumentos.
Há
uma enorme massa de turistas vagueando por aqui, subindo ao terraço
e rondando o pavilhão. Acotovelam-se junto do sítio onde o
imperador aparecia no seu trono. Parece que o trono está lá, mas eu
não o vi. Não tive paciência para tolerar aquelas cabeças
apinhadas, espreitar por cima delas e fazer a ginástica que toda a
gente fazia de levantar os braços com a máquina em punho e tirar
uma foto. Aliás, para a maior parte dos turistas, incluindo os do
grupo onde me integro, o importante parece ser dar ao gatilho da
máquina e disparar. Atingir o alvo. Alguns, mal acabam de entrar num
determinado local, já estão a metralhar, antes mesmo de se
aperceberem da realidade do objecto ou do sítio. Pior: a sua
voracidade de imagens, a sua azáfama de caça vai ao ponto de nem
sequer escutarem o que diz o guia, tolhendo a vida a quem quer
prestar atenção. Também fui um pouco apanhado por esse vício, mas
não me deixei possuir de todo e algumas vezes resisti. Como desta
vez em relação ao trono do imperador. Por causa dele e da mania da
fotografia, uma professora de inglês na reforma perdeu-se do grupo.
Foi necessário os dois guias – a portuguesa e o chinês – irem
no seu encalço, agitando a bandeirinha portuguesa, porque pelo
telemóvel não se conseguiu falar com ela, fosse por causa do
barulho, fosse por outra razão. Felizmente, com a sua experiência
de viagens, deixou-se ficar onde estava e, daí a pouco, regressava
ao nosso seio, gingando o corpo nas pernas trôpegas, que todavia não
a tolhiam de acompanhar o grupo, mesmo quando era preciso andar mais
depressa. Era uma mulher afável, de olhos azuis, viúva de um
advogado que falecera vitimado por um cancro do pulmão, devido ao
abuso do tabaco, e por quem os olhos dela se lhe aguavam, quando
falava dele.
Assim
se passou ao Pavilhão
da Harmonia Central,
ou do Meio,
ou ainda, creio, Pavilhão
da Harmonia Perfeita
(os dois primeiros são designações que encontro nos guias
impressos; o último foi o que recolhi no meu caderno de
apontamentos, a partir do que o guia Zhao Naipu nos ia transmitindo).
Este
era o local onde o imperador recebia cumprimentos ou vassalagem dos
seus funcionários mais próximos, e dava os últimos retoques antes
de passar ao Pavilhão da Harmonia Suprema, onde decorriam, como
vimos, as cerimónias oficiais.
O
terceiro Pavilhão que vem a seguir tem a designação de Pavilhão
da Harmonia Preservada.
Era o local dos banquetes imperiais, onde, de facto, conviria
preservar alguma harmonia.
Este
conjunto de edifícios enquadrava-se no chamado Pátio
Exterior e era
destinado às representações do poder, exteriorizado por
cerimoniais, fausto e grandiosidade e pela criação de uma atmosfera
de transcendência, em que o imperador aparecia revestido de uma
espécie de magnificência celeste.
Para
além desse Pátio Exterior, seguindo a ordem da sucessão de
edifícios que se nos depara após a entrada pela Porta Meridional
ou Porta Tiananmen, mas inversa à disposição construtiva, que é
Norte/Sul, fica o Pátio Interior, um espaço exclusivamente
reservado ao imperador e demais membros da sua corte e onde era
proibida a entrada de qualquer estranho, sob pena de execução
sumária.
Esta
face interior era formada por três palácios: o Palácio
da Pureza Celestial, o
Palácio da União
entre o Céu e a Terra
e o Palácio da
Tranquilidade Terrena.
Nomes que, só por si, dizem muito da concepção da vida imperial e
da ancestral cultura chinesa. Rezam as crónicas que era no último
dos palácios citados que as imperatrizes viviam e dormiam e, além
disso, era lá que era passada a noite de núpcias. As outras noites
ficariam à discrição dos imperadores, segundo penso, pois tinham à
sua disposição uma gama variável, mas no geral muito diversificada
e vasta de concubinas, que viviam em palácios próprios, situados na
área imperial. Através das vidraças das janelas, os turistas
curiosos tentam imaginar como seria o seu dia-a-dia, coscuvilhando
móveis, utensílios vários e objectos de adorno, que se divisam no
interior.
Por
trás destes palácios, ou seja, a seguir a eles, segundo a
orientação que vamos seguindo, situa-se o Jardim
Imperial, um belo e
aprazível espaço que é um modelo da arquitectura paisagística
chinesa. Pequenos recantos, montículos arrelvados e variadas
espécies arbóreas, onde se distinguem velhos pinheiros, bambus,
ciprestes. Entre o arvoredo, outras construções com nomes
igualmente magnânimos, como o Pavilhão
da Paz Imperial. Num
destes edifícios, se bem escutei Zhao Naipu, foi que o último
imperador, o protagonista do filme de Bertolucci, fez a sua
aprendizagem escolar.
E
assim vamos fruindo o espaço neste dia de sol, imaginando as
delícias de um piquenique em qualquer destes recantos, enquanto nos
vamos encaminhando para a porta de saída, situada do lado Norte.
Após
o repasto chinês num restaurante de Pequim e um cafèzinho expresso
tomado numa cafetaria ao lado, da cadeia Starbucks,
que é uma multinacional (já o vimos noutras partes do planeta,
nomeadamente na Índia, no Dubai e em Manhattan), pois os
restaurantes chineses apenas servem chá, de ordinário durante a
refeição, já vamos de largada para outra visita. Desta feita, o
alvo da nossa viagem é o célebre Templo
do Céu.
Mal
descemos do autocarro num largo situado na vizinhança,
deparou-se-nos, no cimo de uma elevação, um curioso monumento, que
tenho a impressão que se avista de muitas partes da cidade, dada a
sua localização altaneira. A área circundante é um amplo espaço
de lazer com esplanadas arborizadas e mesas para piquenique. Muitos
chineses por aqui passeiam e se divertem, com destaque para os
reformados (homens e mulheres), que, em grande número, sentados em
bancadas e muros baixos, pincipalmente a todo o comprimento de um
Longo Corredor,
semelhante ao que já encontrámos no Palácio de Verão, se dedicam
ao jogo de cartas com entusiasmo e e grande arruído. Pelos vistos,
segundo informação do guia, que interpelei, é um jogo muito comum
na China e o principal divertimento dos reformados (a reforma é aos
60 anos), depois da obrigação de cuidarem dos netos.
“Dos
netos?”, reagi espantado.
“Sim,
reafirmou ele.”
“Então
não são as creches?, os infantários? Não é o Estado que se
encarrega obrigatoriamente da ocupação e educação das crianças?”
“Não
é obrigatório que as crianças vão para as creches e os
infantários. Depende da vontade dos pais, respondeu”.
Este
é mais um exemplo da viragem da China. É claro que não se tratará
apenas de uma maior liberdade educativa em benefício dos parentes da
criança e da consequente abdicação, por parte do Estado, do
monopólio da educação e ensino a todos os níveis, mas também (e
principalmente?), da libertação estadual do correspondente ónus
financeiro.
Mas
retornemos ao Templo
do Céu,
que se avista mesmo na nossa frente, como estava dizendo. O monumento
que ressalta na sua beleza invulgar é o principal de três templos
taoístas. O taoísmo é uma religião
baseada em grane medida nos ensinamentos e na filosofia de Lao Tse,
um poeta que viveu no século VI a.C. a quem é atribuído o livro de
poemas Tao
Te King,
que significa “livro da Via e da Virtude”, um
livro que, sob muitos aspectos, é admirável pelo esforço que faz
na conciliação dos contrários, na exaltação do fraco em vez do
forte, da suavidade em vez da rudeza, do simples em vez do complexo,
do humilde em vez do poderoso, como via ou o caminho para atingir a
perfeição, a paz e a tranquilidade, a sublimidade celestial, mas
que também é descoroçoante no exaltar a quietação, a inacção,
por vezes até a ignorância e o nada [“Rejeita a sabedoria e o
conhecimento,/o povo tirará assim cem vezes mais proveito” (…) e
noutro poema: “Quem pouco sabe terá o conhecimento seguro, Quem
muito sabe ficará na dúvida (…)”], (Tao
Te King,
Editorial Estampa, 2ª edição, 1977)
Uma
escadaria majestosa em três lanços, com uma tríplice balaustrada
em mármore, conduz ao principal dos templos a que me vinha
referindo. Tem uma forma cónica e está coberto por um triplo tecto,
cujos círculos se vão estreitando para cima e terminando por um
pináculo com uma bola dourada. Telhas de um azul purpúreo cobrem o
triplo tecto, conferindo-lhe um aspecto gracioso. Estamos em face da
denominada Sala
da Oração pelas Boas Colheitas.
Era aqui que o imperador vinha rezar, todos os anos, pelas boas
colheitas, no início da Primavera, e pelos frutos e cereais obtidos,
no Outono.
O
espaço em redor é um vasto círculo, de chão marmóreo, cercado
pela referida balaustrada, interrompida no cimo pelos vários lanços
de escadas correspondentes aos vários acessos que conduzem ao
recinto – Norte, Sul, Este e Oeste. O que foi utilizado por nós
leva directamente à Sala de Oração pelas Boas Colheitas.
Os
outros templos situados na área são a Abóbada
Celestial Imperial
e o Altar
Circular, ligado
por um arruamento empedrado
à Sala da Oração pelas Boas Colheitas.
O primeiro apresenta uma construção similar à deste último
templo, embora de dimensão mais reduzida e tem como curiosidade o
muro que o cerca, conhecido pelo Muro
do Eco,
por permitir que uma voz emitida em qualquer parte dele seja ouvida
no lado oposto ou em qualquer outro ponto. O Altar
Circular
dispõe de uma simbologia especial à volta do número 9 e seus
múltiplos (9, 27, 81), patente no número de degraus da escadaria
que lhe dá acesso, na balaustrada e na decoração interior.
É
curioso constatar que a simbologia do número 9 e seus múltiplos
está ligada ao sagrado de várias religiões e ao ritual de certas
práticas iniciáticas, bem como transparece no simbolismo de certas
obras de arte, das quais A
Divina Comédia
de Dante é um exemplo flagrante. Nove é o número de círrculos
infernais; nove é um múltiplo de 3, sendo que o poema de Dante está
construído em tercetos.
Do
Templo do Céu partimos para outro local de Pequim, para um teatro,
onde assistimos a um espectáculo teatral de Kung Fu. Contava a
história de uma criança entregue aos cuidados de um monge de Kung
Fu, o qual, através de ilustrações e exercícios próprios desta
arte marcial, de uma incrível destreza e acrobática
espectacularidade, ia ministrando ensinamentos sobre o domínio do
corpo e da mente, sobre a arte de vencer resistências e
dificuldades e de se superar a si próprio, expondo toda uma
filosofia de vida.
Dali
fomos para o jantar, num restaurante situado numa das grandes
avenidas de Pequim. O jantar foi constituído por, entre outras
coisas, porque a comida chinesa consta de uma variedade de pratos,
como é sabido, pato à pequinense. Munidos de branquíssimos e
brunidos aventais e armados de facas afiadíssimas, lá estavam dois
empregados cortando aplicadamente as aves já cozinhadas em pequenas
lascas, como é de uso na comida chinesa, por causa da não
utilização da faca e do garfo. Faziam-no de forma extremamente
metódica e expondo-se ostensivamente à curiosidade dos turistas,
que, como é de prever, disparavam as suas máquinas fotográficas e
telemóveis com grande voracidade gastronómica.
O
mais curioso é este facto que nos foi contado pelo guia e que causa
consternação: os patos, enquanto vivos, são submetidos a uma
alimentação especial para crescerem rapidamente e para perderem a
gordura que vão acumulando, são metidos em capoeiras alongadas com
o chão forrado de tijolos aquecidos por meio de um qualquer sistema
térmico, de forma a obrigarem os pobres animais a moverem-se
constantemente de um lado para o outro. Cruel, não? E de sinistra
imaginação glutona.