09 março 2020

 

China III


Transposta a majestosa Porta Meridional, cá estamos na Cidade Proibida. Um ampla esplanada ou praça é atravessada pela Ribeira Dourada, cavalgada por cinco pontes em mármore, ricamente decoradas com esculturas. É uma ribeira cujo nome é auspicioso; ao contrário dos rios que levavam ao Inferno, com nomes escuros como Letes, Estige, Aqueronte, etc., esta ribeira, uma vez atravessada, conduz-nos ao fabuloso conjunto de galerias e palácios imperiais com denominações evocadoras de um mundo harmonioso e perfeito, que se devia parecer com o Olimpo. Uma cidade dentro da cidade, celestial, que o não seria tanto para a multidão de serventuários, ocupando uma extensão vastíssima, que assim o exigia a magnificência da corte imperial. Rezam as crónicas que mais de um milhão de metros quadrados, comportando cerca de 800 edifícios e 9.000 aposentos. Este conjunto de imóveis, que foi declarado pela UNESCO como Património Mundial da Humanidade, constitui um belo e singular acervo da arquitectura palaciana chinesa. Escapou por pouco à fúria arrasadora da Revolução Cultural.
Os diversos pavilhões e palácios que se sucedem uns a seguir aos outros dispõem-se ao centro, ao longo de um eixo, que divide simetricamente a cidade em duas (aos lados, Este e Oeste, outros palácios menos importantes se perfilam).
O Pavilhão da Harmonia Suprema é o primeiro que se nos depara, transposta a grandiosa porta do mesmo nome, flanqueada por dois enormes dragões em bronze. No vasto recinto que o antecede, onde, pelos vistos, havia lugar para 100.000 pessoas, decorriam as cerimónias importantes, como a coroação, os casamentos imperiais, as celebrações do Ano Novo, etc. O imperador era transportado numa liteira e colocado no seu luxuoso trono, designado por Trono do Dragão, ao centro do pavilhão, em face do público. Tal o espectáculo que era necessário montar para que o poder aparecesse em todo o seu esplendor. Dezoito queimadores de incenso, em bronze, simbolizando as dezoito províncias da China, ardiam no último dos três escalonados terraços, ornados de ricas balaustradas de mármore, que ascendiam até à entrada onde estava o trono.
A parte da frente do recinto era ocupada pelos funcionários (cerca de 9.000, segundo diz o guia Zhao Naipu pelo walkie talkie; segundo o guia em forma de livro escrito em inglês que tenho comigo, o pessoal tinha que saudar o imperador curvando a cabeça até ao solo, por nove vezes). As bancadas laterais eram destinadas aos músicos, tangendo os seus instrumentos.
Há uma enorme massa de turistas vagueando por aqui, subindo ao terraço e rondando o pavilhão. Acotovelam-se junto do sítio onde o imperador aparecia no seu trono. Parece que o trono está lá, mas eu não o vi. Não tive paciência para tolerar aquelas cabeças apinhadas, espreitar por cima delas e fazer a ginástica que toda a gente fazia de levantar os braços com a máquina em punho e tirar uma foto. Aliás, para a maior parte dos turistas, incluindo os do grupo onde me integro, o importante parece ser dar ao gatilho da máquina e disparar. Atingir o alvo. Alguns, mal acabam de entrar num determinado local, já estão a metralhar, antes mesmo de se aperceberem da realidade do objecto ou do sítio. Pior: a sua voracidade de imagens, a sua azáfama de caça vai ao ponto de nem sequer escutarem o que diz o guia, tolhendo a vida a quem quer prestar atenção. Também fui um pouco apanhado por esse vício, mas não me deixei possuir de todo e algumas vezes resisti. Como desta vez em relação ao trono do imperador. Por causa dele e da mania da fotografia, uma professora de inglês na reforma perdeu-se do grupo. Foi necessário os dois guias – a portuguesa e o chinês – irem no seu encalço, agitando a bandeirinha portuguesa, porque pelo telemóvel não se conseguiu falar com ela, fosse por causa do barulho, fosse por outra razão. Felizmente, com a sua experiência de viagens, deixou-se ficar onde estava e, daí a pouco, regressava ao nosso seio, gingando o corpo nas pernas trôpegas, que todavia não a tolhiam de acompanhar o grupo, mesmo quando era preciso andar mais depressa. Era uma mulher afável, de olhos azuis, viúva de um advogado que falecera vitimado por um cancro do pulmão, devido ao abuso do tabaco, e por quem os olhos dela se lhe aguavam, quando falava dele.
Assim se passou ao Pavilhão da Harmonia Central, ou do Meio, ou ainda, creio, Pavilhão da Harmonia Perfeita (os dois primeiros são designações que encontro nos guias impressos; o último foi o que recolhi no meu caderno de apontamentos, a partir do que o guia Zhao Naipu nos ia transmitindo).
Este era o local onde o imperador recebia cumprimentos ou vassalagem dos seus funcionários mais próximos, e dava os últimos retoques antes de passar ao Pavilhão da Harmonia Suprema, onde decorriam, como vimos, as cerimónias oficiais.
O terceiro Pavilhão que vem a seguir tem a designação de Pavilhão da Harmonia Preservada. Era o local dos banquetes imperiais, onde, de facto, conviria preservar alguma harmonia.
Este conjunto de edifícios enquadrava-se no chamado Pátio Exterior e era destinado às representações do poder, exteriorizado por cerimoniais, fausto e grandiosidade e pela criação de uma atmosfera de transcendência, em que o imperador aparecia revestido de uma espécie de magnificência celeste.
Para além desse Pátio Exterior, seguindo a ordem da sucessão de edifícios que se nos depara após a entrada pela Porta Meridional ou Porta Tiananmen, mas inversa à disposição construtiva, que é Norte/Sul, fica o Pátio Interior, um espaço exclusivamente reservado ao imperador e demais membros da sua corte e onde era proibida a entrada de qualquer estranho, sob pena de execução sumária.
Esta face interior era formada por três palácios: o Palácio da Pureza Celestial, o Palácio da União entre o Céu e a Terra e o Palácio da Tranquilidade Terrena. Nomes que, só por si, dizem muito da concepção da vida imperial e da ancestral cultura chinesa. Rezam as crónicas que era no último dos palácios citados que as imperatrizes viviam e dormiam e, além disso, era lá que era passada a noite de núpcias. As outras noites ficariam à discrição dos imperadores, segundo penso, pois tinham à sua disposição uma gama variável, mas no geral muito diversificada e vasta de concubinas, que viviam em palácios próprios, situados na área imperial. Através das vidraças das janelas, os turistas curiosos tentam imaginar como seria o seu dia-a-dia, coscuvilhando móveis, utensílios vários e objectos de adorno, que se divisam no interior.
Por trás destes palácios, ou seja, a seguir a eles, segundo a orientação que vamos seguindo, situa-se o Jardim Imperial, um belo e aprazível espaço que é um modelo da arquitectura paisagística chinesa. Pequenos recantos, montículos arrelvados e variadas espécies arbóreas, onde se distinguem velhos pinheiros, bambus, ciprestes. Entre o arvoredo, outras construções com nomes igualmente magnânimos, como o Pavilhão da Paz Imperial. Num destes edifícios, se bem escutei Zhao Naipu, foi que o último imperador, o protagonista do filme de Bertolucci, fez a sua aprendizagem escolar.
E assim vamos fruindo o espaço neste dia de sol, imaginando as delícias de um piquenique em qualquer destes recantos, enquanto nos vamos encaminhando para a porta de saída, situada do lado Norte.
Após o repasto chinês num restaurante de Pequim e um cafèzinho expresso tomado numa cafetaria ao lado, da cadeia Starbucks, que é uma multinacional (já o vimos noutras partes do planeta, nomeadamente na Índia, no Dubai e em Manhattan), pois os restaurantes chineses apenas servem chá, de ordinário durante a refeição, já vamos de largada para outra visita. Desta feita, o alvo da nossa viagem é o célebre Templo do Céu.
Mal descemos do autocarro num largo situado na vizinhança, deparou-se-nos, no cimo de uma elevação, um curioso monumento, que tenho a impressão que se avista de muitas partes da cidade, dada a sua localização altaneira. A área circundante é um amplo espaço de lazer com esplanadas arborizadas e mesas para piquenique. Muitos chineses por aqui passeiam e se divertem, com destaque para os reformados (homens e mulheres), que, em grande número, sentados em bancadas e muros baixos, pincipalmente a todo o comprimento de um Longo Corredor, semelhante ao que já encontrámos no Palácio de Verão, se dedicam ao jogo de cartas com entusiasmo e e grande arruído. Pelos vistos, segundo informação do guia, que interpelei, é um jogo muito comum na China e o principal divertimento dos reformados (a reforma é aos 60 anos), depois da obrigação de cuidarem dos netos.
Dos netos?”, reagi espantado.
Sim, reafirmou ele.”
Então não são as creches?, os infantários? Não é o Estado que se encarrega obrigatoriamente da ocupação e educação das crianças?”
Não é obrigatório que as crianças vão para as creches e os infantários. Depende da vontade dos pais, respondeu”.
Este é mais um exemplo da viragem da China. É claro que não se tratará apenas de uma maior liberdade educativa em benefício dos parentes da criança e da consequente abdicação, por parte do Estado, do monopólio da educação e ensino a todos os níveis, mas também (e principalmente?), da libertação estadual do correspondente ónus financeiro.
Mas retornemos ao Templo do Céu, que se avista mesmo na nossa frente, como estava dizendo. O monumento que ressalta na sua beleza invulgar é o principal de três templos taoístas. O taoísmo é uma religião baseada em grane medida nos ensinamentos e na filosofia de Lao Tse, um poeta que viveu no século VI a.C. a quem é atribuído o livro de poemas Tao Te King, que significa “livro da Via e da Virtude”, um livro que, sob muitos aspectos, é admirável pelo esforço que faz na conciliação dos contrários, na exaltação do fraco em vez do forte, da suavidade em vez da rudeza, do simples em vez do complexo, do humilde em vez do poderoso, como via ou o caminho para atingir a perfeição, a paz e a tranquilidade, a sublimidade celestial, mas que também é descoroçoante no exaltar a quietação, a inacção, por vezes até a ignorância e o nada [“Rejeita a sabedoria e o conhecimento,/o povo tirará assim cem vezes mais proveito” (…) e noutro poema: “Quem pouco sabe terá o conhecimento seguro, Quem muito sabe ficará na dúvida (…)”], (Tao Te King, Editorial Estampa, 2ª edição, 1977)
Uma escadaria majestosa em três lanços, com uma tríplice balaustrada em mármore, conduz ao principal dos templos a que me vinha referindo. Tem uma forma cónica e está coberto por um triplo tecto, cujos círculos se vão estreitando para cima e terminando por um pináculo com uma bola dourada. Telhas de um azul purpúreo cobrem o triplo tecto, conferindo-lhe um aspecto gracioso. Estamos em face da denominada Sala da Oração pelas Boas Colheitas. Era aqui que o imperador vinha rezar, todos os anos, pelas boas colheitas, no início da Primavera, e pelos frutos e cereais obtidos, no Outono.
O espaço em redor é um vasto círculo, de chão marmóreo, cercado pela referida balaustrada, interrompida no cimo pelos vários lanços de escadas correspondentes aos vários acessos que conduzem ao recinto – Norte, Sul, Este e Oeste. O que foi utilizado por nós leva directamente à Sala de Oração pelas Boas Colheitas.
Os outros templos situados na área são a Abóbada Celestial Imperial e o Altar Circular, ligado por um arruamento empedrado à Sala da Oração pelas Boas Colheitas. O primeiro apresenta uma construção similar à deste último templo, embora de dimensão mais reduzida e tem como curiosidade o muro que o cerca, conhecido pelo Muro do Eco, por permitir que uma voz emitida em qualquer parte dele seja ouvida no lado oposto ou em qualquer outro ponto. O Altar Circular dispõe de uma simbologia especial à volta do número 9 e seus múltiplos (9, 27, 81), patente no número de degraus da escadaria que lhe dá acesso, na balaustrada e na decoração interior.
É curioso constatar que a simbologia do número 9 e seus múltiplos está ligada ao sagrado de várias religiões e ao ritual de certas práticas iniciáticas, bem como transparece no simbolismo de certas obras de arte, das quais A Divina Comédia de Dante é um exemplo flagrante. Nove é o número de círrculos infernais; nove é um múltiplo de 3, sendo que o poema de Dante está construído em tercetos.
Do Templo do Céu partimos para outro local de Pequim, para um teatro, onde assistimos a um espectáculo teatral de Kung Fu. Contava a história de uma criança entregue aos cuidados de um monge de Kung Fu, o qual, através de ilustrações e exercícios próprios desta arte marcial, de uma incrível destreza e acrobática espectacularidade, ia ministrando ensinamentos sobre o domínio do corpo e da mente, sobre a arte de vencer resistências e dificuldades e de se superar a si próprio, expondo toda uma filosofia de vida.
Dali fomos para o jantar, num restaurante situado numa das grandes avenidas de Pequim. O jantar foi constituído por, entre outras coisas, porque a comida chinesa consta de uma variedade de pratos, como é sabido, pato à pequinense. Munidos de branquíssimos e brunidos aventais e armados de facas afiadíssimas, lá estavam dois empregados cortando aplicadamente as aves já cozinhadas em pequenas lascas, como é de uso na comida chinesa, por causa da não utilização da faca e do garfo. Faziam-no de forma extremamente metódica e expondo-se ostensivamente à curiosidade dos turistas, que, como é de prever, disparavam as suas máquinas fotográficas e telemóveis com grande voracidade gastronómica.
O mais curioso é este facto que nos foi contado pelo guia e que causa consternação: os patos, enquanto vivos, são submetidos a uma alimentação especial para crescerem rapidamente e para perderem a gordura que vão acumulando, são metidos em capoeiras alongadas com o chão forrado de tijolos aquecidos por meio de um qualquer sistema térmico, de forma a obrigarem os pobres animais a moverem-se constantemente de um lado para o outro. Cruel, não? E de sinistra imaginação glutona.








<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?


Estatísticas (desde 30/11/2005)