18 março 2020
China IV
Manhã
cedo, quando a circulação de trânsito é ainda escassa, já
estamos a rodar no autocarro em direcção à estação dos
caminhos-de-ferro. É uma cidade ainda estremunhada esta, com raros
trauseuntes, um ou outro autocarro, carros de limpeza. A Praça
Tiananmen aparece de relance, ainda deserta, apenas povoada por meia
dúzia de pessoas, talvez operários nas limpezas matinais,
preparando o recinto para a multidão de turistas que a hão-de
encher e animar de movimento.
Caminhamos
por grandes avenidas; esta por onde circulamos chama-se Avenida da
Paz Eterna (estes nomes chineses são uma delícia, transportando-nos
para um mundo que não é deste mundo). É uma avenida inerminável,
que praticamente vai dar à estação e ao longo da qual se pode
dormir um bom bocado ao ritmo monótono do rodado do autocarro, uma
soneca tão repousante e compensatória da forçada madrugada, que
parece ter o sabor de uma paz, se não eterna, pelo menos abençoada.
A grande chatice são as malas no termo da viagem, pois trazemos
connosco toda a bagagem, enfileirando em bichas, passando com esforço
portas automáticas e controles complicados, como nos aeroportos, a
voz de Zhao Naipu chamando-nos à ordem e procurando juntar-nos com
os braços abertos: Olá! Olá!…, correndo para aqui e para acolá:
Olá! Olá!…, num curioso vocativo que me fez lembrar o barqueiro
de Gil Vicente no Auto da Barca do Inferno: “À barca, à barca,
hou lá!”
Entrámos
para a plataforma quando, no painel electrónico surgiu a hora do
embarque e passada mais uma porta que se accionava com a introdução
do bilhete. Despedimo-nos de Zhai Naipu e tomámos os nossos lugares
numa carruagem confortável. A distância que iríamos percorrer até
Chian cifrava-se em 1200 quilometros. Vencêmo-los em seis horas
exactas. Isto, porque o comboio parou em, para aí, uma dezena de
estações ou mais, que serviam outros tantos centros urbanos. O
certo é que perdia tempo a reduzir a velocidade antes da paragem, na
estação e novamente no arranque. De resto, a velocidade a que
normalmente circulava era de 300 quilómetros por hora. O serviço de
bar é que não achei famoso, pelo menos em termos de refeições.
Nem sequer serviam chá, que tão bem me teria sabido, em vez do café
a que estou habituado.
Durante
a viagem, houve sempre sol e podiam observar-se com nitidez as
paisagens que se iam desenrolando diante dos nossos olhos. Poucas
zonas montanhosas e planícies a perder de vista. Os povoados que
surgiam pareceram-me desolados, com os seus prédios tipo caixote,
uniformizados, sucedendo-se em filas, com espaços entre eles pouco
desafogados. Áreas cultivadas, sim, mas onde não se divisavam nem
pessoas, nem animais, assim como não se viam casas rurais, que
emprestam sempre às paisagens campesinas um carácter especial.
Enfim,
chegámos a Xian e já tínhamos à nossa espera a guia chinesa que
iria conduzir-nos durante o tempo que lá estivéssemos. Falava
castelhano muito bem e disse chamar-se Sílvia. É claro que era a
tradução do seu nome chinês. Quando lhe pedi para me escrever o
seu nome original, fez um gatafunho no caderno, que me deixou
perplexo. Durante o trajecto de autocarro até ao hotel, foi-nos
expondo, de um modo geral, um pouco da história da China, da sua
indústria e das suas populações e, em especial, da história da
cidade. Xian tem 3.000 anos de existência e foi a capital durante
metade das dinastias do império. O nome Xian significa Paz do Oeste
(Xi – Paz; An – Oeste). A cidade situa-se no Norte, perto da
Mongólia Interior e tem 10 milhões de habitantes. Ainda se vêem
trechos das muralhas que a cercavam.
A
chegada ao hotel – Grand Noble Hotel, onde me coube o quarto 1205 –
foi só para descarregar as malas, que o tempo nestas viagens tem de
ser aproveitado até ao segundo. De volta ao autocarro, visita ao
Pagode do Grande Ganso Selvagem, dos finais do século VII. É uma
construção em pirâmide, escalonada em andares que se vão
estreitando até ao vértice. Fica no alto de uma pequena elevação
à qual se ascende por uma ampla escadaria. Espaço de lazer
envolvente, interessante, com árvores. Havia função à hora a que
lá chegámos. Viam-se os monges budistas e os fiéis, através da
larga porta, salmodiando numa toada repetitiva, ritmada por um tambor
e um pequeno sino. Era vedada a entrada, evidentemente, e a tentativa
de disparar as máquinas fotográficas para o interior era
imediatamente sustada por vigilantes. Em redor, várias dependências
com figuras de jade representando a vida de Buda.
Actualmente,
após o degelo maoísta, conforme foi salientado pela Guia, existe
liberdade de culto na China. Mao queria acabar com a religião.
De
seguida, partimos para um outro templo, desta feita, da religião
muçulmana - a Grande Mesquita de Xian, cujas origens remontam ao
século VIII (dinasstia Tang), segundo o que foi posto a circular na
altura da visita, mas o templo terá sido construído bastante mais
tarde, durante a dinastia Ming (1368-1644), segundo o que leio num
velho guia da Baedecker (1996), que adquiri com vista a uma frustrada
viagem a Macau antes da retirada de Portugal do território, onde
iria participar num seminário sobre liberdade de expressão e de
imprensa. É possível, no entanto, que antes deste tenha exisitido
um outro templo para prestar serviço religioso à comunidade
muçulmana, que desde cedo se fixou nesta cidade integrada na Rota
da Seda. O actual dispõe de uma entrada comprida com jardins e
várias construções. O templo propriamente dito está construído
no estilo das construções chinesas e não no estilo tradicional
muçulmano, não dispondo de cúpula e minaretes. Porém, a decoração
é muçulmana.
À
hora em que por lá andávamos, os fiéis eram convocados para a
oração por meio de aparelhagem sonora, naquele estilo de cantoria
monótona.
Percorremos
depois o exótico bairro muçulmano, muito concorrido, com uma
imensidade de lojas e barracas e uma grande variedade de comidas, que
enchiam o ambiente de desencontrados odores.
Após
o jantar, fora do hotel, em local previamente combinado, saímos para
uma visita nocturna à cidade, em autocarro, acompanhados pela guia,
que jantou connosco. Por força, queria trazer-nos para esta visita,
tendo-se fartado de elogiar o encanto da cidade à noite, com o
espectáculo das suas luzes. E, de facto, o cenário é magnífico.
Fizemos várias paragens pelo caminho para admirarmos o efeito
cromático das luzes, em que se distinguiam cores variegadas
combinando-se em fantásticas composições, em particular numa zona
ribeirinha dominada por uma elevação, com os prédios e a vegetação
em cascata. Também no centro, numa das principais praças, onde
avultavam vários edifícios nobres, com trechos da muralha a
surdirem por entre as luzes, havia espectáculos de luminotecnia e
animação com bonecos, movendo-se num bailado nas varandas de um
desses edifícios, ao som de música ambiente.
Esta
animação prosseguia por outros sítios. Transportados para outro
local, fomos dar a um centro com variadas ruas, uma delas muito
comprida, pedonal, uma espécie de rua mágica (acho que era
designada mesmo assim), cheia de iluminações de variada coloração
e composição. Numerosas pessoas passeavam por ali, em grupo,
descontraídamente, ao som de música ambiente. Havia uma parte da
rua onde actuavam grupos musicais de jovens, que tocavam uma música
mais frenética e mais consonante com as novas modas. Passeámos
longamente por ali, antes de recolhermos ao autocarro, para
regressarmos ao hotel. Perguntei à guia se aquele ambiente festivo
se devia a alguma comemoração (estava-se em Outubro, em que é
tradicional celebrar-se durante o mês o aniversário da revolução
socialista) ou se era habitual. Ela respondeu que era sempre assim.
Caso para estranhar.
O
mais importante, porém, estava para vir: a visita ao museu que
guarda os célebres guerreiros de terracota. Foi para essa visita,
fundamentalmente, que Xian foi incluída no roteiro da China. Logo de
manhã cedo foi para lá que nos dirigimos.
Que
espectáculo mais fora do comum! Não há ninguém que, em face do
que lhe é exposto, não fique boquiaberto. Trata-se, efectivamente,
de um local imperdível, ao menos para quem vai à China. Ir lá de
visita e não se deslocar a Xian é como ir à Índia e privar-se de
ver o Taj Mahal. Multidões de turistas circundam demoradamente este
recinto, debruçando-se sobre a balaustrada de ferro que lhe serve de
resguardo e disparando as suas máquinas fotográficas. Abaixo do
solo, alinhadas em trincheiras escavadas na terra, milhares de
figuras em terracota compõem um exército completo, com soldados,
generais, carros de combate e cavalos. Tudo em tamanho natural. As
duas trincheiras da direita estão repletas de soldados e carros de
combate com cavalos, uma delas com maior número de figuras (cerca
de 6.000), ao passo que a outra tem cerca de 1.300; a terceira, com
menor número de figuras (umas dezenas) , está ocupada apenas por
oficiais de várias patentes e um carro de combate puxado por quatro
cavalos. As armas - arcos, lanças e espadas de bronze – eram reais
e terão sido utilizadas na guerra. Uma coisa espantosa é o realismo
e o detalhe com que estas figuras, do século III a.C., foram
concebidas: as figuras humanas, os animais, os carros de combate,
assim como as indumentárias e os apetrechos. E mais curioso ainda: a
individualidade de cada figura, como se cada uma delas representasse
um estilo e uma personalidade própria.
Esta
fantástica armada de terracota será um monumento funerário,
formando provavelmente um conjunto com outros objectos que foram
encontrados junto do mausoléu do primeiro imperador da China – Qin
Shihuang – situado ali perto, e carecendo ainda de uma cabal ou,
pelo menos, mais completa explicitação da sua simbologia. O
conjunto, que representaria o exército e a guarda de honra do
referido imperador, velando-o poderosamente na outra vida ou dando
continuidade à sua missão guerreira, pois que os soldados estão em
posição de combate, foi descoberto em 1974 por camponeses, quando
procediam à perfuração de uma parede que estava soterrada. Desde
então para cá, tem-se desenvolvido um intenso trabalho arqueológico
de desenterramento das figuras (visto que terão sido originalment
enterradas) e de restauro das mesmas, o que obriga a mil cuidados, um
restauro que não é integral, pelo menos no que se refere à pintura
das esculturas, que em algumas figuras expostas é evidenciada por
alguns vestígios que permaneceram ao longo do tempo.
Por
conseguinte, este museu singular é o próprio local arqueológico
onde têm sido desenterradas e recuperadas as figuras.
O
resto do tempo até ao almoço foi preenchido com a visita a uma
oficina de terracota e de móveis pintados e com incrustações em
jade e madrepérola. Uma oportunidade, evidentemente, para as compras
turísticas, pese embora o facto de a visita ter realmente interesse
pela qualidade e beleza de muitos objectos expostos.
Após
o almoço num restaurante situado no mesmo edifício, marchámos para
o aeroporto, onde, após as demoradas formalidades, apanhámos o
avião para Shangai. Duas horas e meia de viagem, entre as 18,00h e
as 20,30h. À nossa espera, lá estava o guia, um patusco gordinho e baixote, com curso
superior de português. Durante a viagem, expendeu longamente o seu
gosto pela nossa língua e cultura e deu mostras da sua erudição
citando Camões e alguns autores mais. E não só pela nossa língua
e cultura, mas também pela religião tradicional do nosso país,
confessando-se católico, apostólico, romano, menino de coro e
defensor da vertente mais conservadora da Igreja, incluindo a missa
em latim.