02 junho 2020
Os grandes estadistas do nosso tempo
Nestes tempos conturbados de
pandemia não podemos deixar de medir o pulso aos grandes estadistas
contemporâneos. Com efeito, é em circunstâncias peculiares como
estas que sobressaem os grandes chefes, os grandes condutores de
povos, os verdadeiros líderes. Pois é de dois desses valorosos
estadistas que me proponho falar hoje. São eles o Senhor Fake News e
o Senhor Resfriadinho. Penso
que toda a gente os tem em mente, quando se fala nos dois mais
eminentes vultos destes dias. Por isso, acho que é inútil
referi-los com outros sinais de identificação, bastando que diga o
Senhor Fake News e o Senhor Resfriadinho para que logo toda a gente
os reverencie no seu íntimo como duas figuras verdadeiramente
exemplares que a história há-de perpetuar como marcos indeléveis.
Na
verdade, eles são como as duas faces de uma mesma moeda (a face A e
a face B); como que foram moldados na mesma liga, a ponto de se poder
afirmar que pertencem à mesma progénie. Ambos estadistas de grandes
países, de grandes uniões de Estados (United States A e United
States B), eles têm-se distinguido pela firmeza e pela audácia das
suas decisões. Aparentemente não são decisões de grande espectro,
mas, passada a surpresa do primeiro impacto, logo começa a ganhar
relevo a sua verdadeira dimensão, a sua grandiosa simplicidade, ou
talvez mesmo simplismo, a sua expedita rudimentaridade, como já há
tantas décadas, ou talvez mesmo centúrias, não se via.
Decisões
dotadas de firmeza e audácia, repita-se. Firmeza pela força de
pulso (de músculo) de que vêm animadas; audácia pelo destemor com
que arrepiam caminho contra a opinião dos aparentemente mais
circunspectos espíritos. Veja-se o caso por que temos vindo a
passar desta pandemia originada por um vírus destruidor e
avassalador. Ambos estes notáveis presidentes se têm disitnguido
pela forma absolutamente soberana com que têm mandado
às urtigas
(permita-se aqui o plebeísmo) conselhos
de peritos, médicos, epidemologistas, tanto nacionais, como
estrangeiros, que têm recomendado, maioritariamente, contenção e
prudência, recolhimento em casa e afastamento social.
Quando
toda a gente, por esse mundo fora, se refugiava em casa, desertando
das ruas e dos locais de trabalho, estes denodados chefes-de-estado
riram-se das imprudentes recomendações dos “sábios” com a
superioridade que os caracteriza e não se vergaram à ditadura do
vírus. Era agora o que faltava que um insignificante inimigo, que
nem se consegue enxergar à vista desarmada, um miserável vírus,
virasse
a sociedade do avesso! Homens verdadeiros, com a devida testosterona
nos seus sítios, jámais o deveriam permitir, seguindo o exemplo
destes líderes. Ambos eles mostraram a sua fibra de políticos
enérgicos e independentes não só desprezando os melados conselhos
da gente de ciência, como despedindo na hora certa os conselheiros e
ministros da saúde que teimavam em contrariar ou franzir o nariz às
suas decisões. Rua com eles! A política está acima da ciência, da
arte, da moral e provavelmente da divindade.
O
presidente Fake News veio a público mostrar que o remédio para o
vírus era uma decisão política e não da medicina e que as pessoas
podiam perfeitamente obter a imunidade se infiltrassem em si próprias
desinfectante, ou se bebessem um xarope feito em casa com detergente
para limparem as entranhas. O presidente Resfriadinho, por seu
turno, não lhe ficando atrás,veio para a rua desafiar o vírus, num
acto de impavidez digno de um antigo capitão de armas, e disse ao
povo que podia vir para a rua e dansar o samba. São actos tão
destemidos estes e tão demonstrativos de uma invulgar entrega à
causa pública, que ambos os presidentes já provavelmente
conquistaram a sua figuração icónica para a eternidade: o
presidente Fake News numa estátua, no lugar mais central da capital
do seu país, com uma seringa gigantesca a combater o vírus e o
presidente Resfriadinho, em lugar destacado da sua moderníssima
capital, a enfrentar o mesmo vírus com um passo de samba.
Apesar
destas atitudes premonitórias, muita gente tem sucumbido aos ataques
do vírus nos países dos dois estadistas aqui focados. Contudo, os
mesmos não se deixam arrastar por essa onda de mortandade, nem mover
pelas fragilidades da compaixão, agindo sempre com coragem e alto
sentido de Estado. O presidente Resfriadinho, aliás, definiu como
ninguém, numa frase sábia, a essência do que tem vindo a acontecer
no seu país: “É
a vida!”
E rematou com esta modesta auto-apreciação, tão característica
dos grandes homens, que medem sempre por baixo o seu valor: Eu
não faço milagres.
A
profissão de fé de ambos eles, quer face a esta pandemia, quer a
outras lérias
inventadas por falsos cientistas,
como a das alterações climáticas, é esta: “Salve-se a economia
e morra quem tem de morrer”. Ora aqui está o princípio salutar da
vida humana.
Estes
dois estadistas são aves
rarae na
história
dos
povos e será preciso recuar vários séculos para se encontrar
alguma personalidade que se lhes equipare, pois os estadistas de
envergadura são mesmo muito raros. O presidente Fake News com o seu
gesto magnânimo de enviar, em nome pessoal, envelopes aos seus
concidadãos com quantias de mil dólares para mitigarem os efeitos
da pandemia faz, talvez, lembrar o imperador Calígula, o qual,
segundo o biógrafo dos Doze
Césares,
o imortal Suetónio, distribuiu por duas vezes ao povo trezentos
sestércios por cabeça, para
além de ter mandado chover sobre
o mesmo
povo
dinheiro
em moedas,
durante
vários dias, ao
passo que o presidente Resfriadinho talvez pudesse
arremedar o imperador Nero a
contemplar
o incêndio sobre Roma que ele próprio mandara atear tocando cítara
e cantando, figurando-se
desta feita o
presidente Resfriadinho a tocar violão, contemplando um incêndio na
Amazónia.
É
possível encontrar mais semelhanças nobilitantes entre os
dois estadistas.
Por exemplo: na forma como ambos reagem tão destemidamente aos
jornalistas que não são capazes de perceber a excelência dos seus
actos, não obstante a evidência do seu valor: o presidente Fake
News vociferando:
go
out!;
o presidente Resfriadinho: Cala
a boca!
Acima
de tudo o que vai exposto, há uma virtude raríssima que é preciso
assinalar-se-lhes:
a incrível leveza
com que exercem os seus cargos, provando que a aparente complexidade
da arte ou da ciência de governar está, afinal, ao alcance de
qualquer um, e que não é preciso ter conhecimentos por aí além
para governar países de grande dimensão e exigência. Formidável
pedagogia que
o
cidadão comum universal daí
pode colher!
Enfim,
quase se poderia afirmar que os presidentes Fake News e Resfriadinho,
se vivessem no mesmo país, poderiam
formar um consórcio e serem o presidente e o vice-presidente um do
outro, alternadamente, revezando-se
nos respectivos cargos e
perpetuando-se no poder,
a bem do povo que tivesse a sorte de os merecer. Há
exemplos, porventura mais toscos, por esse mundo fora, que lhes
poderiam servir de modelo.
Estou
certo de que há-de aparecer um novo Cervantes para fixar
literariamente as aventuras épicas desta dupla de estadistas: o
presidente Fake News no seu Rocinante a brandir uma grande seringa
de desinfectantes, arremetendo contra o vírus e, a seu lado, o
impagável Resfriadinho, cavalgando
a sua alimária e ajudando-o
com os alforges carregados de detergentes injectáveis.
Jonathan
Swift (1665-1745)