29 janeiro 2020
China II
Manhã
cedo, bafejados por um sol outonal, vamos a caminho de um dos locais
de Pequim mais vibrantes de expectativa no imaginário do forasteiro
– a Praça Tiananmen, através da qual se acede à Cidade Proibida.
Por avenidas já pejadas de carros, o guia vai dissertando sobre
costumes antigos e factos da história chinesa, aproveitando a
lentidão do trânsito. Entre outras coisas sobre as quais divaga de
uma forma minuciosa, como o calendário tradicional chinês e
práticas rurais ancestrais, alude ao Palácio Imperial, na Cidade
Proibida, construído na dinastia Ming (1406-1420), após ter sido
derrubado o domínio Mongol, que se havia iniciado por meio de
conquistas paulatinas, onde pontificara o célebre Genghis Khan, e
fora ultimado pelo seu neto Kublis Khan, que inaugurou a dinastia
Yuan.
De
1420 a 1911, sucederam-se 11 imperadores chineses e duas dinastias –
a Ming e a Qin. Em 1911, a dinastia Qin foi destronada pelo movimento
nacionalista que estabeleceu a República da China, cujo primeiro
presidente foi Sun Yat Sen, figura cimeira daquele movimento e
fundador do Kuomitang. Teve aí origem a China moderna; não só o
regime imperial foi desmantelado e substituído pela República, como
tiveram fim muitas práticas sociais que ostentavam marcas de
servidão. Por exemplo, o costume de enfaixar os pés das mulheres
desde tenra idade, uma prática que sacrificava a comodidade do
andar, a saúde e a higiene femininas a um ideal de beleza e
submissão - o andar saltitante, aliado a graça e fragilidade das
mulheres, despertando nos homens impulsos protectores (veja-se o
retrato horrível que nos dá Jung Chang da sua avó e dos tormentos
que sofria por causa dessa prática em Cisnes
Selvagens, 14.ª
edição, Quetzal editores, p. 26).
Outra
prática ou instituição que foi abolida e a que o guia faz uma
mais demorada referência foi a dos eunucos. Normalmente estes homens
castrados, que estavam ao serviço do imperador, provinham de meios
pobres. Os pais escolhiam um dos filhos para eunuco, encontrando aí
uma forma de promoção social e de sustento desse membro da
família; era uma boca que deixava de ser alimentada pela família e
passava para a mesa farta do palácio imperial. Muitos dos eunucos
estavam muito próximos do imperador; eram guardas das esposas e
concubinas e desempenhavam outros serviçosn
de intimidade ou proximidade imperial. Daí possivelmente uma das
razões para a castração. A oportunidade para a escolha desse modo
de vida surgia entre os nove e os quinze anos. O candidato tinha que
se submeter a uma operação para lhe serem removidos os órgãos
genitais e havia grande percentagem de mortos. Tinham
dificuldade em urinar e, por vezes, o cheiro nos sítios onde dormiam
era nauseabundo.
Entretanto,
chegámos à muito aguardada Praça Tiananmen. Aí estava ela, na
manhã ensolarada, a regurgitar de turistas. Levas e levas de
turistas, circulando disciplinadamente, sob o olhar atento e o
acicate dos agentes de polícia, que espevitavam constantemente o
andamento dos passeantes, a fim de evitarem demoras e
engarrafamentos. Ali não se queriam basbaques. Era sempre a andar e
a ver os monumentos situados
nas partes laterais de
pescoço torcido.
O
guia já lá vai à frente, erguendo a bandeira portuguesa no meio de
dezenas de bandeiras de outras nacionalidades, incluindo a
inconfundível bandeira da China (vermelha com uma estrela rodeada de
quatro outras mais pequenas, todas amarelas, colocadas no canto
superior esquerdo); o grupo vai-se fragmentando, por efeito de
ligeiros atrasos de um ou outro membro que se demora a contemplar
este ou aquele monumento
ou que aproveita para sacar uma foto, ou ainda por se ter enleado em
desfiles de
outros grupos que cruzam o mesmo espaço e forcejam por passar
adiante, arremetendo contra quem passa, e o retardatário, sempre com
o olho fito na bandeira verde-rubra, lá vai estugando o passo para
reenfileirar no grupo.
Grande
espaço este, de quase um quilómetro de comprimento (880 metros) e
passante de meio quilómetro de largura (550 metros), repleto de
pessoas em movimento, orientando-se em várias direcções,
acentuando no turista que vai integrado num grupo o sentimento de
confusão e receio de se perder.
Lá
na frente, o guia, através do walkie
talkie, vai referindo
os monumentos que se vão perfilando à nossa esquerda e à nossa
direita (Leste e Oeste), considerando que entrámos pelo lado Sul,
onde se encontra a Torre Quiánmen e uma das portas mais antigas de
entrada no recinto, outrora amuralhado, do tempo da dinastia Ming.
Vamos, pois, em direcção ao Norte e lá está o mausoléu de Mao
Tse Tung, um monumento situado no centro da praça, para o qual se
encaminha uma interminável fila de turistas, de várias centenas de
metros, facto só por si desencorajador de uma visita, se outras
razões não houvesse para darmos ao desprezo a contemplação da
múmia. O que lá está é a carcaça de um homem extinto empalhada
por dentro. Ao diabo esta divinização estalinista dos chamados
heróis do povo! À frente da mastaba, lá está o monumento aos
Heróis do Povo, que mal se enxerga do sítio por onde vamos andando,
e onde, segundo informa o guia, se pode ler a inscrição Os
Heróis do Povo são imortais.
Nem sempre. Às vezes, o povo também acaba por os derrubar do
plinto onde os altearam. Qual glória
eterna, qual carapuça!
Aí está também a Assembleia Popular
Segue-se
o Museu Nacional da China, do lado direito da praça, considerando o
sentido em que vamos e, lá ao fundo, depois de caminhada intensa, a
Porta da Paz Celestial,
onde finalmente repousamos. É ela que nos dá acesso ao paraíso, à
cidade dos eleitos ou à Cidade
Proibida. Proibida,
justamente porque não tinham direito de nela entrar as pessoas que
não pertenciam à corte do Imperador. Foi da Porta da Paz Celestial
que Mao Tse Tung proclamou a República Popular da China em 1 de
Outubro de 1949. O seu retrato lá está, bem ostensivo, no centro do
muro, por baixo do balcão onde teve lugar a referida proclamação.
Esta
foi uma das grandes efemérides da história da China moderna que se
desenrolou nesta grande praça. Uma outra mais recente acode, de
certeza, à memória de qualquer turista minimamente informado: o
massacre de 4 de Junho de 1989. Tanques e camiões do Exército
invadiram a praça ocupada por várias dezenas de milhar de
estudantes, operários e intelectuais, que se vinham manifestando
pacificamente, sob a liderança dos primeiros, em vários locais de
Pequim, exigindo mais democracia e a instauração de um regime que
respeitasse os direitos fundamentais acolhidos pela Declaração
Universal dos Direitos do Homem. Pois foram massacrados sem dó nem
piedade, durante a noite, nesta praça onde as luzes foram apagadas,
e trucidados pelas lagartas dos tanques, que rolaram por cima deles
com total indiferença, e alvejados pelas metralhadoras. Morreram
muitos, na ordem dos milhares, sem que nunca se soubesse o número
exacto. Mortos pelo Exército da República Popular da China,
exactamente quarenta anos passados sobre a proclamação de 1 de
Outubro, que anunciou a libertação do povo chinês.
Imaginar
o que seria o pandemónio e o terror dessa noite, com pessoas a
fugirem desorientadas à aproximação inexorável dos tanques,
esbarrando-se umas nas outras, gritando espavoridas, ficando umas
esmagadas e outras caídas no recinto, é tarefa quase impossível no
meio da multidão de turistas que cruza este espaço em rebanhos que
seguem atrás das bandeirinhas dos guias. Por sinal, o timoneiro que
comandava os destinos do povo chinês, nessa altura, era Deng
Xiaoping, um veterano comunista em projecção após a morte de Mao
que decisivamente contribuiu para pôr fim às atrocidades da
Revolução Cultural, ele próprio uma grande vítima dela, bem como
membros da sua família. A ele se devem as reformas profundas que
inauguraram na China um novo período (“uma segunda revolução”,
como lhe chamou), instaurando a designada “economia de mercado
socialista” e abrindo o país às relações internacionais (foi o
primeiro presidente a visitar os Estados Unidos). O impulso
reformista (outros chamar-lhe-ão revisionista) não lhe tolheu,
todavia, o velho reflexo comunista ou estalinista de reprimir
duramente qualquer manifestação cívica e política favorável aos
mais elementares direitos democráticos.
Jung
Chang, no livro já citado Cisnes
Selvagens, que se lê
como um romance e que é, simultaneamente, biografia de uma família,
atravessando várias gerações, autobiografia e história da China
contemporânea, diz que nem queria acreditar que o político que pôs
fim ao caos e à violência indiscriminada da Revolução Cultural,
que permitiu a reabilitação definitiva dos seus pais, militantes
comunistas desde a juventude, na década de 40, e a
saída dela
da China, beneficiando de
uma bolsa de estudos, por
ter sido a melhor aluna em
inglês na licenciatura,
para estudar numa universidade inglesa, foi o responsável por
aquele horrível massacre. “Teria aquilo verdadeiramente sido
ordenado pelo mesmo homem que aos meus olhos e aos de tantos outros
aparecera como um libertador?” (p. 516).
É
assim: o medo de perder o pé no poder leva, por vezes, aos actos
mais insanos. Abertura sim, mas sem destapar completamente a panela,
não vá a pressão que salta para fora tornar-se incontrolável
e levar tudo na frente, como sucedeu com Gorbachov.
Não
sei se era nisto que pensavam os meus ocasionais companheiros de
viagem, quando
atravessávamos a Praça Tiananmen.
Sei é que, chegados ao fundo, junto ao retrato de Mao Tse Tung, o
guia (em que pensaria ele,
que não referiu nada disto que escrevo?) propôs
que se tirasse uma fotografia em grupo, sob a imagem tutelar do
antigo timoneiro. O fotógrafo, evidentemente, já lá estava.