21 maio 2020

 

China VI



Guilin
Hoje foi cedo o acordar: 06H30 locais.
Após o pequeno-almoço no hotel, eis que vamos a caminho do cais do rio Li para uma excursão de barco. O guia foi aproveitando a viagem de autocarro para nos continuar a fornecer indicações sobre a cidade de Guilin e a região. A cidade tem 800.000 habitantes (quatro milhões se se contarem as zonas contíguas) e é puro o ar que aqui se respira, límpidas as águas, que se podem beber directamente das fontes e correntes, dispondo de invejáveis condições de salubridade, graças à sua situação geográfica e condições naturais. O governo protege, por meio de medidas adequadas, o ecossistema deste espaço urbano e zonas envolventes. Por exemplo: retirou daqui as indústrias poluentes e deslocou-as para outros locais, nomeadamente a área de Cantão; preserva as tradições e impôs limites à construção imobiliária, não podendo os edifícios exceder determinada altura. Por isso, não se vêem por aqui arranha-céus.
É vulgar as pessoas atingirem idades provectas: mais de 100 anos. Há uma mulher com 110 anos e outra faleceu com 118 anos. A reforma, em toda a China, é aos 60 anos para os homens e 55 para as mulheres e muitos chineses, depois de reformados, querem fixar-se aqui para viverem outro tanto. Esta é a legenda da cidade, segundo o guia, o simpático José. Só mais uma nota: Na China há cinco regiões autónomas: Macau, Hong-Kong, Guanshi, Mongólia Interior e Tibete. Nas regiões autónomas pode ter-se mais do que um filho. Guilin pertence à região autónoma de Guanshi.
E com isto, depois de 1 hora de viagem, já estamos a apear-nos, cada qual com a caixinha do farnel que o hotel nos preparou, já atravessamos as guardas que dão acesso ao cais, munidos do bilhete que nos foi fornecido e por entre a vasta multidão de turistas, encaminhamo-nos para o nosso barco (há vários), transpondo a prancha de madeira que conduz ao portaló.
A viagem ao longo do rio é um deslumbarmanto, que se prolonga durante 4 horas. Uma sucessão interminável de colinas de formas arrojadas, mesmo inverosímeis, de vertentes muito abruptas e picos a furarem o céu, oferecendo perspectivas inesperadas a cada volta do rio, umas isoladas, outras agrupadas, em duetos como se fossem irmãs, ou em magotes, com os pináculos formando serrania, esta estrangulando a corrente, a outra mais além obstruindo ilusoriamente a passagem, aquelas duas estando dispostas de tal maneira nas curvas do rio que simulam uma garganta entre gigantes, como Sila e Caríbedes, as mais longínquas envoltas em neblina, esfumadas e como se estivessem grudadas ao céu. Muitas têm nomes que evocam as figuras que as formas sugerem, como a célebre colina da Tromba de Elefante. Este é o cenário de muitas pinturas clássicas evocativas das paisagens chinesas.
O almoço foi a bordo, cada qual extraindo o conteúdo da caixinha que, desde o hotel, o acompanhava, o que contribuiu para dar uma agradável sugestão de viagem campestre.
O regresso foi no autocarro que nos levou de manhã cedo. Já chegámos para lá do meio da tarde. O tempo até ao jantar foi ocupado como cada um quis. E havia onde passar esse bocado da tarde, nomeadamente nas margens rústicas do lago que se encontra mesmo perto do hotel do outro lado da rua. Já falei dos seus arruamentos em terra, por entre árvores, arbustos e plantas da mais variada espécie, conferindo ao local um resguardo protector para os dias de grande calor.

Após o jantar, fomos fazer uma excursão de barco pelos lagos do centro, denominados o lago Cedro (Shanhu) e o lago Figueira (Ronghu), ligados um ao outro e navegáveis como se fossem um rio. A embarcação tinha um aspecto de bar nocturno, com mesas e bancos, onde nos fomos sentando. Como a noite estava boa, muitos subiam à amurada para melhor desfrutarem da viagem. Ao longo da passeata, a cidade ia-se-nos revelando, iluminada e multicolorida (os chineses parecem apreciar muito as iluminações nocturnas das cidades e pôr nisso um brio especial). Zonas ribeirinhas, jardins, parques, pontes, casebres das margens iam desfilando a um lado e outro.
A pesca ncturna foi uma das atracções mais inéditas e bizarras que se nos deparou. Os pescadores postavam-se no meio do rio, de pé, em barquitos pequenos, quase pranchas de surf, cada qual em seu barquito, um aqui, outro lá adiante, trajados com fatos fosforescentes e iluminados por uma lanterna ou coisa parecida. Tinham como companheiros corvos marinhos e eram estes que, devidamente amestrados, mergulhavam nas águas a um sinal gutural dos pescadores. Quando regressavam ao barquito, depois de uns momentos em mergulho, não aparentavam trazer nada com eles. Porém, os pescadores apertavam-lhes o pescoço, num gesto sacudido que parecia de estrangulamento, e eles largavam, inteirinho, o peixe que tinham engolido. Disse-nos o guia (o tal José) que os corvos são recompensados e procuram os maiores peixes.
Outra das surpresas que a viagem nos porporcionou foi um bailado executado num terraço sobre o rio por um conjunto de jovens beldades pertencentes a uma minoria étnica. Não seria nada de especial, se não tivesse surgido como uma espécie de espectáculo onírico, deusas marinhas ou ninfas que tivessem surgido do fundo das águas para deslumbrarem o viajante.
Uma última curiosidade foram as torres octogonais dos dois pagodes conhecidos como o Sol e a Lua, erguendo-se no lago Shanhu (Cedro), cada qual delas trepando nas alturas em vários andares com os seus telhados típicos. A mais alta, a do Sol, está iluminada em tons dourados e a da Lua, um pouco inferior, em tons prateados. Ambas produzem um belíssimo efeito na noite de Guilin, que as toma como ex libris.
No regresso, o barco foi mesmo transformado em bar nocturno com uma jovem chinesa tocando piano chinês e difundindo aquelas sonoridades orientais tão delicadas e sonhadoras.
Como se intui do descrito, a viagem tem o seu quê de menu turístico, o que mais uma vez prova a actual capacidade demonstrada pela China para atrair o forasteiro, dando- lhe a comer as iguarias que são as preferidas de quase todo o turista, mas não deixa de ser interessante e reconfortante. Valeu a pena sobretudo para ver a cidade à noite no multicolorido das suas luzes e as torres dos pagodes, que têm outra beleza iluminadas.

Estamos num outro dia, mas ainda em Guilin. O acordar foi às 07h00. Saída de autocarro em direcção ao museu das pérolas, que de museu tem pouco. Uma visita dirigida ao turista consumidor e à promoção da produção e comércio locais.
A coisa começou num auditório, onde houve desfile de beldades exibindo as jóias com que adornavam o colo e os braços, movimentando-se no tablado para trás e para a frente, ao som de música, pondo em evidência os seus enfeites. De seguida, passou-se à sala da exposição das jóias, onde uma senhora fez uma parlenda sobre a cultura das pérolas. Estas são provenientes de ostras, as quais produzem nácar como forma de defesa contra objectos estranhos que entram nas suas conchas – processo esse que, demorando anos, dá origem às pérolas. Há-as de água salgada e de água doce, sendo as de água salgada de melhor qualidade. Exemplificou com a abertura de um ou outro molusco, que retirou de aquários onde se cultivavam. Também deu explicações sobre os tamanhos e os feitios (as de forma redonda é que são aproveitáveis para colares e pulseiras de qualidade) e sobre a maneira de distinguir as pérolas verdadeiras das falsas (aquelas, sendo friccionadas, largam umas particulazinhas quase imperceptíveis de pó, as outras, não).
Passou-se de seguida à venda, no fundo o acto mais importante para que tendiam todos os passos anteriores. E foi um corrupio à volta dos mostradores e balcões, um fervilhar de desejos e de pequenas explosões de entusiasmo, com os da casa incentivando à compra com acenos de aprovação e palavras de encarecimento (normalmente em inglês) dos objectos sobre que se detinham mais demoradamente os olhares ou sobre os quais incidiam as inclinações dos potenciais compradores. Foi assim que gastei os últimos yenes, confortando-me com a necessidade de gastar aquela moeda, dado que, daí para a frente, a mesma já não tinha cotação. Haveria de ser o dólar de Hong-Kong.
Em Guilin ainda fomos visitar a Gruta da Flauta de Cana. É uma das grutas maiores e mais célebres desta zona de rios, lagos, colinas e grutas. Trata-se de uma enorme galeria, na qual se desce em profundidade, com estalactites e estalagmites formando as mais fantásticas figuras: leão, homem da neve, queda de água e muitas outras figuras imaginárias. Um microcosmo com elementos naturais e artificiais, estes consistentes sobretudo nos arranjos de luzes e sonoridades, onde se percebiam chilreios de pássaros, que na realidade não existiam. Em tempos ancestrais, fluiria por aqui um rio. No final, junto de um dos lagos da gruta, houve espectáculo com alusão cosmogónica e bailado. Na verdade, não se pode dizer que os chineses não sabem explorar convenientemente os seus recursos também do ponto de vista da indústria turística.
Terminada a visita, metemo-nos no autocarro com destino à estação dos caminhos-de-ferro. Despedimo-nos do José (afinal, Dong, o seu nome chinês, soube-o nesta altura). Dirigimo-nos para o comboio, que acabara de parar na plataforma, à procura da carruagem que o bilhete designava. Num rápido, num rápido, que o tempo urgia. Com toda a bagagem (mala grande, uma mochila, o volume do edredon e ainda uma caixinha com o lanche ou almoço, que tinha sido preparada no hotel). Toda a gente se precipita para as portas, as pessoas demoram a subir, demoram a entrar, por causa dos engarrafamentos, uma aflição. Por fim, consegui subir com toda a tralha e arrastá-la lá para dentro. Na coxia, as pessoas permandeciam de pé, atarefadas a colocar a bagagem nas prateleiras, completamente repletas. Quando consegui mover-me lá para dentro, vi um espaço livre numa prateleira, por cima do lugar onde iam duas jovens. Atirei a mala grande para esse sítio e, por felicidade, ela coube lá, embora com um dos rodados ligeiramente de fora, o que não pareceu agradar às referidas jovens. Verifiquei as condições de segurança e mostrei-lhes que a mala estava segura. Entalei o volume do edredon, mais espalmado, num espaço que havia entre as costas do último banco da carruagem e a parede do compartimento, confiando em que ninguém me pegaria nele. Fui depois à procura do meu lugar. Acomodei a mochila aos pés e respirei fundo, já o comboio, tipo Alfa, rodava a boa velocidade. Embalado entre estações, atingia 300 kms. por hora.
Fui lendo uns contos maravilhosos de Gao Xinjiang, prémio Nobel da Literatura no ano 2000 (Uma Cana De Pesca Para O Meu Avô, publicações Dom Quixote) e espreitando a paisagem. Planícies a perder de vista, áreas cultivadas, relevos boleados, povoações aqui e acolá, centros urbanos, tudo incaracterístico, assim me pareceu. Sobretudo no que diz respeito aos edifícios, que a paisagem era agradável à vista, inundada de sol. O comboio parou em várias estações e, já perto de Hong Kong, parou em Cantão, uma grande mole urbana com prédios trepando para o céu, mas onde também não divisei nada que chamasse a atenção.
Ao cabo de três horas e meia de viagem estávamos em Hong Kong. Já estava o autocarro à nossa espera com o respectivo guia, que falava castelhano. Enquanto a viagem durou, foi-nos dando explicações sobre a cidade. No hotel – o Harbour Plaza Metropolis, de 4 estrelas – coube-me o quarto n.º 69 no 17.º andar. O hotel ficava num alto e dele se divisavam estradas rápidas, cruzadas, sobrepostas, passagens aéreas, carros circulando a alta velocidade. O centro ficava a uns 20 ou 30 minutos de distância. Pequenos autocarros do hotel transportavam quem quisesse para lá, de meia em meia hora, se não estou em erro. Nesse dia, porém, com o cansaço da viagem e a freima da instalação, mais o tempo gasto no câmbio (troca de euros pelos tais dólares de Hong Kong – os funcionários examinavam cada uma das notas minuciosamente, virando-as de um lado e outro), acho que ninguém saiu. Entretanto já eram horas de jantar, que não houve (o único dia em que tal aconteceu). Andando perdido pelo foyer do hotel, depois de arrumadas as malas, acabei por encontrar duas pessoas que também vagueavam pelo mesmo local (duas senhoras, que eram companheiras de viagem e partilhavam o mesmo quarto). Desprezamos o restaurante e o bar do hotel e fomos para o centro comercial contíguo (Metropolis), que comunicava com aquele. Circulámos por corredores vazios, com lojas praticamente desertas àquela hora, num cenário universalmente estereotipado. Acabámos por ir dar a um pequeno restaurante que não tinha ninguém – uma dessas manjedouras de centro comercial. Mandámos vir lasagna à bolonhesa para todos (não havia muito mais) e uma sopinha de tomate picante. Acompanhámos com chá. Foi um pouco desolador em termos gastronómicos, mas divertimo-nos com piadas ao que nos rodeava. No quarto, o mais acanhado em toda a viagem, telefonei para casa, mas o WatsApp não deu (finalmente experimentava a interdição que impendia sobre essa rede social). Tive que fazer chamada pelo Rooming só para dizer olá, porque o preço escalda. Dormi com as malas por desmanchar, porque no dia seguinte partiríamos para Macau, de onde regressaríamos dois dias depois a Hong Kong. O grosso da bagagem, contudo, ficaria nos arrumos do hotel.

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